III - DECEPÇÃO
— Medeiros, você leu os direitos do rapaz? — Pergunta Dra. Sueli.
— Eu não me lembro. Realmente não recordo. Sem querer me justificar, mas já o fazendo, estava acontecendo muita coisa ao mesmo tempo.
— É para isso que recebemos nossos treinamentos, agente. — É o delegado Cosme, quem começou a falar — É por isso que seguimos os protocolos. As diretrizes. O seu chefe sabia da sua incursão até Garanhuns?
— Não, senhor. Ele não sabia.
— Eu, Cosme Neto não tenho mais perguntas.
— Agente Medeiros, a delegada Norma que encontra-se sentada ao meu, colocou em seu relatório que ao chegar no local, você estava agressiva e sem a totalidade das suas faculdades mentais, parando somente com a agressão depois da interferência dela. O que me diz?
— Que ela está mentindo. — Medeiros olha diretamente para Norma. — E digo isso com todas as minhas faculdades mentais em perfeito estado.
— Norma — Almeida olha seriamente para a delegada —, não acredito que você escreveu isso?
— Eu escrevi delegado, porque foi isso que aconteceu! É a verdade. — É a vez de Medeiros colocar sua mão direita sobre o braço de Almeida.
Depois, propositalmente, Medeiros coloca sua mão esquerda sobre a mesa, e começa a tamborilar com os dedos restantes.
— Doutora Sueli, doutor Cosme e doutora Norma, sem querer desrespeita-los, se não tiverem mais nada para falar, desejaria saber o que me aguarda. Até porque, se vocês esperam que eu vá pagar de louca, xingar, pular na goela de Norma e jogá-la do terceiro andar, eu não vou fazer isso. — Medeiros levanta sua mão esquerda, mostrando para todos na sala — Eu sou uma nova pessoa. Se me acho culpada pelo que fiz com o segurança? Não. Ele era uma ameaça real. O cara não precisaria de uma arma para ser letal. Se me arrependo por não ter lido "os direitos" dele? Não. Quem sabe se não li? Quando vou dormir, eu durmo? Tenho sonhos felizes com unicórnios? Não. Eu sonho todas as noites com meu pai. A mesma conversa que nós tivemos antes dele ser assasinado.
Medeiros, faz uma pausa. Engole a saliva, olha para todos os presentes e continua:
— Eu me arrependo por não ter conseguido salvar mais pessoas. Eu me arrependo por não ser uma filha melhor, uma irmã melhor... e uma amiga, melhor, — Medeiros olha para Almeida.
— Medeiros, nós da Corregedoria, chegamos a uma decisão.
Almeida, pede licença para falar. Dra. Sueli mexendo em seus óculos de armação quadrara e pequena responde:
— Pode falar delegado. Se não levantou sua mão para falar, até agora, não será levantando-a que não vamos deixá-lo se expressar.
— Eu tenho orgulho de servir ao lado dessa mulher. Eu tenho aprendido muito mais que ensinado. Só quero dizer duas coisas: A primeira é que lembrei-me de uma história que meu pai contava. Certa vez, ali por trás da Casa da Cultura, um homem matou outro porque todos os dias, quando o rapaz passava, o que morreu o chamava de Urubu. Talvez, para os senhores e para mim, seja para lá de um motivo fútil, haja vista uma vida foi tirada por causa de uma brincadeira que eles faziam diariamente. Porém, o advogado que defendia esse caso, parou do nada a defesa do rapaz negro, e começou a dar "Bom dia, boa tarde e boa noite" para todos os presentes... incontáveis vezes, talvez por mais de dez minutos... até o juiz que arbitrava a causa, mandou-o parar de ficar repetindo "Bom dia, boa tarde e boa noite", e foi aí, que sabiamente, o advogado termina perguntando à tribuna: "Se todos nós, pessoas letradas e doutores presentes aqui, ficamos nervosos e impacientes, inclusive eu mesmo, com minhas repetições, que estavam apenas desejando "bom dia, boa tarde e boa noite", quanto mais esse homem, pobre e negro, que todos os dias, por anos a fio, escutou ser chamado de urubu?". Ao terminar de falar, o delegado deu-se encerrada sua defesa, e o rapaz foi solto, pagando sua pena com serviços comunitários. — Almeida, para de falar e apertando o ombro de Medeiros diz : — Obrigado pela profissional que você é.
O silêncio torna-se latente na sala. Medeiros, emociona-se com as palavras de Almeida. Uma coisa que Medeiros nunca pensou que fosse acontecer, ela e Almeida criarem laços de sangue. Laços de irmãos.
— Bem, muito obrigado pelas suas palavras delegado Almeida, mas, não podemos deixar essa situação passar impune. A detetive Medeiros será suspensa por tempo indeterminado, tendo todos os seus direitos revogados, bem como seus dividendos. Agente Medeiros, por favor deixe seu distintivo e arma sobre essa mesa.
— Isso é uma palhaçada! E vocês sabem disso!
— Eu ainda não terminei de falar, Delegado. A agente Medeiros terá que duas vezes por semana, se apresentar no consultório da Doutora Matilda. As sessões não serão pagas pelo departamento e sim pela detetive, para que ela, talvez entenda definitivamente as consequências dos seus atos e dê valor ao dinheiro dos nossos contribuintes.
— Vocês são um bando de hipócritas!
— Delegado, mais uma ofensa dirigida a essa corregedoria, e todas as punições dirigidas para Agente Medeiros, serão replicadas para o senhor. — Medeiros toca no braço de Almeida e levanta-se. A detetive, coloca seu distintivo sobre a mesa, tira sua arma do coldre, a colocando também sobre a mesa.
— Mais uma coisa Medeiros — Cosme, olhando para a agente diz: —, caso falte uma sessão, você será expulsa da corporação. Estamos entendido?
— Sim. Em alto e bom som. Posso me retirar?
— A vontade detetive. — Responde Dra. Sueli.
Antes de sair, Almeida olha para os três e balança a cabeça em sucessivos negativos, como quem repete: "Não acredito!" E seu olhar, claro como água cristalina, chama a todos sentados à mesa de filhos da puta.
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