IX
Nunca imaginei sentir a falta das vozes afinadas demais, afiadas demais. Nunca pensei registrar a velocidade com que o sangue seca sob o tecido. Nunca notei o quanto acho a escuridão da noite agradável, ou o quanto apreciava meus momentos de completa solidão junto a ela, e que aquela negritude que provem da pouca iluminação pouco pode se parecer com ela.
Silêncio e silêncio.
Meus pés se juntam um pouco mais a meu corpo encostado na parede fria de um dos calabouços do castelo. Minhas mãos se apertam em volta dos ombros em um próprio abraço. O ambiente está congelante, suspeito de uma forte chuva lá fora, e minhas roupas rasgadas mal conseguem me cobrir por inteira. O cheiro é insuportável e a aparência ainda pior. A comida, lavagem, que me oferecem todos os dias está derramada pelo chão, pouco dela consigo engolir, o gosto é um resultado de restos de comida e sal. Pelo menos é comestível, penso. Já vi alguns ratos correndo por aqui e por ali, escondendo-se em pequenos buracos entre as pedras.
Silêncio e silêncio.
Faz algumas horas que meus carcereiros trocaram seus turnos. Percebo pela tocha, metade consumida, que os novos não se preocuparam em melhorar a qualidade de seu trabalho. Sei que um deles está disposto do lado de fora, treinado o suficiente para não ser detectado por um prisioneiro comum. Sei que evita ficar parado em frente ao pequeno buraco de respiração entalhado na porta, grande ajuda. Suspiro, fechando um pouco as pálpebras pesadas e sonolentas, e consigo sentir o seco em minha boca, minha garganta. Pouca água é colocada a minha disposição e o pequeno recipiente posto ao lado da comida já acabou faz algumas horas. Dia ou dias, quanto tempo estou presa aqui?
Os dedos de meus pés se retorcem, as unhas arranhando-se no chão. Falta ar aqui, mas tento guardar o suficiente até o momento que alguém abra a porta novamente. Meus pulmões estão doloridos, meu coração parece bater devagar. Sombras parecem se projetar por baixo da porta, silhuetas grandes finalmente voltando a passar e passar, talvez guardas que já estivessem postos ou talvez uma nova troca. Não sei, não me importo. O corpo de Ilirya já deve ter sido velado. Pergunto-me se suas irmãs levaram seu corpo para dar um fim propriamente Maana, desejo que isto tenha acontecido, ou se sua amante providenciou um lugar de descanso eterno nas catacumbas da família real. A verdade é que, independente de qual, Ilirya tinha o direito. Ela merece o direito.
Silêncio e silêncio.
Quanto tempo a rainha pretende tomar como período de luto? Quanto tempo pretende tomar até colocar um fim a isto? Pouco me importo. A atrocidade que cometi não merece perdão. As horas, acho que são horas, são lentas enquanto tento me manter na mesma posição. O sono quase me engole, a fome quase me sufoca. Um maior movimento está se formando, consigo perceber pelas sombras e pelos passos pesados dos guardas, mas encosto a cabeça contra a parede fria e apenas espero e espero.
Talvez isto seja uma boa forma de desistir.
Eles entram sem pudor, suas facetas pouco amigáveis para comigo. Alguns murmuram ordens como “Levante-se", “Se coloque de pé, garota" ou “Não existe todo um dia". Pouco me importo com eles, pouco me importo com seus temperamentos e ordens. Enquanto sou colocada de pé, um deles segurando firmemente em minha nuca, encaro porta a fora, encaro o guarda sobressalente que segura mais uma tocha curta e consumida.
Talvez seja uma escapatória desistir.
Meus pulsos estão presos e meus pés pouco se movimentam por razão das correntes pesadas em meus tornozelos, sou empurrada para frente a cada cinco segundos, suas mãos tocando lugares que não deveriam nem mesmo sonhar em tocar. Eu sempre disse que eram meus carcereiros, mas ninguém prestou atenção. Eu sempre disse que ela não pretendia me entregar a coroa, mas ninguém acreditou... Entretanto, em grande verdade, não devo culpar ninguém por isto. O estorvo, a filha, a princesa e a nada. Aquela que matou vários quando tentou evitar a morte de um.
Não consigo me sentir tão culpada por isto.
Silêncio e silêncio.
Lembro-me claramente do dia em que meu tutor discursou fervorosamente sobre a história de Riomar, a traidora. Lembro perfeitamente dos detalhes escritos sobre sua punição até a morte: “Eles a prenderam em uma estaca, arrancaram-lhe as roupas e iniciaram um longo processo para arrancar sua pele, pedacinho por pedacinho.”
Ele não me falou sobre o que levou o rei, da segunda geração após os registros de Nyla, a esfolar a própria filha. Não, o substituíram logo em seguida por um sacerdote e eu nunca mais escutei uma só palavra sobre a Raamed.
Por qual razão o recordo agora?
Não tenho ideia.
Os guardas pouco se comunicam entre si, suas mãos trabalhando incansavelmente enquanto me prendem em uma superfície de pedra no meio das varias celas antigas do Castelo. O barulho do fogaréu estalando me afeta, pois são os marcadores do tempo. Um, dois, três... Dez... Vinte... Trinta. Talvez pouco estejam percebendo isto, talvez pouco se importem ou talvez isto seja o de menos.
O talvez é sempre a pior parte de uma prisão levantada por incertezas e blasfêmias.
As costas de meu vestido são arrancadas sem cerimônia, expondo-me aqueles homens sem expressões. No momento seus passos me rodeando é a única coisa que adentra meus ouvidos. Estão conversando algo entre si, tenho completa certeza, mas suas palavras se perdem em meu nada. Se perdem no ar. De soslaio observo suas mãos se prenderem em volta a um chicote de prata, um modelo muito parecido aos que as vezes meu pai usava antes de uma condenação, mas rapidamente desvio os olhos quando percebo a pequena ponta no fim. É afiada, bastante cortante.
Talvez eu mereça isto. Talvez seja uma punição leve.
Posso jurar que algum deles murmurou algo como “Isto vai machucar”, o que parecia ser um ato de misericórdia em meio a todos eles. Prendo o folego, fecho a boca em uma linha, talvez a agonia seja menor assim. Talvez, talvez, talvez. Quando a primeira chicotada desce sobre minha pele o ardor pouco me deixa assimilar, mas a segunda arranca um arquejo tão primitivo que não quero reconhecer a dor. Sinto minha pele rasgando, a carne das minhas costas queimando.
Talvez seja merecido.
Prendo os lábios entre os dentes, os mordendo e os machucando tanto quanto aquele homem a mão do chicote. Eles estão sangrando, vermelho rubro escorrendo por meu queixo até pingar no que estou apoiada. O sangue tem gosto de sal e metal, quente e gelado ao mesmo tempo. O mesmo escorre por toda a extensão de minhas costas, sujam a parte inferior de minha roupa e marcam minha coluna. Sinto mais e mais a cada vez que a mão desce, cada vez que aquela ponta afiada perfura meu corpo sem piedade ou reconhecimento.
Nada. É isto que significa. É o que você é agora.
A dor é insuportável, insustentável e infernal, mas não pedirei por clemência. Tento ao máximo afastar todas as lágrimas dos meus olhos, afastar o lacrimejar cruel com o fechar das pálpebras. Não obterão isto de mim, ela não vai conseguir... Minha vida à isto. Então suporto, da forma que der, e me rendo ao cansaço em vez do choro.
E o barulho de ferro na carne me comanda até o reino de inconsciência e pesadelos.
Clap. Clap. Clap.
Meus olhos ainda não se acostumam com tanta obscuridade, se recusam a manter as pálpebras abertas e a distinguir silhuetas, então o esforço que uso é rapidamente devolvido em uma descarga de dores de cabeça. Nem mesmo tento mudar de posição, nem mesmo penso em tal opção. Minhas costas são como uma sinfonia latejante. A dor percorre todo o corpo, um pouco de sangue seco grudado ao meu rosto. Fios de cabelo claro caem sobre minha testa, desgrenhados.
Observo as palmas de minhas mãos, o lábio inferior de minha boca tremendo um pouco, machucadas com cortes e arranhões. Fixo o olhar na mancha roxa, quase amarelada, em meus pulsos. Meus calcanhares estão pesados, mas os grilhões se foram, substitutos pelo mesmo tipo de mancha arroxeada. Enquanto as abaixo de volta ao chão acabo esbarrando em uma pequena tigela de água, o conteúdo se espalhando pela alcova.
— Ela tinha mesmo o gosto de lama... — A voz é feminina, aguda, muito familiar e, as vezes, desagradável — Mas, infelizmente, era o único recurso disponível. — Uma risadinha fraca e forçada.
Neeagh.
— Por quanto tempo fiquei assim? — A indagação escapa antes mesmo que eu a perceba — Desacordada, quero dizer.
— Vossa Alteza já estava assim quando me trouxeram dois dias atrás — Ela nem mesmo pisca — Não sei dizer como não sucumbiu a febre... Estava tremendo nas ultimas horas. — Dois dias. Dois dias. Dois dias — A senhorita está aqui a uma semana e meia.
— In trud yanas astroe? — “E as outras yanas?” — O que fizeram com elas?
— Solaria e Samantha morreram no dia de sua apresentação, Alteza — Neeagh não demostra qualquer emoção ao dizer tais palavras — O restante acabou nas alcovas ao lado até hoje pela manhã, ou acredito que tenha sido pela manhã, e depois... Desculpe. — Se interrompe ligeiramente enquanto limpa a garganta — Acho que fiquei por ultima por ser a chefe das yanas, Alteza.
— Não precisa mais me tratar por tal termo — Murmuro ao soltar um suspiro dolorido — Não sou nada assim por aqui.
Silêncio.
Minha respiração parece pairar sobre minha cabeça, o frio transformando em fumaça. Encostando minha nuca contra a parede de pedra, engulo as palavras e questionamentos presos em minha garganta, minha consciência querendo se render novamente ao sono.
— Não foi sua culpa.
— Não sei se não foi. Você estava lá, viu o que aconteceu, me observou matar não apenas Solaria ou Samantha, mas também Ilirya e tantos outros da corte. — Uma pausa — E também é por isto que está aqui... — Silêncio — Acho que finalmente o deuses estão começando a cobrar por todo pecado que minha família já cometeu. Bateu em minha porta como um pedinte por abrigo, mas se instalou como uma tempestade.
Uma dor recorrente alastra minha espinha, minha carne em fogo vivo. Percebo que estou sobre uma palha suja, a sola de meus pés esbarrando em algo que não consigo identificar. Tudo está fedendo a urina, as paredes de pedra pintadas de vermelho sangue. Nenhuma tocha ilumina a escuridão absoluta deixando uma sensação de quase cegueira. Talvez eles estejam a espera da notícia de minha morte natural, através das péssimas condições, talvez não queiram falar abertamente sobre o castigo de sua rainha para com sua própria filha. No fim, no mais tardar da semana ou do dia, não existirá amanhã. Meu tempo está acabando. O rosto de Deana Darkstrom parece uma pintura amaldiçoada em minha imaginação, voltando e indo na escuridão. Seus olhos são mais afiados do que normalmente, seus cabelos dourados como folhas de ouro presos sob aquela cruel coroa e seu sorriso se abrindo a medida que revelam os dentes cheios de sangue. O meu sangue.
Que gosto ele terá em seu taça de ouro?
Tento levantar um pouco das costas para afasta-la da parede, a força a escapulir a medida que consigo me mover um milímetro. Suspiro, meu pulmão sendo ocupado por alguns grãos de poeira, e engulo o seco da garganta. A sonolência se instala novamente em meus ossos, entretanto mantenho os olhos bem abertos. Não consigo dizer o que é mais doloroso: Ficar acordada ou Sonhar. Os sonhos são tão terríveis quanto reais, tão perturbadores quanto sufocantes. Tanto sangue, tantos corpos, tantas lágrimas e gritos. O que preciso fazer? Todos estão certos?
— Não consigo uma resposta se os deuses de fato estão castigando-a por crimes feitos por sua família, mas... — A voz de Neeagh não é mais do que um murmúrio — Não se chame de monstro. Não tenha medo do que pode enfrentar. Não sinta... — Tenta se erguer com ajuda dos cotovelos — Não sinta demais ou sempre vai se enxergar como merecedora de todos os castigos que o destino pode aplicar. O medo é seu inimigo e a morte a consequência.
— Consequência? — Grito para a silhueta — Como a vida de outras pessoas podem ser uma consequência?
— Não há tempo para chorar ou berrar agora, majestade — Pisco — O tempo de uma de nós está acabando então pretendo falar rápido o suficiente para poupar folego — Conto os segundos até ela voltar a formular uma frase — Em um jogo de xadrez, em comparação, a rainha tem o poder absoluto. Seus movimentos são mais fortes, calculados e cheios astúcia. O objetivo dessa peça é proteger um rei, uma coroa, que pouco tem para se defender além de um monte de peões, cavalos, torres e sacerdotes.
Ela solta um gemido de dor, interrompendo-se por longos minutos. Consigo escutar sua respiração pesada, consigo perceber seus dedos tentando se agarrar a algo mesmo com toda a obscuridade.
— Que os deuses me salvem... — Sussurra entre um grunhido antes de voltar a mim — Sempre existem duas rainhas, dois reis, no tabuleiro. Para se conseguir vencer deve se apostar tudo, todas as peças, sob o comando da rainha. Se quer proteger sua coroa deve apostar tudo. O medo será seu inimigo para sobreviver e a morte se tornará a consequência.
— Não conseguirei sobreviver por tempo o suficiente para carregar mais das que já estão comigo... — De fora da cela chegou-me o barulho de ferro batendo contra o outro. Uma chave talvez — Chega de conversa.
Não consigo distinguir o mundo quando sou atingida pelo cansaço e pela dor, meus músculos ficando mais moles a medida que a porta se abre para revelar uma tocha fraca junto a uma silhueta alta e robusta. Um pouco de vergonha pinta cores em meu consciente adormecido, mas a ignoro a medida que minhas pálpebras se fecham aos poucos para o mundo resumido em paredes de pedra sob o castelo de meu pai, palha suja e fedorenta, fome, sede e a última dama que me resta. Minha mente e meus olhos ainda conseguem captar uma caixinha com correntes em sua mão esquerda, mas apago logo em seguida.
Os pesadelos dessa vez são curtos, lapsos de memorias e falsas e reais. Meu pai enrolado em um pano fúnebre, o sangue escorrendo de sua boca misturado a espuma do veneno, minha mãe com Ilirya ao seu lado enquanto me obrigam a virar um pedaço de vidro em meu estômago, o rosto de Ilirya quando a vidraçaria quebrou e então as malditas flores. Levanto em supetão, gritando com o efeito da ação.
Uma tocha está largada do outro lado, longe o bastante das palhas e dos tecidos, e acompanho para onde ela está apontando.
Neeagh.
Seu corpo está sangrando no piso, as mãos caídas em cima dos olhos, uma caixa, com um dos lados fechado com três tábuas que apenas me deixa ver o que ainda habita o interior, sobre seu estomago exposto. Existem três bolinhas de ferro, outrora extremamente quentes, que caíram em sua carne quando o carcereiro a virou. Consigo ver as correntes amarradas, mas logo desvio a atenção ao escutar os barulhos que confirmam minhas suspeitas.
Ratos.
Consigo ver seus bigodes saindo pelo espaço de tabuas, suas patinhas tentando empurrar seu impedimento de sair. O instinto natural ainda os está fazendo tentar fugir, percebo depois de notar outros dois surgindo em meio a carne aberta. Agora percebo por qual razão tinham colocado Neeagh na mesma alcova que eu, por qual razão tinham esperado meu despertar para dar um fim a Neeagh. A caixa de ratos é o aviso de minha sentença.
E o sangue de Neeagh é a tinta da assinatura de uma rainha.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top