IV

A chuva caí vagarosamente em meu capuz, meu rosto parcialmente escondido enquanto sinto gotas molharem minhas bochechas ao longo dos minutos. Lorde Kelman está parado bem ao meu lado esquerdo enquanto o capitão Ericlke se mantém ao meu lado direito. Testemunho os homens de meu pai tremerem por conta do frio, presencio Lorde Kelman tremer por conta do nojo e reparo em como minha rainha levanta o queixo em satisfação. Todos sabemos o que está por vir. O pátio aberto é uma mistura de terra batida, grama e pedras do antigo chão. Paredes da mesma pedra escura nós rodeiam e percebo que os anos deixaram sua marca nas mesmas. Portas arredondadas estão fixas em cada lateral e quatro janelas, finas e altas, ficam localizadas ao lado de cada uma. Algumas Yanas estão dispostas na porta sul, mas para elas não existe nenhum tipo de proteção.

Nenhum sinal de Ilirya.

Meu pai usa sua capa feita de pele e pelos de lobo. Uma tamanha crueldade, mas não que ele se importe. Sua coroa é dispensável, pois apenas sua enorme espada de prata e joias fazem justiça a sua posição. Zauro se aproxima aos poucos com seu pequeno e cruel sorriso. Seus cabelos estão colados a sua testa e suas mãos estão fechadas sobre eles com o único objetivo de afasta-los de seus olhos. Ele é o motivo de estarmos aqui, ou pelo menos é responsável por uma parte. Seus lordes mais confiáveis o acompanham, mas considerando suas expressões o mais certo é que a insatisfação é o sentimento que os descreve.

Uma semana e ele contínua aqui.

Vejo seu rosto com cada vez mais frequência nos salões, cada vez mais escuto seu nome sussurrado por minhas damas, cada vez mais a segurança é duplicada e cada vez mais ele insiste em permanecer na corte de Gworn. Por qual razão? - Imagino que está deve ser a pergunta mais frequente na cabeça de todos aqui.

— Meu rei.

A voz de Lorde Luckan, já considerado o próximo conselheiro de meu pai, retumba sobre o exorbitante aguaceiro. Sua cabeça se curva e seus joelhos cedem um pouco junto ao ruído de suas botas na lama. Nada além disso pode ser escudado: Nenhum escarcéu, nenhum estrépido.

In trud Hranwn Antsiuas — "É uma situação conflituosa" — O príncipe de Neveand deve estar presente.

Meu pai nada diz.

Ele ergue a mão esquerda, seus dedos tortos e finos brancos por conta da temperatura, e com isso Lorde Luckan se afasta um passo de volta para trás. Zauro caminha para meu lado com sua corte sempre seguindo seus passos. Meu capuz balança por conta do vendaval e abaixo um pouco mais os olhos para evitar a ardência.

Execuções são sempre longas, repulsivas e bárbaras. Seu propósito é sempre fazer o condenado sofrer mais por antecipação do que pela lâmina de um carrasco.

É assim que o mundo continua.

— Sua aparência é obscura, princesa. — Ele diz para mim, apenas para mim — Suponho que seja para combinar com a situação.

— Um governante não é feito para o mundo, meu príncipe, o mundo que é feito para ele. — Suponho que estou espelhando as exatas palavras que já me foram ditas em alguma aula — Não me considere uma criança. Meus pensamentos tem as mesmas bases que os seus, Alteza.

— Presumo que sim — Palavras falsas
— Presumo que sim. — Para um espírito tão espúrio quanto.

O céu está tão escuro quanto a noite. As pesadas nuvens se recusam a ir embora e cada dia parece ser um dilúvio. As notícias que chegam do reino contam que muitas pessoas já perderam seus bens e o mercado central não consegue funcionar normalmente para alimentar o restante. As chuvas são boas para as colheitas e para quem pode se manter aquecido e alimentado dentro de uma casa, mas é temível para todo o restante. Fixo o olhar nas cinzas da fogueira estão sendo levadas pela chuva.

— Fiquei sabendo de seu incidente. — Algo toca meu manto — Espero que sua saúde esteja melhor, pois não desejo me casar com uma inválida.

— Nosso casamento ainda não está acertado, meu príncipe. No entanto pense em como poderia ser pior... — A resposta é fácil, mas extremamente tola — O senhor poderia se casar com uma porca, se deseja alguém a sua altura.

Assisto a guarda de meu pai arrastar um homem em direção ao centro do pátio. Ele berra por clemência, seus gritos tão altos que me pergunto como consegue, e puxa o corpo para frente e para trás e para os lados na tentativa inútil de se soltar.

É como assistir uma minhoca se debater.

Suas roupas estão rasgadas, suas costas estão expostas e mostram as cicatrizes das oitenta e duas chicotadas que lhes foram dadas na noite anterior. "Não, por favor" é o que diz repetidamente. "Não, por favor, não" parece sua canção. Será que não suspeita que quanto mais implora, menos piedade eles irão ter? Como pode não suspeitar?

— Não a vejo faz alguns dias, Minha lady. É um tipo raro... — Sua voz parece cada vez mais baixa em meio aos urros — Uma dama da corte que não enxerga graça na corte.

Não se fala em meio a uma execução, príncipe.

Meu pai está agarrando o homem pelo braço, mostrando a ele o ultimo caminho que fará. Ninguém vai ceder nem mesmo uma pedra para apoiar sua cabeça. Trovões sacodem as pedras do castelo, relâmpagos cortam por suas torres. Uma gota de água está escorrendo por meu nariz e leva apenas um segundo para cair em meus lábios gelados. Sobre todo o barulho do mundo a voz de meu rei é tão clara quanto a luz de mil velas.

- Anarobn Feel, mestre mensageiro entre o reino de Gworn e o reino de Neveand, súdito traidor e filho malfadado de Nyla... - Pisco - Você é acusado de tentar vender informações para o herdeiro do trono de Neveand, de trair seu próprio rei e de tentar fugir da guarda enviada pela coroa. Anarobn, você nega tais acusações? - Os olhos do rei brilham de forma assassina, pois deseja mais um erro idiota do homem - Você nega tais acusações?

- Não, meu senhor.

Sinto a mão de Zauro agarrar meu pulso com violência e em um segundo escuto sua voz sussurrada em minha direção.

- Traidores são uma corja extremamente imunda, não acha? - Ele afirma mais do que indaga - Esquecem suas promessas, seu sangue e até mesmo esquecem daqueles que estão em uma posição com maior poder do que eles. Perceba, princesa, que os traidores são aqueles que, inconscientemente ou não, se consideram tão baixos que precisam destituir algo de alguém que lhe inflama os olhos.

Algo raspa minha pele.

— Alguns deles transformam esse sentimento em ferro fundido e lutam para conseguir alcançar, mas outros são covardes o suficiente para vender informações que destroem até mesmo o que tanto desejam. — Prendo os lábios — Pois se eles não podem ficar com o que anseiam por qual razão outra pessoa ficaria? — Uma risadinha baixa — Por felicidade, ou infelicidade do destino, este homem não é um deles.

Sua ultima frase é tão sussurrada que tenho a completa certeza que ela é audível apenas para mim e para a sua corte ao nosso redor.

— Ele não fez o que você nos disse que ele fez. Estou errada, meu príncipe?

Falo ao mesmo tempo que meu pai.

Anarobn Feel, po'e tus fragnos in Arendt resne int deprived I des droits nai infre of Nyla. — "Anarobn Feel, por seus crimes você é destituídos de seus ditos como filho de Nyla" — Segundo a lei você está privado das elocaçoes de honra, mas pediremos a Nyla para guiar sua alma até os portões do sete infernos.

P-Piedade.

— Acha que já não estou lhe presenteando com ela?! Existe situações piores do que a morte! — Ele ergue o queixo — Eu sou o reino e o reino sou eu.

Quero virar para olhar nos olhos de Zauro, quero ver que emoções correm por seu rosto.

— Falou algo que não aconteceu, não é mesmo? Mandou um homem inocente para a morte... — Passo a língua pelos lábios - Que tipo de rei pretende ser? — Um sacerdote fecha os olhos para dar início a uma enolocação e percebo que todos o acompanham, no entanto meus olhos estão abertos, focados demais no pobre homem para repetir as duras palavras ou seguir seus atos.

— Como acha que sua linhagem conseguiu manter-se durante tanto tempo, minha lady?  — Suponho que ele tenha sua maldita razão — Entretanto não falei uma completa mentira. Ocultei mais do que menti.

— Como?

— Ofereci trinta moedas de ouro para o tal Anarobn, ofereci uma boa vantagem para sua vida em troca de uma pequena informação sobre está corte, pois qualquer informação em um território desconhecido é mais valiosa do que qualquer uma das riquezas que me acompanham. — Sua corte, com toda certeza, escuta nossas palavras sussurradas, mas sua indiferença parece tão genuína que quase acredito — Sabe qual resposta recebi? — "Po'e tu fragnos" Dita o sacerdote, "Po'e Gworn" Dita meu pai logo em seguida — Acho que o homem não percebeu que sua lealdade a esta corte me séria mais útil do que qualquer palavra que ele poderia ter falado. Ele poderia ter usado o dinheiro como estivesse em seu desejo e ainda ficaria com a cabeça ligada ao pescoço.  — Ele parece ponderar cada pensamento, formular cada frase com cuidado — Quando quero usar alguém para meus propósitos eu apenas uso, não me importa como. — O sacerdote se afasta, suas mãos velhas tremendo e seus olhos ainda fechados por conta do peso das gotas de chuva - Lealdade significa perigo, Alteza. Alguns tendem a usa-la com uma escalada e trocam sua fidelidade e honradez por recompensas e favores, outros são realmente dignos ao ponto de absorver essa característica. Entretanto, seja uma lealdade vendida ou não, todas essas pessoas sempre acabam da mesma forma.

Os guardas estão prendendo os pulsos de Anarobn com correntes de ferro, puxando com tamanha força para os lados que até parecem querer o dividir ao meio. O rei se aproxima no pátio, aproxima-se do homem já derrotado. Seus dedos correm a lâmina da espada, cobrem os símbolos gravados. Um rei aplica a sentença até o final.

Um.

Ele abaixa a espada pela primeira vez, mas ainda está longe o suficiente para apenas arranhar a pele do sujeito.

Dois.

A espada rasga um pouco da carne e os gritos de suplício chegam até depois das muralhas. O sangue já desce como uma fonte por suas costas marcas e neste momento as correntes são puxadas com força, mais e mais forças.

— Não precisa olhar, minha Lady.

Seguro o olhar, será pior se não o fizer.

Três.

O último golpe faz a cabeça se separar do corpo. A parte decepada caí sobre o piso de pedra e o marca como tinta vermelha em meio a uma figura. Entretanto, diferente daquelas retratadas nas paredes dos templos ou em algum livro, está será uma gravura apenas em minhas memórias.

Uma que apenas eu irei lembrar.

Sei que para meu pai é apenas mais uma consequência de tramóias políticas, consequência de seus poderes de justiça e de seu dever maior... E talvez seja. Não é a primeira vez que o vejo fazer isso e não é a primeira vez que tento conter meu asco e não é a primeira vez que testemunho uma injustiça. No entanto é a primeira vez que sinto uma morte dançar entre meus dedos. Que a sinto correr por minhas veias. Um sonho e um pesadelo misturados em uma mesma emoção.

Clap. Clap. Clap.

Clap. Clap. Clap. Clap.

Então olho novamente para meu pai — suas roupas respingadas de sangue assim como seu rosto — O escuto me chamar, escuto sua voz pronunciar meu nome mesmo que seus lábios nem mesmo se movam. Mas a voz contínua, o som se afastando e se tornando obscuro. Meu exterior congela, mas em meu interior queima e quero responder a essa voz, quero dançar com essa vida que se foi.

É isso que pretendo me lembrar.

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