• Vinte e um •
– Jamais – declaro, ultrajada. – É óbvio que Harry Potter ganha tranquilamente de O Senhor dos Anéis. Não existem comparações plausíveis nesse caso.
– Concordo absolutamente. O J.R.R. Tolkien criou o complexo mundo da fantasia, do qual a J.K. Rowling se apropriou, e para quê? Inventar um menino com uma cicatriz estranha, que porta um graveto com poderes – ele exibe uma expressão altiva.
– Claro, como se a obsessão por um anel fosse muito mais aceitável. Não seria mais fácil simplesmente visitar uma joalheria? – solto e reviro os olhos.
– Por favor, não lance um feitiço em mim, mas acho que não chegaremos a um acordo hoje. A menos que você enxergue o óbvio, claro. – Céus, ele consegue ser irritante quando quer.
– Não se preocupe, deixei a minha varinha em casa. Assim posso ser tão normal quanto o Frodo e tão cansativa quanto qualquer um dos outros personagens que ninguém decora o nome – ele ergue uma sobrancelha, pronto para mais uma rodada. Entretanto, eu tenho planos diferentes. – É fato que não haverá acordo. Mas que tal uma trégua? Um lugar majestoso nos aguarda e, dessa vez, duvido que discorde de mim – não continue, Catarina... – Muito embora tenha gostos peculiares e escolhas questionáveis – finalizo, sem a menor necessidade.
Okay, admito que não gosto de perder. É um péssimo traço de personalidade, porém estou trabalhando nisso. Graças ao céus a vida cristã é uma caminhada, se fosse uma corrida eu já estava eliminada.
– Veremos – declara com um olhar enigmático.
Após as revelações do Henry acerca do seu passado, eu simplesmente soube o caminho a seguir. Ele queria um lugar para recomeçar e, honestamente, eu conheço o espaço ideal. Depois de jantarmos na Sweets & Books, dirigimos por cerca de vinte minutos e chegamos ao paraíso.
– Certo, agora feche os olhos – ele me encara, intrigado. – Vamos, homem, está com receio de eu sequestrá-lo, por acaso? – ele sorri e obedece. Seguro a sua mão e o guio por entre flores e arbustos.
– Já posso abrir?
– Não.
– E agora?
– Ainda não, Henry. Curioso e ansioso, vou lembrar de adicionar essas características a sua lista.
– Eu tenho uma lista?
Permaneço em silêncio, ruborizada. Por sorte está escuro e ele mantém os olhos fechados. Céus, a vergonha já está se tornando uma presença constante. Nunca tivemos um relacionamento tão íntimo.
– Fluffy...
– Sim, Henrique, você pode abrir os olhos agora – falo, soltando a sua mão. Estranhamente, sinto uma sensação eletrizante quando os seus dedos roçam nos meus. Atrito, claro. Provavelmente é isso... certo?
– Finalmente! Eu já estava... – ele para. Seu semblante é um misto de descrença e contemplação. Assisto a sua respiração lentificar e um sorriso extasiado aparece em seus lábios. – Ansioso – completa com um tom maravilhado. – É incrível, Cat.
– Como eu disse – ele ergue uma sobrancelha para mim. Dou de ombros e sorrio. – É um dos meus lugares favoritos no mundo.
– Entendo perfeitamente a razão.
Nos sentamos em silêncio e ouvimos a natureza. O Rio Dourado carrega o poder de transmitir serenidade e equilíbrio. Suas águas são tranquilas e pacíficas. Os sons do vento e do farfalhar das folhas acalmam a alma mais inquieta e trazem ânimo mesmo aos desesperados. Próximo às montanhas, foi o marco zero da criação de Águas Douradas. O ponto exato no qual a primeira família se fixou, gerando uma comunidade unida e posteriormente nossa amada cidade.
– Quando eu era criança – inicio, lentamente, mergulhando em uma nostalgia prazerosa –, meu pai me trazia aqui. Ele contava que quando o meu bisavô contemplou essa vista pela primeira vez, soube que Deus dera o start em seu propósito na terra. Neste lugar, fundou a Fruto do Espírito, se apaixonou perdidamente pela mulher mais encantadora do mundo, cuidou de uma família e amou cada nascer do sol, porque antes de traçar um destino, ele estabeleceu sobre essas pedras o seu coração. Eu sempre acreditei que há uma atmosfera propícia para a construção de vidas novas pairando no ambiente. Então, talvez, seja o local perfeito para ser o primeiro passo na edificação do seu recomeço. Um marco do futuro já preparado pelo Pai, único e especialmente, para você.
Me volto para o Henry e percebo que ele me encara fixamente. Sinto o meu estômago revirar de ansiedade. Há algo diferente na forma que os seus olhos varrem o meu rosto. É como se ele enxergasse... mais.
– Obrigado, Cat – posso sentir o tom emocionado em sua voz. Ele abraça os joelhos, enquanto observa o rio. Ouço-o sussurrar para si mesmo: – Obrigado, Deus. – Permanecemos quietos por mais alguns minutos. Ele é o primeiro a romper o silêncio. – Sua família é um tanto animada, não? Além de um munícipio e uma igreja enorme, se aventuraram em mais algum projeto de marcenaria? – Questiona, irônico. Seu bom-humor rotineiro estava de volta.
– Meu bisavô construiu esse gazebo – aponto para um gazebo feito em madeira escura, recoberto de flores coloridas e um tecido branco fluido. Ele maneia a cabeça, descrente. – Foi um presente de noivado e o local no qual propôs casamento a sua amada. Eles gravaram as iniciais em um dos pilares. A partir de então, esse fato tornou-se uma tradição na família Benedetto. Já são três gerações com o amor cravado em madeira.
– E qual dos quatro pilares você prefere?
– Eu não tenho uma opinião formada, na verdade.
Não é difícil supor que Mari será a próxima a ter as suas iniciais gravadas. Fato que considero excelente, pois além de cumprir o legado, dará aos meus pais o orgulho que definitivamente não garanto fornecer. A menos, é claro, que Deus tenha planos diferentes e me surpreenda. Algo que eu não duvido. Ele é especialista em realizar o inesperado.
– Perfeito. – Oi? – Gosto mais do pilar da frente, lado esquerdo. Fica bem posicionado em direção ao sol – declara, despreocupado. Levo um minuto para alcançar a compreensão total do seu comentário. Quando entendo, o presenteio com um tapa em seu braço direito. Ele ri. – A minha família também tem uma tradição associada ao casamento, sabia?
– Verdade? Nunca imaginei que os Prinz fossem românticos inveterados.
– Imaginou certo. Na realidade, a herança está ligada ao parentesco da minha mãe. Na época da Guerra Civil Espanhola, em 1936, o noivo da senhorita Olívia Ávilla foi convocado como soldado. Separados por uma conjuntura histórica que ultrapassava o profundo desejo de estarem juntos, eles decidiram se comunicar por meio de cartas. Durante os dois anos seguintes, as correspondências mantiveram-se ativas, no entanto, em 1938, elas simplesmente pararam de chegar. Um ano depois a guerra encontrou o seu fim, porém, Santiago Lopes jamais retornou para a sua amada. Cansado de ver a bela filha esperar e chorar a ausência de um, possivelmente, falecido, o senhor Ávilla decidiu casá-la com outro homem.
– Não! Eles precisam ficar juntos – choramingo, sem perceber que exibi a minha veia mais romântica em voz alta. Diante do meu tom sobressaltado, Henry solta uma risada. – Desculpe, pode continuar – estimulo, ruborizada. Mais uma vergonha para a lista... Pai Eterno.
– Como eu dizia, mesmo presa a uma ordem do pai, ela permaneceu determinada a não aceitar que o seu primeiro e eterno amor estivesse morto. Sendo assim, confiante em Deus, Soberano sobre todo o universo, ela escreveu uma última carta endereçada à Santiago e deixou aos cuidados de uma grande amiga, a fim de conservá-la em segurança distante dos olhos paternos. Meses depois, durante a cerimônia do matrimônio arranjado, uma voz ecoa nas paredes da igreja. No entanto, antes de identificar o portador, Olívia reconhece o texto narrado. Santiago Lopes adentra o prédio lendo a carta que ela escrevera. Diante de uma plateia chocada, ele compartilha suas desventuras na guerra e afirma que, embora destinado a encontrar-se com a morte por um terrível ferimento adquirido em combate, ele não havia desistido de lutar, pois o seu amor imensurável pela noiva o impeliu a vencer as impossibilidades, até que estivessem reunidos novamente. Eles se casaram, e a partir de então, todos os Lopes escrevem uma carta, guardam em confiança com um amigo e no dia do casamento, presenteiam o cônjuge. E esse é o fim, Fluffy, você pode respirar agora.
Sim, eu estava tão completamente envolvida com o drama do casal, que mandei os meus pulmões trocarem o ar bem lentamente para não me atrapalhar. Mas jamais irei admitir.
– Você inventou essa história agora, certo?
– Cat, realmente acredita que eu teria tamanha criatividade? – Questiona, com um semblante despretensioso. Consigo identificar um dose considerável de ironia em sua voz.
– Definitivamente – respondo, desconfiada.
– Nesse caso – ele sorri de modo misterioso –, terá que decidir por si mesma.
Ele ergue uma sobrancelha com o claro intuito de me desafiar. Henry é bom em esconder os próprios pensamentos, enquanto desvenda facilmente os meus. Esqueça, não vou entrar em uma batalha para perder... seria estupidez. Pondero e decidir seguir um caminho neutro.
– Não importa. Seja como for, é uma excelente narrativa – finalizo com um semblante inocente. Ele sorri diante da minha estratégia de combate. Okay, o importante é competir, mas admita que ganhar é muito melhor.
– Obrigado. A propósito, você sabia que Lopes significa corajoso? Não me surpreende que eu seja detentor desse sobrenome.
– Surpreende a mim. – Ele me lança um olhar indignado. – Prinz também possui origem espanhola?
– Não, germânica. Meu pai tem descendência alemã.
– E o que significa?
– Eu não vou dizer.
– Por quê?
– Você vai rir.
E nesse exato momento, ela gira a chave da curiosidade em minha mente. Adeus, eu jamais o deixarei ter paz.
– Claro, que não. Por favor, me conta.
– Não. Esqueça.
– Agora é uma missão impossível. Por favor, Henry, eu não vou rir. – Ele me encara com uma descrença evidente. Garoto esperto. – Certo, eu vou rir, mas por dentro. Você nem vai perceber.
– Quanta generosidade. Está bem – ele suspira antes de prosseguir. – Prinz significa príncipe, em alemão. Satisfeita?
– Sim. E eu achei muito fofo.
– Sério, só isso?
– Claro... Pensa que eu seria louca de ir contra um nobre? Jamais. Estou honrada de ter a presença da realeza comigo esta noite. Até por motivos de segurança devo permanecer em silêncio. Imagina se o príncipe fica chateado e decide me enviar para a forca? – finalizo, sarcasticamente.
– Muito engraçado – ele revira os olhos. Okay, não tinha como pular a gracinha nesse caso. A piada já estava pronta, eu nem precisei me esforçar. – Eu não deveria ter confiado em alguém que acha Jane Austen superior à Conan Doyle.
De fato. Eu aprecio imensamente Sherlock Holmes. Porém, é elementar meu caro Watson, que ninguém compete com o Mr. Darcy em meu coração. Checo a sua expressão e percebo que estou perdoada.
– Agora é minha vez. O que significa Benedetto? – Sorrio.
– Abençoada, em italiano – declaro, orgulhosa. – E boa sorte em fazer uma piada com isso. – Ele cruza os braços, ressentido.
– Ponto para você, Katzen. – Franzo o cenho, confusa diante do novo apelido. – Katzen é o termo para gato, em alemão. Melhor do que o inglês, não acha?
Melhor do que Fluffy, definitivamente. Se ele continuar a me nomear nessa velocidade, em um ano terei uma quantidade de apelidos superior ao número de habitantes da cidade. Calma, eu realmente quero que fiquemos próximos por tanto tempo? Coro sem saber ao certo a razão e mal escuto sua próxima pergunta.
– De qual parte da Itália descende a sua família?
– Verona – solto, distraída, e me arrependo em seguida. Ele sorri. Ah, não... Perfeito. Declaro aberta a temporada de piadas.
– Impressionante. Amante dos conta de fadas e agora isso. Estou impactado por você ter uma descendência baseada no romantismo, dado o fato de ser assim tão... dócil – completa, com sarcasmo. Eu mereço por gastar o meu tempo pensando aleatoriedades sem sentido. Cruzo os braços, irritada.
– Verona não é composta apenas de Romeu e Julieta. – Ele ergue a sobrancelha, cético. – Também há... arquitetura. – Ele solta uma gargalhada.
– Você pode fazer melhor do que isso, Katzen.
– Certo, eu admito que tenho alguns problemas com essa história, em particular.
– Verdade? – Ele parece sinceramente surpreso. – Por quê?
– Eu nunca entendi toda essa comoção ao redor da obra. Não estou tentando desrespeitar ou criticar Shakespeare, o homem de fato tem talento. Só não consigo compreender por que eles simbolizam mais um amor verdadeiramente profundo, do que uma comunicação ineficiente, um egoísmo exacerbado e uma imaturidade explícita. Eles não morreram por amor, morreram por engano. O amor não deveria matar alguém, na verdade, não deveria causar dano algum. É bastante simples: se traz sofrimento, então não há amor, e ponto! – finalizo o discurso, decidida. Henry fica pensativo ao meu lado... e sério, algo definitivamente incomum.
– Eu discordo de você. – Como?
– Então, acredita na veracidade do amor deles?
– O quê? Ah não, nisso você está absolutamente certa. O que falta a eles em equilíbrio emocional, sobra em drama, ansiedade e desespero. – Gostei da análise psicológica. – Qual o sentido de encontrar tempo para comprar um frasco de veneno, mas não para conversar com o frei, que sabia do plano? Na minha concepção diálogo ganha facilmente de morte. – Eu rio. – No caso, me refiro a segunda parte da sua fala. O amor pode nos fazer sofrer, provavelmente fará. Não é o que declara 1 Coríntios 13:4?
– Bom, sim, mas...
– Sinceramente, acredito que o real problema reside no fato de as pessoas não compreenderem o que verdadeiramente é o Amor. Ele não é um sentimento tolo ou fugaz, não é sinônimo de romance, não é uma paixão intensa, ou uma chama incontrolável, mas é uma decisão diária. Cristo escolheu sofrer a nossa morte para que fossemos presenteados com a sua vida, a fim de hoje sermos chamados filhos de Deus. Isso não se trata de merecimento, e sim de graça, de misericórdia, de bondade... e de amor. A cruz foi o maior exemplo que o Pai nos deu. Nós amamos, porque aprendemos com Ele. Amamos, porque Ele nos amou primeiro. Esse é o tipo de amor que precisa arder em nossos corações: o que tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta, e jamais acaba.
– Não posso discordar de você – admito, finalmente.
– Sabe, Katzen, quando amamos alguém profundamente desejamos que ela siga apenas o caminho correto, que nunca nos decepcione, que esteja sempre ao nosso lado e que viva eternamente. No entanto, quando isso não acontece... sofremos. Como se não bastasse, também podemos ser magoados por amor ao Pai. Muitas vezes, para obedecer à Sua voz e às Suas palavras, é necessário renunciarmos alguns sentimentos... ou algumas pessoas. – Meu coração acelera e um único nome surge em minha mente: Arthur. – E mesmo sabendo que o propósito dEle é perfeito e agradável, somos feridos. Isso não seria sofrer por amor?
Fico em silêncio e ele abre um meio sorriso... Presságio de ironia.
– Você está muito pensativa, Katzen. Não fique constrangida em assumir que estou certo. Já estou habituado.
– Continue sonhando – porém, suas palavras queimam em meus pensamentos. Eu certamente irei ponderá-las, mas não agora. – Henry – ele se volta para mim e seus olhos exibem um lindo brilho dourado –, obrigada pelo convite. Eu me diverti muito – para dizer o mínimo.
– Eu que deveria agradecer. Esse é o ponto de partida para o meu recomeço – ele me encara de modo simultaneamente suave e intenso. Minha respiração falha... estranho. – Estou grato por você fazer parte dele – seu rosto se aproxima do meu. – Não pensaria em ninguém melhor.
Alguém mais sentiu um climinha ou foi só eu?
Se está gostando dessa estória, que tal deixar uma estrelinha tão brilhante quanto você?!
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top