• Um •

– Não, é sério isso? Essa garota só pode desconhecer o significado do termo amor próprio! Como assim ela vai aceitar ele de volta?

– Catarina – a voz melodiosa da Mari, ressoa estranhamente irritada. Não consigo imaginar a razão. – Pode, por favor, fechar a boca? Eu quero assistir ao filme. Você prometeu que não ficaria reclamando dessa vez.

– Em primeiro lugar, eu não estou reclamando, estou apenas constatando a fragilidade emocional da protagonista do filme. E depois, não estava no nosso acordo eu ficar calada assistindo a uma garota sofrer e sofrer, ser traída e ser traída de novo enquanto sofre, e aceitar o desalmado simplesmente porque ele cortou as quatro bordas de um pão de forma – Céus, isso me revolta.

– Isso vai muito além das bordas do pão! Você precisa mergulhar na história. Era o que a mãe dela, que faleceu, fazia quando ela ficava triste: sanduiche de pão de forma, com duas fatias de queijo prato, uma de peito de peru, sem as bordas, para ficar perfeito. E ele lembrou!

– Ah, mas por que você não me explicou antes, Mariana? Eu não sabia que um misto quente de dois queijos e sem bordas tinha o poder de curar infidelidade. Agora, está tudo explicado! Vou lembrar de compartilhar isso com o Matias.

– Quer saber? Eu desisto, Cat. Você não gosta de romances, então por que insiste em assisti-los?

– Você me disse que a narrativa se passa na Londres do século passado, não é mesmo?

– Sim. E, então...

– Gosto de ver prédios antigos – rebato com um sorriso pretensioso.

Essa foi demais para a minha irmãzinha. Com uma revirada de olhos, que ela imagina demonstrar toda a sua exasperação por eu repetir pela milésima vez a mesma desculpa, ela se volta para a televisão e aumenta o volume. Isso indica que a conversa acabou e que ela me dará um longo gelo de quinze segundos.

Nesse momento você deve estar imaginando: essa jovem claramente possui problemas com o amor. Bom, eu discordo. Sou um tanto resoluta e exigente quanto as questões do coração? Sim. Mas,  sinceramente, eu não desgosto dos romances. Eu apenas não aprecio os exagerados, ou os mal escritos, ou os muito falsos, ou os que terminam em morte. O que há de tão grave nisso? Até porque, em minha defesa, eu sempre dou uma chance a eles, aos novos e aos antigos. Assisto tudo caladinha, até que fica muito esdruxulo e eu preciso dividir com o mundo toda a minha frustração.

Está bem, admito que o mundo basicamente se resume a minha irmã, e que isso acontece nove a cada dez vezes, no entanto, por que a responsabilidade deve ser minha e não de uma indústria cinematográfica corrompida? Segundo a minha irmã, é porque sou eu que moro com ela, mas no dia que a indústria cinematográfica corrompida se mudar para a nossa casa, ela dará uma dura neles. Eu sei, piadinha sem graça. Porém, ela se sente em seu próprio stand-up comedy quando fala isso.

Volto os meus olhos para o filme e o feliz casal está brigando de novo. Para a minha sorte, eles resolveram discutir os termos do relacionamento abusivo em frente a Elizabeth Tower. Mais conhecida como Big Ben, a torre é um dos símbolos de destaque do Reino Unido. Foi inaugurada em 1859, e a sua construção foi inspirada no estilo neogótico. Com exceção da morte do Rei Jorge VI e da abertura dos Jogos Olímpicos de Verão de 2012, badala no mesmo horário exato todos os dias. Como eu sei disso? Primeiro, eu amo essa torre, segundo, eu sou arquiteta.

Bom, não uma arquiteta de verdade, pelo menos ainda não. Mas sou uma orgulhosa integrante do sexto período do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Águas Douradas. A propósito, essa é a minha cidade. Um interior composto por uma enorme população de dez mil habitantes, que cresceu próximo às montanhas e ao rio que lhe dá o nome.

Por que Águas Douradas? Conta a história, que os primeiros a se aventurarem por essas terras perceberam que durante o crepúsculo, ao pôr do sol, surgia na água um reflexo da cor de ouro que deixava todos encantados. Sendo assim, quando a cidade foi fundada em 1930, o nome pareceu bem óbvio. Sim, eu admito que não é muito criativo ou empolgante, porém, a maravilhosa atmosfera que cobre cada recanto do ambiente é incontestável. Aqui todos se conhecem. Pela manhã, se distribuem alegres bons dias e lindos sorrisos. Na chegada da lua, carinhosos abraços acompanham os desejos de boas noites e bons sonhos. E então, no dia seguinte, o ciclo recomeça.

Na época do Natal, a cidade é colorida por enfeites e luzes. Músicas festivas são ouvidas em cada estabelecimento, e mantimentos, como alimentos e cobertas, são distribuídos aos desabrigados e necessitados. Ao passo que no dia de Ano Novo, depois dos pequenos festejos familiares, à 1:00 da manhã, toda a população se reúne em frente ao rio para assistir ao festival de fogos de artifícios e, compartilhar o incrível banquete formado por inúmeros pratos e bebidas agrupados pelos animados residentes. Sim, tudo na nossa cidade possui muita comida envolvida! Aqui as pessoas associam felicidade a três pontos: o amado rio, a abençoada população e a deliciosa comida.

Agora, quando se trata do clima, eu me sinto obrigada a revelar que essa não é a nossa maior qualidade. Durante o verão, o meu único desejo é me abrigar dentro do freezer, e durante o inverno eu gostaria de ter a capacidade de buscar o sol, porque ele aparenta simplesmente desaparecer, sem dar aviso prévio, sob uma espessa camada de névoa e forte chuva, tornando o vento cortante e o céu nublado uma constante por seis extensos meses.

Sim, exatamente isso, não temos uma primavera glamurosa ou um outono folhoso, ao contrário, temos um verão e um inverno mais amenos, respectivamente. A boa notícia é que passo seis meses usando sobretudos e botas de cano longo. Acredite, eu fico muito elegante e madura nessas roupas. É como o meu pai sempre diz: acima de toda tempestade existe um sol reluzente esperando para sair. Essa sou eu, bem brilhante e sofisticada nos dias em que o céu está prestes a desabar.

Na verdade, declarar frases sábias é a descrição perfeita das atitudes habituais do meu pai. Leonel Benedetto é seguramente o melhor homem que conheço. É muito inteligente sem ser arrogante, é gentil sem deixar de ser firme, é corajoso sem ser tolo, e amável sem abandonar a honestidade. Como eu disse, facilmente o melhor homem do mundo. Ele comumente alega que eu e Mari somos os mais incríveis presentes que Deus o concedeu, além da minha mãe, é claro, por quem é completamente apaixonado mesmo após vinte e oito anos de casado. Não que seja algo surpreendente, Hanna Benedetto é um ser humano simplesmente admirável. De forte personalidade e terna doçura, todas as adversidades que passou foram como um estímulo para o seu crescimento humano e espiritual.

– Não importa o que você diga, Cat, achei esse filme sensacional. A mudança motivada pelo amor é sempre a mais linda e duradoura – Mariana declara de maneira vencedora. Mal percebo que o célebre casal encontrou o seu fim. Amém, Deus.

Estou pronta para rebater, entretanto, após os incontáveis suspiros da minha irmã, compreendo que a discussão está encerrada. A bem da verdade, eu sempre admirei a capacidade que ela possui de encontrar bondade ainda que nas pessoas mais difíceis e, sinceramente, está tarde demais para discutir.

– Boa noite Mari – declaro, por fim –, não esqueça de orar antes de dormir. – Minha irmã sorri antes de subir as escadas com ar sonhador.

Para ser honesta, não é que eu discorde completamente dela. Na minha opinião, o amor é realmente o único capaz de causar mudanças sinceras e permanentes na vida de alguém. No entanto, eu não creio que o amor terreno tenha essa potencial, ou que seja a função de uma pessoa passar a vida sofrendo até que o outro descubra finalmente a veracidade dos seus sentimentos e encontre a luz. Não, isso não é amor. Não, Deus não deseja isso para mim. Não, nem por todas as fatias de pão do mundo. E se é isso o que me aguarda, eu prefiro ficar sozinha!

Olá olá, estrelinhas...
Sejam muito bem-vindos ao mundo da Cat!! O que acharam da nossa protagonista?

Se está gostando dessa estória, que tal deixar uma estrelinha tão brilhante quanto você?

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