• Trinta e oito: parte um •
Okay, admito que o clima entre nós não é um dos mais agradáveis. Definitivamente, não é um passeio no parque em um dia de primavera, pelo contrário, está mais para uma noite de nevasca no cume do Himalaia: frio, distante e sombrio. Me esforço para sorrir, enquanto a Lis exibe uma feição que eu não nomearia exatamente de amigável.
Há quinze minutos, a Sra. Beatriz nos serviu um café e resolveu se retirar, sob livre e espontânea coerção por parte do Vini, que a convenceu sabiamente a realizar um tour pela fazenda. Sinto uma pontada de inveja. Gostaria de poder me juntar a eles, já que até a companhia da galinha raivosa Ginger é preferível ao olhar macabro com o qual a Lis me fuzila. Escuto-a depositar a xícara com excessiva força sobre a mesa e obrigo a minha mente divagante a retornar para o meu corpo ansioso. Parece que estou na cadeira dos réus, enquanto ela me julga e condena. Será que tenho direito a uma ligação? Gostaria de chamar o meu advogado, por favor.
– Bom, Catarina – ela rompe o silêncio desconfortável, mas o seu tom cortante como aço me faz sentir saudade dele –, se veio aqui esperando um agradecimento pelo ocorrido, eu sinceramente...
– Perdão, Lis. – Oi? Então, amigos, é isso. Os olhos da Elise crescem e à medida que a sua boca abre e sua mandíbula é projetada para frente, a sua face assume um tom puramente chocado. Mais alguém está assim? – Elise, você pode me perdoar? – Repito.
– Como é?
Sinto que finalmente ela soltou as tochas e as pedras que tinha preparado. Posso ouvir um amém?
– Eu errei com você e sinto muito por isso – minha voz é firme e clara. É fato que as minhas mãos tremem como se eu tivesse Parkinson, mas se estou transparecendo uma serenidade inexistente em meu ser, tudo okay. – Você estava certa.
O silêncio impera soberano. Pela primeira vez desde que nos conhecemos, assisto a brilhante advogada a minha frente apresentar dificuldade em articular as palavras.
– Você estava certa sobre o que disse na Sweets & Books. Eu não sou exatamente a Miss Águas Douradas, não tenho uma inteligência digna do Nobel da física e a minha personalidade é ali, bem próxima do comum. Não vou a festas, não entendo de música ou de moda, acredito que comida cabe em todas as ocasiões, até mesmo em velórios, e definitivamente não considero dormir uma perda de tempo. Não faz sentido o Arthur, entre todas as opções, desejar um relacionamento amoroso logo comigo. – Ela franze o cenho, completamente confusa pela minha súbita e inexplicável crise de honestidade. – No entanto, nunca foi sobre mim. E o meu erro foi privá-la dessa verdade.
Ela morde o lábio inferior. Assisto as engrenagens do seu cérebro funcionarem ativamente, decidindo se realmente vale a pena permanecer nessa conversa insana ou se é mais aconselhável simplesmente levantar e ir embora. Aparentemente, a curiosidade ganha a árdua batalha. Obrigada, Deus.
– Onde está tentando chegar, Cat?
– Lis, a verdade é que o Arthur não foi atraído pelos meus belos olhos castanhos ou pelo ninho de passarinho mal arquitetado, que dia sim, dia não, ocupa a minha cabeça. Ele procurava algo mais profundo. Ele precisava de...
– Por favor, Catarina – ela me interrompe, exasperada. Seus olhos reviram, impacientes, exatamente como supus que seria. – Não vai tentar me falar sobre religião agora, certo? – Abro a boca, porém ela não me deixa prosseguir. – Deixe-me refrescar a sua memória. Você falava sobre um erro. Um tal equívoco que alegou ter cometido. – Minha paciência começa a se extinguir e por um segundo esqueço a razão que me trouxe a esse fim de mundo. Que desperdício do meu precioso tempo. – Como se a princesa Catarina Benedetto tivesse a capacidade de ser menos do que perfeita.
Já chega, Deus. O Senhor viu que eu tentei. Estou a ponto de levantar, irritada, quando ouço em meu interior uma voz suave e melódica: "como pode ver, Cat, não sou perfeito como você imaginava." O que? O tom do Henry ressoa em meus ouvidos tão audível que ele aparenta estar diante de mim, e revivo a noite da nossa discussão como um déjà-vu.
Perfeição. Essa palavra decidiu me perseguir. Eu não entendo o que... Meu Deus. É apensas uma sensação ou a Terra realmente cessou o seu movimento? O mundo ao meu redor parece mais lento, mais calmo, mais... claro? Repentinamente, todas as peças se encaixam em minha mente.
– Elise, você me acusou de observar a vida sobre um pedestal, e quer saber? Estava absolutamente correta. – Ela me encara abismada. Acredite, Lis, você não pode estar mais chocada do que eu. – Sabe, não existe alguém justo o bastante a ponto de não precisar da graça. – E nesse momento as palavras do Vini, de tão reais, se tornam quase palpáveis. – Não há uma hierarquia entre pecados, exceto a que criamos em nossa própria mente. Todos cometemos erros, inclusive eu.
Ela bufa, descrente. Okay, Pai, está na hora de ir mais fundo. Inspiro com força e preencho os meus pulmões com o ar limpo da fazenda, enquanto a minha mente é inundada de convicção e o meu coração de coragem.
– Para ser franca, as suas palavras me magoaram intensamente – digo com os braços cruzados, enquanto a minha companheira desvia os olhos dos meus. Cave mais fundo, Catarina. – Cada uma das suas frases foi cruel, massacrante e dolorosa. No entanto – ela volta a me encarar, dividida entre curiosidade e incerteza –, não importa mais. – Observo a surpresa transfigurar a sua expressão. Ela não esperava por isso. Bem-vinda ao clube, eu também não. – Decidi que não serei mais refém do ressentimento. Eu não quero mais estar com a razão, e definitivamente... não me interessa mais estar certa.
– Eu não entendo... – ela se interrompe. Parece que consegui a sua atenção, afinal.
– Naquela noite, no beco escuro por trás da boate, finalmente percebi que há algo mais valioso do que as suas ofensas ou as minhas necessidades. Finalmente, tirei a visão de mim e passei a olhar para Ele. Porque fui eu a ir até orfanato, e não os meus pais ou a Mari? Por que deixar o carro em uma noite congelante de inverno? Por que voltar para casa por um trajeto que nunca sigo? Como pude ouvir a sua voz tão fraca, tão distante? Nada disso faz o menor sentido, exceto que... ninguém explica Deus.
Ela ergue a cabeça, confusa.
– O que o mundo nomeia de coincidência, o Pai chama de propósito. E o que exibem como sorte, considero somente como Cristo. Lis, não fui eu que te salvei... foi Ele. E hoje, eu vim somente para dizer que você não precisa depender de mim, do Arthur, de uma aparência impecável ou mesmo da aprovação das pessoas, porque o Criador de todo o universo moveu alguém que sinceramente não era a sua maior fã no momento, para mostrar que está cuidando de você. Simplesmente, porque a ama.
– Minutos atrás, estava decidida a levantar e seguir o meu caminho, quando Deus me lembrou que um dia cometi o erro de considerar alguém perfeito demais, e me deparei apenas com frustração e tristeza. Porque nunca é sobre nós, Lis. Me perdoe se com as minhas atitudes a fiz pensar diferente. Deus não nos ama por aquilo que somos, mas por quem Ele é. Não depende do que você faz, mas do que Cristo fez. Não se trata de obras, porque ainda que você erre, ainda que não acredite nEle, mesmo assim Ele continuará a te amar por todo o sempre e mais um dia. E essa certeza é o suficiente. Deus é o suficiente.
A sua próxima atitude é tão inesperada que nem em um milhão de anos vão conseguir me convencer de que vivi esse momento. Com o rosto banhado em lágrimas, ela caminha em minha direção e me abraça forte.
– Me perdoe, Cat – sua voz é embargada por um choro intenso. – Por favor, me perdoe.
– Tudo bem, Lis. Já passou – seco o seu rosto e a aninho em meus braços. Ela me encara.
– Eu me arrependo tanto, Cat. Depois de tudo o que disse, me senti a pior pessoa do mundo e decidi me desculpar. Mas aquela voz... aquela voz terrível... eu a ouvia sussurrar em minha mente que você jamais me perdoaria. Que eu não era digna da sua amizade, que sequer merecia ser amada e que – as palavras escapam entrecortadas por soluços sufocados – eu não possuía valor para ninguém.
– Isso não é verdade, Elise. – Sinto o meu coração ser preenchido por uma revolta genuína. Mentiroso, sujo e descarado. – Você é muito especial e preciosa para o Pai.
– Você acha mesmo?
– Não, eu tenho certeza. A bíblia diz que você é a menina dos olhos de Deus. Ele te criou, Lis, única, insubstituível e amada incondicionalmente.
Afago os seus cabelos e, abraçadas, experimentamos o silêncio reconfortante da amizade e do perdão. Minutos ou horas depois – quem sabe? – Lis é a primeira a falar.
– Cat – a encaro, sorridente. Este não é mesmo um dia extraordinário? – Obrigada por ter me encontrado naquela noite.
– Lis...
– Okay, já entendi que foi Deus quem mandou você, mas ainda assim... Quando penso no que poderia ter ocorrido...
– Não importa mais. Está tudo bem agora – aperto a sua mão e ela sorri em retribuição.
– Eu me perdi completamente, Cat. Não me restou nada além de altivez, orgulho e arrogância. Depois do Campeonato de Gamão e da discussão com o Arthur... – ela se interrompe, chorosa, e desvia os olhos para a janela. A luz do sol resvala contra a sua face melancólica. Ela está sofrendo.
– Tudo bem, Lis. Não precisa me contar se não quiser.
– Não é isso. Eu realmente quero – ela se apressa. – Na verdade, eu preciso.
Assinto, e com expressão afável a incentivo a prosseguir.
– Depois que deixamos o Estádio Fogo e Gelo, ficou claro para o Art que a amizade entre nós tinha se extinguido. Naquela tarde, ele dirigiu em silêncio até a minha casa e estacionou na frente da cerca branca. Recordo cada detalhe de modo tão vívido que é como se a nossa conversa houvesse ocorrido há poucas horas.
"Elise, o que aconteceu entre você e a Cat?" – Seu tom não abria margem para negociação. Me preparei para mudar de assunto, quando ele tirou o celular do bolso. – "Você tem a opção de me contar a sua versão dos fatos ou descobrirei sozinho. Sabe que nenhum segredo permanece oculto por muito tempo em Águas Douradas."
"Nós discutimos. Não achei justo ela dispensar você."
– Como de costume, ele resolveu tapar o sol dos verdadeiros sentimentos com a peneira da ironia e da fuga.
"Lis, embora jamais sejamos capazes de explicar como a Cat conseguiu rejeitar esse belo e incrível ser humano que vos fala, reconheço que ela tem esse direito. Ela não é obrigada a ficar comigo. Agradeço por permanecer do meu lado, mas não é necessário. Vamos esquecer isso, está bem?" – Seu sorriso era afável, e não fosse a próxima frase, talvez tudo se passasse de um modo diferente... talvez. Não há garantias, já que definitivamente não estava em meu juízo perfeito. – "Agora basta você pedir desculpas para que possam reatar a amizade."
"Como? Por que deve ser eu a implorar por perdão? Se não contei a história, como sabe que a responsabilidade não é dela? Ah, claro, a culpa nunca pode ser da sua amada principessa..."
– Lembro de sair do carro e empurrar a porta com toda a força do meu ser. O meu desejo mais íntimo era parti-la em pedaços. Arthur me seguiu.
"Lis, não se trata disso..."
"Então do que se trata?"
"Me perdoe, Lis. Não deveria tê-la envolvido nessa história. Quando questionou acerca dos meus sentimentos em relação a Cat naquela tarde na biblioteca, deveria apenas ter negado, e..."
"Como se você pudesse negar o óbvio. Está escrito na sua testa que você baba pela miss perfeição, mesmo sabendo que eu te am..."
"Vamos mudar de assunto, por favor."
"Por quê? Não seja covarde, Arthur. Se tem algo para me dizer, apenas diga."
"Você claramente precisa descansar. É melhor eu ir embora. Conversaremos pela manhã."
"Você é um idiota, estúpido" – gritei sem razão aparente. Sua expressão não alterou um milímetro. Ele permanecia impassível, equilibrado e pior... compassivo. Eu podia ler compaixão em seus olhos. Arthur estava com pena de mim. Como isso me atingiu. Tudo que eu desejava era feri-lo, magoá-lo, mas nada parecia capaz de alterar a sua postura. Nada, exceto... Me aproximei dele e parei a poucos centímetros do seu rosto. Meu tom era sádico e debochado. – "Pensando bem, faz todo sentido a Cat optar por abandoná-lo. Se até a sua mãe fugiu de você, nem a santa Benedetto seria capaz de suportá-lo."
– Sim, tenho plena consciência de que fui cruel. Coloquei o dedo sobre a ferida aberta e pressionei até que o sangue escorresse. Repentinamente, seus olhos assumiram um brilho malicioso. Naquele instante, soube que tinha levado o Arthur até o limite. Tudo o que ousasse escapar por entre os seus lábios irritados seria desumano e brutal.
"Obrigado, Elise."
"Pelo quê?"
"Por me recordar de que comparada a Cat, você não serve sequer como prêmio de consolação."
– Embora soubesse que seria doloroso, admito que não estava preparada para vislumbrar aquelas palavras deixarem a sua boca. Antes que pudesse ponderar sobre o fato, o tapa foi deferido pela minha mão direita em seu rosto chocado. Corri em direção a minha casa e não parei, ainda que meu nome fosse repetido incessantemente de modo suplicante.
Ela finaliza o discurso entre lágrimas abundantes e soluços copiosos. E embora eu saiba que mais um mistério foi solucionado, enquanto limpo o rosto da minha amiga, sinto que essa foi a peça mais difícil que já encaixei nesse doloroso quebra-cabeça.
– Bom, o final da história você já conhece. Fiquei transtornada devido à ausência do Arthur e decidi preencher a minha alma com festas e companhias aleatórias. Tudo o que almejava era silenciar os meus pensamentos mais íntimos. Foi em uma dessas noites perturbadoras que uma ideia perigosa passou a me consumir por completo. E se houvesse uma forma de garantir a atenção do Art só para mim? A resposta brotou das profundezas do meu desespero. Fui até a boate e misturei incontáveis doses de bebidas alcóolicas variadas. Eu sabia que no momento que me encontrasse, ele se preocuparia e cuidaria de mim com dedicação extrema. O final perfeito para o meu romance dos sonhos.
Ela para. Sinto um frio pesado e denso subir pela minha coluna. A lembrança daquela noite tenebrosa me invade. Repentinamente, tudo parece mais triste e sombrios, como se um dementador deixasse as páginas do Harry Potter e atravessasse a janela.
– Infelizmente, na trama brilhante do meu conto de fadas, imaginei todas as cenas possíveis, exceto uma: e se o herói resolvesse não aparecer? E se o mocinho estivesse tão ocupado tentando deduzir qual a relação entre a principessa desejada e o forasteiro misterioso, que não possuísse o mínimo interesse de comparecer a festas noturnas? – ela me encara, séria.
– Lis, eu...
– A culpa não é sua, Cat. Muito menos do Arthur. A responsabilidade não é de ninguém, exceto minha – ela sorri sem vontade e suspira, pesarosa.
Nesse momento, a Elise aparenta ter envelhecido uns dez anos... ali, bem diante dos meus olhos. Estranhamente, é como se o mero reconhecimento da verdade carregasse o poder de sugar toda a sua juventude.
– Sabe, Cat, eu disse a minha família que não recordava de qualquer detalhe acerca daquela noite, no entanto... é mentira. – Elise puxa o ar tão profundamente que parece buscar forças em um compartimento secreto guardado a sete chaves. Como se houvesse esgotado a coragem disponível e fizesse uso da preciosa reserva. – Ainda lembro do convite de dois rapazes para deixarmos a boate, ainda lembro de negar e mesmo assim ser arrastada por eles, ainda lembro de ser pressionada contra uma parede fria e de implorar que me soltassem. Como se estivesse assistindo a um filme, lembro da roupa que o Paul usava, uma camisa preta de botões e calça jeans clara, lembro que cheirava a álcool e cigarro, lembro do seu olhar malicioso, dos seus cabelos contra a minha orelha e da sua mão na minha pel... – Ela se interrompe e fecha os olhos. Com força, inspira e expira até normalizar a respiração, e então torna a olhar para mim.
Nesse momento, já estou em choque. Minha mente apenas recebe cada palavra sem deter a menor capacidade de processá-las. Me sinto impotente e fraca, como uma criança pequena e indefesa.
– Estou fazendo acompanhamento com um psicólogo. Ainda sinto ânsias de vômito contínuas. Ainda tenho dificuldade para dormir. Às vezes, inclusive, ainda tenho medo de sair de casa. Porém, a mera lembrança do seu nome, Cat, me consola. – Ergo os olhos, surpresa. – Porque o último som que ouvi, antes de acordar completamente perdida e assustada no hospital, foi a sua voz. Lembro de dizer a mim mesma que tudo ficaria bem, que o Paul não iria me fazer mal, que você iria me salvar – ela segura as minhas mãos entre as suas. – Deus realmente deve se importar comigo, Cat, porque naquela noite, Ele me mandou você.
A abraço forte, como se essa simples atitude pudesse protegê-la do mundo lá fora. Ah, Pai, como eu queria não precisar soltá-la. Ela já sofreu tanto. Ela enxuga as lágrimas com a manga da bela blusa rosa de seda. Jamais esperei que a minha visita a Monte Velho se revelasse uma montanha-russa de emoções. Deus da Glória, o que mais falta ser dito?
Todos vivos? Por favor, recuperem-se rápido porque mais emoções estão a caminho... SOCORROOOO!!
Se está gostando dessa estória, que tal deixar uma estrelinha tão brilhante quanto você?!
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