• Treze •

A minha mãe finaliza a palavra sobre fé e todos na igreja retornam animados para casa. Diferente da terça-feira, tenho pressa em encontrar o Art, então, cumprimento os irmãos rapidamente e sigo para o estacionamento. Procuro por uma Mercedes-Benz esportiva e a vislumbro em uma vaga escondida na parte coberta da garagem. O Arthur está recostado despreocupadamente no carro e ao me ver, abre um sorriso vívido e carinhoso. Caminho em sua direção com passos firmes, a despeito dos pensamentos vacilantes.

– Olá, principessa – solta com a voz sedutora.

E aí está! O célebre apelido que ganhei do Art, quando adolescente. Por quê? Minha família possui descendência italiana e no meu aniversário de quinze anos,  os meus pais me presentearam com uma incrível viagem para a Itália. Porém, a situação mais extraordinária e inacreditável ocorreu no aeroporto, quando os meus amigos me surpreenderam ao contarem que também embarcariam comigo. Sim, para a diversão absoluta do grupo, eu chorei, ri e pulei loucamente. Eu, Bel, Art, Lis e Let, passamos dezoito dias maravilhosos conhecendo inúmeras cidades italianas. Mas foi em Verona, onde reside a minha tia, que nasceu o fatídico apelido.

Fomos visitar a casa de Giulietta, da famosa obra Romeu e Julieta, de William Shakespeare. Lamentavelmente, cometi o terrível erro de subir até a sacada, no qual os dois apaixonados trocaram juras de amor. Sabendo do meu descontentamento com a história, o Art decidiu me premiar com humilhação pública e proclamar declarações românticas falsas e exageradas, na frente de centenas de turistas. Sem se dar por satisfeito, ele guardou o pior para o final, quando soltou a constrangedora frase italiana, "sei lunica principessa che regna nel mio cuore", que na tradução significa: "você é a única princesa que reina no meu coração".

Exato, brega e cafona, mas resultou em uma chuva de aplausos e gritos animados por parte de todos os que assistiam a cena. Quando desci, não dirigi sequer um olhar ao Arthur. E enquanto a minha tia e primas ficaram instantaneamente apaixonadas por ele, eu nutria exclusivamente uma intenção quase palpável de assassiná-lo a noite. O sentimento desvaneceu na manhã seguinte, entretanto, o apelido retornou conosco à Águas Douradas, como uma doce lembrança dos bons momentos vividos na Itália.

– Olá, Art. Espero que tenha aproveitado a noite.

– Sim, a Sra. Hanna fala muito bem. Gostei da ideia de tratar como real algo que ainda não existe. Acho que o nome é fé, certo? Acredito que se aplique bem ao nosso relacionamento – ele me encara com um olhar desafiador. Hoje ele parece definitivamente disposto a resolver o nosso impasse. Perfeito, eu também estou.

– Sim e não – ele arqueia uma sobrancelha diante da minha resposta. Consigo vislumbrar a sua mente se preparando para uma possível discussão, porém, não intento repetir o fiasco do encontro anterior. Detenho uma estratégia superior. – Escrevi algo para você – seu semblante exprime uma curiosidade imediata.

– Sério? Você sabe o quanto aprecio surpresas e mistérios. – De fato. No seu aniversário de vinte anos, preparamos uma comemoração surpresa, a qual ele afirma, veementemente, que foi a melhor festa da sua vida. – Certo, o que tem para mim, Cat? – Ele exibe um sorriso astuto.

Entrego um papel rosa bebê em suas mãos. Ele abre, lê e trinta segundos depois, passa a recitar parte do texto em voz alta.

– Amável, generoso, íntegro, honrado.... Se está tentando me elogiar, parabéns, eu me sinto bastante contemplado.

– Não é exatamente isso, Art – ele exibe um semblante confuso. – Essa é a lista das características que desejo no meu futuro parceiro.

Ao som das minhas palavras, seus olhos correm o papel atentamente. Posso vê-lo anotar, mentalmente, as qualidades que detém e buscar uma forma de contestar as que não possui. Repentinamente, seu rosto assume uma expressão de estranhamento. 

– Cat, há algo errado – finalmente, chegamos ao ponto importante. – A lista está incompleta, porque inicia do número 2. A folha está rasgada. Onde está o número 1?

Meu coração dá um salto. É agora ou nunca. Nervosa, porém, convicta, retiro um pedaço de papel da bolsa e coloco em suas mãos.

– Está aqui, Art.

Ele manuseia o pequeno bilhete e após a leitura, me encara de maneira dura. Não há mais sorriso em seus lábios ou brilho em seus olhos, ao contrário, sua expressão é fria e vazia.

– Número 1: Amar a Deus acima de tudo, inclusive de mim – ele parece aborrecido, talvez? – O que está tentando dizer com essa encenação, Catarina? – Não, ele está furioso. Inspiro lenta e profundamente antes de falar.

– Arthur, eu gosto muito de você, de uma forma que não são sou capaz de expressar ainda que dominasse todas as línguas. Desde a adolescência, em todas as situações, boas ou ruins, você sempre esteve ao meu lado, zelando e cuidando de mim. Honestamente, eu não poderia pedir ao Senhor um amigo melhor – aos poucos, as linhas do seu rosto suavizam. – No entanto, isso não é o bastante para ficarmos juntos. Diferente do que pode ser inferido, a minha contínua espera pelo homem certo não é fruto de uma tentativa frágil de chamar atenção ou uma estratégia vã de parecer inalcançável, e sim, do amor que tenho por Deus e da confiança que deposito em Sua Palavra – ele permanece fixamente atento ao meu rosto. – O romance entre nós não seria bíblico. Inclusive, é chamado de jugo desigual, que significa...

– Um relacionamento travado entre pessoas de crenças distintas. Não é aconselhável na sua fé – ele me interrompe, com os braços cruzados. Alguém esteve estudando.

– Exatamente. Então, por que continuar insistindo?

– Porque eu a amo, principessa – sua voz é um sussurro suave e macio, que envolve os meus ouvidos como uma doce nuvem. Ele se aproxima e acaricia, delicadamente, o meu rosto. – E faria tudo por você – eu o afasto, dando um passo para trás.

– Eu não quero que seja assim, Art – declaro firme. – A propósito, até quando faria isso? Até cansar de estar presente em todos os cultos, mesmo sem desejar ou acreditar? Ou até eu não o acompanhar às suas festas regadas à álcool e conversas tolas? Ou quem sabe, quando conhecer os rigorosos princípios de um namoro cristão? Ou ainda, quando nas reuniões familiares, passar horas a fio discutindo acerca de uma Bíblia que não segue e um Amor que não entende? E se nada disso surtir efeito, talvez a compreensão de que, em meu coração, você nunca estará acima do Rei dos Céus, o faça mudar de ideia – a verdade me preenche e me consome como uma chama intensa.

– Sabe por que o amor ao Pai é a minha exigência número 1? Porque somente desse modo, é possível aceitar a minha vida, as minhas escolhas, e os Seus propósitos. E, sinceramente, eu não irei renunciar a isso... nem mesmo por você.

– Principessa – ele começa a frase e para. Sua voz está embargada e falha. Ele aparenta temer as próximas palavras. – Você não me ama?

– Isso não importa, Art. Você não compreende? Ainda que eu o ame, isso não vai mudar absolutamente nada. Porque sem Deus, o nosso relacionamento está fadado ao fracasso. Rasgado e incompleto como uma tênue sombra das nossas altas expectativas. E diante das nossas diferenças, todo esse amor se converterá apenas em arrependimento, frustração e culpa. Arthur – eu não consigo mais conter as lágrimas, que encharcam a minha face como uma represa rompida –, não podemos ser felizes juntos. Então, é melhor – vamos, Catarina, você consegue –, é melhor não nos vermos mais. – Por favor, Art, você precisa entender. Por favor, Deus.

Arthur mantém a cabeça baixa. O tempo aparenta passar de um modo diferente ao nosso redor. Cada segundo se assemelha a uma eternidade cruel. Após alguns minutos infinitos, ele ergue o olhar e tenho um desejo iminente de desaparecer. Seu semblante exibe um misto de dor e sofrimento, e sou tomada por uma necessidade súbita de abraçá-lo, no entanto, me mantenho distante. Ele sussurra algumas palavras e tento compreendê-las sem sucesso. Sinto que terei que seguir adiante sem sabê-las. Por fim, ele suspira e rompe o massacrante silêncio.

– Está bem, Cat, será conforme o seu desejo. – Honestamente, preferia o silêncio. – Não me aproximarei mais de você ou... da sua família. Eu apenas – ele hesita por alguns segundos –, posso te pedir um último favor?

Com certeza. Caso ele requisite o meu carro, nesse momento, eu darei. Entretanto, me limito a assentir.

– Posso te dar um beijo? – Meu coração explode em batimentos intensos e incontroláveis.

Ainda estou processando a pergunta, quando ele envolve a minha cintura e me puxa para perto. Com carinho, repousa as mãos sobre o meu rosto e encosta os lábios contra a minha testa. Sinto o seu abraço forte, e com um tom terno e aveludado suas palavras alcançam a minha orelha esquerdo.

– Você sempre será a única que reina no meu coração, principessa – ele me solta, desgostoso, lança uma piscadela e entra no carro.

Sem sequer ter a chance de me despedir, a minha história com o Arthur ganha um ponto final. Eu sabia que não seria fácil, mas não imaginei que pudesse ser tão doloroso. Sinto o desejo latente de impedi-lo, mas não me movo um único centímetro. Deixar o Art partir é como arrancar, voluntariamente, um pedaço do meu coração.

Caminho pesadamente em direção ao templo, dividida entre uma iminente vontade de chorar e uma súbita necessidade de consumir uma enorme taça de sorvete. Chego à entrada da igreja a procura da Mari, e encontro o meu amigo, recém adquirido, encolhido diante do terrível temporal que costumeiramente assola Águas Douradas no outono. Certo, eu jamais admitirei para ela, no entanto,  a minha mãe tinha razão... mais uma vez. Vou até o carro e busco o bom e velho guarda-chuva estrelado. O Henrique sorri ao me ver.

– Hey, Fluffy – ele insiste com a piada dos gatos. Reviro os olhos e ele parece satisfeito. – Não a vi após o culto – ele encara o meu rosto e dada a sua expressão de compaixão, devo estar um trapo. – Está tudo bem?

– Sim. Apenas tive um dia difícil – ele assente de maneira compreensiva. Embora, eu não entenda o motivo de ter compartilhado esse fato com um estranho, trato de alterar o foco da conversa. Prefiro processar os meus sentimentos sozinhas. – Ah, trouxe um guarda-chuva para você. Tenho um leve pressentimento de que irá precisar.

– Gostei das estrelas. É emprestado das crianças, também?

– Na verdade, não – ruborizo dois tons –, esse é meu.

– Perfeito, então eu não sou o único a ter algo em comum com elas – ele pisca para mim e não consigo evitar o sorriso. Seu bom humor é contagiante. – Acho que já está na hora de ir. Obrigada pelo guarda-chuva, little Cat, prometo devolvê-lo intacto. – Acaso ou não, no exato momento em que ele se prepara para partir, vislumbro a Mari e o Matias. Um pensamento me ocorre de imediato.

– Henrique – grito o seu nome e ele para a meio caminho da chuva –, espera um pouco, tudo bem? – Ele assente e corro para falar com o meu cunhado. Retorno, seguida por ambos.

– Pessoal, este é o Henrique. Ele é novo na igreja e na cidade. Inclusive, veio sem guarda-chuva – os dois exibem um semblante surpreso como bons douradianos – Esta é minha irmã, Mariana, e meu cunhado, Matias. – Eles se cumprimentam com acenos e apertos de mão. – Matias o deixará em casa. – Os olhos cor de mel do Henrique ganham um toque de surpresa.

– Não é necessário. Eu não quero interferir no trajeto de vocês.

– Não seja bobo – diz a minha irmã, de modo espontâneo. – Aqui em Águas Douradas é possível atravessar a cidade inteira em, no máximo, vinte minutos, então pode ficar tranquilo. Não é trabalho nenhum, certo, amor?

– Exatamente. Na verdade, será um prazer – completa o Matias, alegremente.

– Sendo assim, aceito e gradeço a gentileza – Henrique se volta para mim. – Nesse caso, devo devolver o seu célebre guarda-chuva estrelado?

– Fique com ele. Considerando o seu desconhecimento acerca do nosso clima, pode precisar – digo em tom de brincadeira. Ele sorri em resposta.

– Obrigada, Fluffy. Foi realmente um prazer conhecê-la – ele segura a minha mão e completa de modo gentil –, espero revê-la em breve. – Matias se despede da Mari e, em seguida, os dois rapazes partem conversando.

Mari me acompanha, silenciosamente, até o carro. No instante que paramos em frente ao veículo, ela puxa a chave da minha mão e ocupa o assento do motorista. Sábia decisão, porque nos três minutos necessários para chegar a minha casa, copiosas lágrimas, dolorosas e densas, embaçam a minha visão.

Aiai, meu coração... Não foi um capítulo fácil, mas a vida segue adiante!! Será que a história entre a Cat e o Art acabou para sempre?!

Se está gostando dessa estória que tal deixar uma estrelinha tão brilhante quanto você?

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