• Quarenta e dois: parte um •
E nesta tarde claramente perturbadora, vamos a mais um fato levemente inusitado sobre a minha existência estranhamente desacertada. Durante a minha célebre juventude, acumulei mais apelidos principescos do que qualquer nobre donzela do minúsculo Reino de Águas Douradas. O primeiro, como já é de conhecimento geral, partiu do Art. O segundo, no entanto, proveio de uma fonte menos generosa e de intenções absolutamente duvidosas, a qual devo ocultar a identidade, a fim de resguardar a imagem.
Devo, mas não quero. Foi a Let mesmo. Enfim, aos dezoito anos, ela me nomeou "carinhosamente" de: Cinderella.
Não, por favor! Não invista o seu tempo maquinando teorias mirabolantes, enquanto recria transformações glamurosas e gêmeas malvadas. Inicialmente, considerem ser a Let, uma humana de mente maligna. A única e verdadeira razão por trás da ofensa gratuita, reside em uma marcante e singela característica de minha destinta personalidade: eu sou habilmente versada em...
Fugas!
Sim, meu caros, por toda a redondeza ainda intriga o lendário mistério de como a expressão romance ativa o modo "correr ou morrer" na pessoa que vos fala. Em meio ao desespero do escape, nada impede que algum sapato, acessório – e porque não dizer –, orgulho e dignidade, percam-se pelo caminho. Afinal, foi exatamente assim com o Nobu, e com todos os que vieram antes e depois dele. Todos, exceto um: Henrique Prinz.
E enquanto dirijo rumo à casa do próprio, as palavras do Arthur rondam a minha cabeça como tarântulas esfomeadas, sugando a energia do meu cérebro. Pensando bem, não me surpreende seu espanto frente ao meu comportamento.
Aqui, transportando uma simples sobremesa, enquanto borboletas infinitas saracoteiam no meu estômago diante da mera suposição da alegria alheia, também não reconheço a mim mesma. Especialmente ao lembrar que a temática em questão sequer ganhou uma posição em minha lista de planos para os próximos... dez anos. Se me lembro bem, acho que descobrir uma cor que não preto, ruivo, loiro, castanho e colorido para o meu cabelo era uma prioridade mais urgente.
Porém, a chegada do Henry mudou tudo. Acho que jamais compreenderei como esse enlace ocorreu tão depressa. Ele foi o meu primeiro encontro, o meu primeiro namorado, e mais importante, o meu primeiro amor... Certo?
Então, por que soltar um simples "eu te amo" é tão difícil? As pessoas falam isso o tempo todo.
"Ei, cara, esse foi o melhor milk shake que já experimentei na vida, eu te amo."
"Nossa, esse corte de cabelo ficou incrível, eu te amo."
Honestamente, parece muito fácil. E por que não seria? São apenas três palavras. De acordo com a minha mãe, fui até bem precoce na escola. Céus, por que não consigo?
Estaciono e deixo a minha cabeça cair de encontro ao volante. Nesse caso, a suposição mais óbvia seria: eu mudei, só que não o bastante. Em outras palavras: continuo problemática. Parabéns para mim.
Desço do carro, decidida a não me abalar pela descoberta desse traço patológico, possivelmente definitivo, da minha personalidade. Tomo a fita vermelha entre os dedos, cruzo o pequeno portão branco, atravesso o curto caminho ladeado por pedras e flores, giro a maçaneta e me deparo com...
Deus da glória, o Henrique foi assaltado!
Isso ou um daqueles furacões femininos – Katrina, Sandy, Laura – foi traída pelo namorado e despejou a raiva, que não era pequena, bem aqui. A casa está revirada no pior estilo dos filmes policiais. Na verdade, a cena de um crime seria mais organizada e... limpa.
Ainda encaro o ambiente, pasma, quando o Henry surge tranquilamente, secando os cabelos com uma toalha, como se o massacre da serra elétrica não houvesse se passado exatamente no meio da sua sala de estar.
– Cat – seu tom não abre margem para dúvidas: ele definitivamente está surpreso ao me ver –, não me avisou que viria.
– Assim como não me avisou que pretendia cometer um homicídio. Se precisa de um álibi, de antemão saiba que nunca estive aqui. Não tenho a menor vocação para presidiária. Sou levemente claustrofóbica e aquelas roupas não me caem bem.
– Muita engraçada. Apenas precisei... trocar os móveis de lugar.
– De lugar ou de função? A poltrona está virada para baixo, Henrique.
– O abstrato aguça a minha criatividade. O que fazer se ela resolveu me abandonar hoje?
Henrique sem criatividade? Até parece.
A mente do Henry é exatamente como o meu desejo por sorvete: sem limites. Basta dizer que, embora seja o mais jovem, já é considerado o funcionário mais bem pago e valioso da Design e Marketing Digital. O Sr. Caio anuncia à plenos pulmões, nos sete cantos do mundo, que não acredita na sorte de tê-lo. Segundo o Vini, a equipe que ele comandava em Vale Negro sempre liderava qualquer ranking existente, independente do desafio.
Nos últimos meses, bateu todos os recordes da empresa, enquanto trabalhava a distância no monumental e intricado projeto de publicidade da Galleria dellAccademia, a pedido da Let, e ensinava às crianças do Orfanato. Porque sim, ele dedica dois dias de sua agenda ligeiramente abarrotada para ensinar arte e cultura aos adolescentes em situação de vulnerabilidade.
O seu sonho é abrir o próprio escritório e ter o seu nome gravado em uma placa. "Eu quero deixar a minha marca no mundo, Katzen." E para ser honesta, nem por uma única fração de segundo duvidei de que ele era menos do que absolutamente capaz.
– O que houve?
Ele dá de ombros e deposita a toalha sobre algo que suponho – incerta – ser uma mesa.
– Como foi o café da manhã? Pelo horário, você, Mari e Arthur se divertiram bastante.
– A Mari não estava – solto, distraída, enquanto analiso o chão a procura de pegadas. Sejam de pessoas, animais, ou... um ser ainda não descoberto.
– O que? Por quê? – Seu tom intensamente espantado, e estranhamente aflito, atrai a minha atenção.
– Ela precisou ir à floricultura. A proprietária a convocou urgentemente para conversar acerca do casamento. Aparentemente, ocorreu um problema com as tulipas brancas e elas vieram um tom mais claro. – Ou algo assim. Não imagino nada mais claro do que branco, mas quem sou eu?
Henry encara o relógio, sério.
– Então, durante todo esse tempo, estiveram apenas você e o Arthur?
– Sim – franzo o cenho, confusa. – Algum problema?
Ele ajusta a postura e procura relaxar a expressão. No entanto, consegue apenas tornar o seu desconforto ainda mais evidente.
– Não! Claro que não. Óbvio que não! – Henry maneia a cabeça para fortalecer o posicionamento, mas há algo errado. Ele aparenta estar tentando... convencer a si mesmo? – E sobre o que exatamente conversaram?
– Falamos sobre a vida e os velhos tempos. Em resumo, reatamos a amizade – concluo alegre, e sorrio.
Mas, sou a única.
– Que notícia maravilhosa.
Não há sequer uma gota de emoção em sua voz. Pelo contrário! As linhas do seu rosto parecem duras como pedra. Ao que tudo indica, ele desistiu de empenhar qualquer esforço em esconder a sua insatisfação. Diante do seu semblante, solto a primeira frase que me vem à mente, a fim de aliviar a tensão crescente.
– Não era isso o que você queria?
– Com certeza. – Rapidamente fica claro que não foi a melhor escolha de palavras. – Era tudo o que eu queria. Na verdade, o que mais eu poderia almejar na vida?
Sinto o sarcasmo escorrer como veneno pela sua língua. É oficial: ele está irritado.
– Henry, o que está acontecendo?
– Já disse: nada.
Céus, mais seco do que o Deserto do Atacama. Okay, vamos tentar de novo. Mais amável dessa vez, Benedetto.
– Henry – me aproximo, recosto a mão esquerda de encontro ao seu peito e suavizo a voz –, por que não me diz a verdade? Assim podemos conversar a respeito.
Com uma risada de escárnio, ele se afasta de mim e cruza os braços.
– É mesmo, Catarina? Depois de horas com o Arthur, ainda tem energia para isso? Que honra – ele ergue a sobrancelha, claramente irônico.
E finalmente aconteceu. Pela primeira vez, presencio o meu namorado sabidamente equilibrado se comportar como uma criança. É como dizem: quando o mundo gira é fácil, difícil é quando capota com você em cima.
Ainda um pouco desnorteada, inspiro profundamente e limpo a garganta. Alguém precisa ser o adulto da relação. Geralmente, não sou eu, mas por falta de opção... Exalo o ar lentamente e mantenho o tom estável e sério.
– Henrique, você deve estar exausto da viagem, caso contrário não falaria comigo desse modo. Vou deixá-lo descansar e quando se sentir mais "disposto", sabe onde me encontrar.
Volto o meu corpo levemente abalado em direção à porta, entretanto me interrompo ao ouvir um sussurro arrependido.
– Me perdoe, Katzen. Você está certa.
Ele se lança sobre o sofá – ou o que deve ter sido um sofá em outra vida –, e joga a cabeça para trás, com os olhos fechados.
– Afinal, era isso o que eu queria, não é? – Um sorriso sem cor domina os seus lábios. – Eu devo estar ficando louco. – Ele corre as mãos contra os cabelos, frustrado.
Okay, não precisa ser um gênio para notar o óbvio: Henrique não está bem. Caminho até ele e me sento ao seu lado. Delicadamente, repouso minhas mãos sobre as suas. Decido insistir. Afinal, se fosse o contrário, ele não desistiria de mim tão facilmente.
– Henry, por favor, converse comigo – imploro, um tanto chorosa. Cristo, segura o drama, Catarina. – Por favor, Henry.
– Eu só... não sei... o que vou fazer.
A frase escapa baixa, entrecortada, e mal consigo compreendê-la. Quase como um reflexo, aproximo a minha orelha direita do seu rosto.
– O que você dis...
Minha voz desaparece. Em um gesto súbito e não sinalizado, Henry me puxa de encontro ao seu peito e perpassa os braços ao meu redor. Me aconchego em seu abraço, e ouço o seu coração acelerar em resposta.
– Katzen – sua voz é macia, mas triste –, não sei o que vou fazer se você me deixar.
De fato, eu poderia tomar inúmeras atitudes nesse instante, porém decido apenas não mover um único músculo e aguardar. Aos poucos, enquanto ele afaga os meus fios rebeldes e cheios, o seu coração assume um ritmo mais regular, e ele se converte no Henrique que eu conheço: equilibrado, tranquilo e racion...
– A verdade é que eu gostaria de ter um plano B. – Como? – Mas pela primeira vez na vida, não tenho um – ele sorri, satisfeito, como se tal fato fosse algo a ser celebrado.
Deus, o que foi que eu perdi?
– No exato momento em que o Arthur decidiu retornar à Águas Douradas, soube que poderia ser o fim do nosso relacionamento. – O que? – Portanto, não é engraçado que tenha sido eu mesmo a arrastá-lo até aqui? E saiba que não foi uma tarefa fácil.
Nisso eu acredito. Pelo relato do Art foi necessária uma dose celestial de persuasão.
– E ainda assim, durante todo o trajeto, precisei lutar contra o desejo de afogá-lo ou envenená-lo. Pelas minhas contas, umas dez ou vinte vezes... nos primeiros trinta minutos. Enxerguei muitas oportunidades, mas não o fiz. Não mereço parabéns?
Ele ergue uma sobrancelha e fico perplexa. As palavras somem da minha mente e, ao que tudo indica, da minha vida. Henry, pelo contrário, parece ter decidido compartilhar os seus pensamentos. Nesse caso, por que tenho a forte sensação de que vou desejar o retorno do seu silêncio?
Seus braços afrouxam levemente ao meu redor, e ele me puxa para cima, alinhando os olhos aos meus.
Ah não, Henrique, eu sei o que está fazendo. Com a sua visão transcendental, busca desvendar os meus pensamentos mais profundos e scanear a minha alma. Decido ocupar o espaço com palavras, antes que ele perceba que não há nada aqui, exceto: "socorro, Deus!"
– Se acredita mesmo nisso, por que o convenceu a voltar?
– Porque eu preciso descobrir – e... silêncio.
Pelo seu tom é como se todos as respostas aos inúmeros questionamentos existenciais humanos estivessem contidas nessa frase.
– Descobrir o que, Henrique? – Questiono, em parte confusa, em parte esgotada.
A cada segundo essa conversa parece fazer menos sentido. E como assim ainda está claro? Não se passaram uns dois meses desde que amanheceu?
Okay, não há mais ideias ruins. Defino rapidamente que a melhor estratégia é solicitar ao sol que dê uma acelerada no passeio da tarde.
E então, Josué, alguma dica?
Alguma dica de como sobreviver até o próximo capítulo?!? Helloooo, autora, é para ontem ou antes de ontem?!?
Se está gostando dessa estória, que tal deixar uma estrelinha tão brilhante quanto você?!
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