• Onze •
Acordo às 05:30h com a cabeça latejando e as pernas dormentes. Desfaleci em uma posição capaz de surpreender o melhor entre os contorcionistas. Desço até a cozinha e tomo dois comprimidos. A casa sustenta um silêncio sereno e raro. Olho pela janela, o céu está nublado, porém sem chuva. Os cidadãos de Águas Douradas estão impactados com a trégua do clima no outono, é quase possível enxergar o sol em meio as incontáveis nuvens... quase.
Pego a manta colorida de crochê que repousa sobre o sofá, coloco ao redor do corpo e sento em uma cadeira branca na varanda. Abraço as minhas pernas, enquanto respiro o vento frio da manhã, que nasce com um aroma pungente de desafio. Não consigo precisar o horário que adormeci, no entanto, o contexto ainda permanece vívido dentro de mim.
Pressinto a aproximação de um terceiro round, com a promessa do Art em comparecer a igreja hoje. Questionamentos não solucionados rodopiam em minha mente exausta. E se ele for acompanhado da Elise? Não acho que posso suportar três dias seguidos em combate com as duas pessoas que já considerei os meus melhores companheiros e confidentes. Fecho os olhos e deixo a tênue luminosidade me preencher.
Me mantenho nessa posição até que o celular vibra em meu bolso. Uma mensagem relata que a professora de Sistemas Estruturais está gripada, portanto, não haverá aula. Doenças respiratórias são bastante comuns nessa época do ano. Pobre Sra. Tavares, espero que não seja grave. A despeito da conjuntura, suspiro aliviada. Preciso de um tempo para ouvir os comandos do céu. Abro a bíblia em Efésios 6 e leio sobre a armadura de Deus. Nada mais perfeito para o momento, afinal, estou me preparando para uma guerra.
Meus pais despertam às 07:00h, assim como a Mari. Decido vestir cores alegres para trazer o bom humor à existência. Coloco um vestido florido rosa chá, meia calça preta grossa e botas de cano curto. Combino com um trench coat creme e deixo o cabelo semipeso. Desço as escadas, linda e magnífica... para o café da manhã, considerando que não possuo compromisso algum.
– Bom dia, Cat! Amei o seu look. Qual a programação de hoje? – Mari beberica o café, enquanto exala uma curiosidade nítida. Boa tentativa, irmãzinha.
– Nenhuma, na verdade – afirmo, despreocupada –, a minha aula foi cancelada. A Sra. Tavares está doente.
– Ah, sinto muito – repentinamente, sua face se ilumina e seus olhos brilham. Céus, não acho que isso seja um bom sinal... para mim. – Podíamos fazer um DDEI! Meu Deus, seria maravilhoso – ela bate palmas, animadamente.
DDEI é um codinome para dia divertido exclusivo das irmãs. Criamos quando crianças, portanto, não abro espaço para julgamentos.
– É mesmo? A senhorita Mariana Benedetto não teria uma atividade mais importante na agenda em plena quinta-feira pela manhã? Algo como um – mimetizo uma expressão pensativa –, emprego?! – Concluo em tom de acusação fingida.
– Sim, porém, o meu chefe é extremamente compreensivo – ela sorri de modo vitorioso.
Mari trabalha no escritório da família. Ela cursa o terceiro ano de ciências contábeis. Sim, os planos de Deus são perfeitos. Durante vinte e quatro meses torturantes, me preocupei em oferecer um sucessor digno ao meu pai, quando o Senhor já havia preparado tudo. Caprichosamente, insisti em ocupar o cargo daquele que é Soberano sobre todo o universo, e arquitetar um projeto de vida para mim e para todos ao meu redor, como se realmente detivesse a capacidade de moldar o presente, ou prever o futuro. O meu árduo sofrimento foi um reflexo inerente do abafar e ignorar a Sua voz.
– Eu acho uma ideia excelente – diz a minha mãe, que nos observava, silenciosamente, até então. – Você pode ir Mari, falarei com o seu pai a respeito. Tenho certeza de que ele irá concordar – e fim. O meu pai não possui a menor chance.
Minha mãe detém um dom especial de encorajá-lo a enxergar as situações por uma ótica diferente, em outras palavras, de convencê-lo. Meu pai entra na cozinha com um sorriso largo e quatro sacolas repletas de pães e queijos variados, muffins, tortinhas doces e salgadas, cookies e croissants. Seu amor por padarias transcende os limites da compreensão.
– Leonel, você lembrou de comprar os meus croissants. Muito obrigada, meu amor. São os meus favoritos. – Quando é do seu interesse, a voz da minha progenitora consegue ser mais doce do que chocolate. Meu pai exprime um semblante orgulhoso. Pobre homem, não sabe o que lhe aguarda. – Eu estou tão feliz e agradecida, que irei ajudá-lo no escritório hoje.
– Tem certeza, meu anjo? – Questiona a iludida alma, confusa pela decisão súbita da minha mãe. – Não irá comprometer as suas atividades no orfanato?
– De modo algum, meu querido, passarei no orfanato á tarde. Além disso, estar com o meu marido é um mandamento de Deus que cumpro com prazer. – Meu pai flutua com a afirmação. Vinte e oito anos de casamento e ele continua inocente. – Nesse caso, Leonel, não creio que a presença da Mari seja necessária. Considero, inclusive, que as meninas deveriam aproveitar essa linda manhã para passarem um tempo juntas. Mari tem se esforçado muito, e a nossa Cat precisa de um pouco de distração – ela pisca para mim e ganho a clara convicção de que a sua visão tem o poder de penetrar qualquer superfície.
– Bom, eu não vejo problema – fala o meu pai, calmamente. – Podemos nos encontrar no Divino Sabor às 13:00h. Estou mesmo com saudades de desfrutar de uma deliciosa pasta no Boaventura.
Nesse momento, a minha mente ressoa uma única frase: mãe, sinceramente, você tem um dom. Após tudo combinado, entro no carro acompanhada da minha irmã, sem um destino certo.
Às 08:00h, Águas Douradas ainda está despertando. O centro da cidade está abrindo suas portas lentamente, enquanto lojistas circulam com xícaras de café e vistosas baguetes, recém saídas do forno. Mari está pensativa ao meu lado, no entanto, com um sobressalto e risadas agudas, sou imediatamente informada de que ela possui um novo plano. E que o Pai nos ajude.
– Cat, eu sei exatamente o que vamos fazer hoje – declara com uma expressão misteriosa.
– O quê, Cérebro? Vamos conquistar o mundo? – Arqueio uma sobrancelha um tanto maléfica.
– Quase isso, mas infimamente melhor – seu sorriso confiante faz o meu estômago revirar. Céus. – Vamos ao Spa da Sra. Nomura, o Flor de Cerejeira. Embora seja necessário a marcação com meses de antecedência, estou com um forte pressentimento de que conseguiremos duas vagas bem rápido.
Exibida. A Sra. Nomura é mãe do Matias e, consequentemente, a sogra aduladora da minha irmã. Ela tem grande participação no romance deles.
– Está bem – lanço o cabelo com umas das mãos e simulo uma voz enjoada –, caminhemos em direção ao nosso dia de princesas – meu coração dá um salto à emissão da última palavra.
Princesa... Princip... Não consigo evitar que teimosas memórias invadam a minha mente e a recordem de que há uma decisão importante a minha espera. Deus, me ajuda.
Como previsto, conseguimos um horário no spa... que surpresa. Realizamos um ciclo completo de beleza, envolvendo cabelos, unhas, terapia facial e, por fim, massagem com pedras quentes. Deitada em uma espécie de colchonete futon, meu corpo aparenta pesar toneladas. A escassez de um descanso reparador começa a exigir seu pagamento. Uma sonolência abrupta passa a me dominar progressivamente e os meus olhos perdem o poder de permanecer abertos. Mari chama o meu nome, porém, a sua voz é apenas uma lembrança distante. No entanto, ela deseja ser ouvida e repete a afirmação.
– O que aconteceu, Cat? – Me volto para ela e seus olhos exprimem uma grande dose de preocupação.
Percebo que há dias não tenho partilhado emoções ou sentimentos com a minha irmãzinha. Decido contar sobre a conversa com a Bel, a discussão com Arthur e, o mais doloroso, as revelações da Elise. Mari abre e fecha a boca incontáveis vezes, sem saber ao certo o que dizer. Entretanto, ao organizar os pensamentos, seu semblante de choque cede lugar a uma expressão de raiva.
– Eu não posso acreditar que a Elise teve a ousadia de falar de modo tão cruel com você. Quem ela pensa que é? Garota invejosa e egoísta. E ainda se declarava sua amiga? Cresceu na nossa casa. E em que mundo "guardiã dos bons valores da sociedade" é um defeito? Só se for no universo bizarro que ela habita. Falsa, não sabia o que dizer e veio com essas acusações ridículas. E como assim ela não sabe o que Arthur viu em você? Estranho seria se ele achasse algo de bom nessa...
– Certo, acho que já chega irmãzinha – opto por interrompê-la antes que ultrapasse os limites da boa consciência... ainda mais.
Encaro a sua postura indignada e não sou capaz de conter o riso. Seus braços estão cruzados e sua face revela um extremo descontentamento. Caso a Elise surgisse nesse momento, correria o grave risco de ser seriamente ferida ou mutilada. Finalizamos o DDEI, e nos dirigimos ao Divino Sabor, conforme combinado. Diferente do ar alegre de mais cedo, Mari sustenta um semblante sério e firme. Algo que foge naturalmente ao seu padrão.
– Cat – inicia com um tom reflexivo e nostálgico, como se vislumbrasse uma cena em um passado distante – você lembra do Diego?
Meu corpo enrijece de imediato. A mera menção desse nome já me causa arrepios. E embora desgostosa com a recordação, me limito a assentir positivamente.
– Eu tive o meu coração partido, 10% porque ele era a pessoa errada e 90% por desobediência, arrogância e autossuficiência. Optei por escutar opiniões alheias e calar a voz do Pai dentro de mim. A bíblia diz que a paz deve agir como juiz nas nossas decisões. Infelizmente, ela foi a primeira de quem abri mão. Existem caminhos claros, outros cobertos por névoa e, ainda, aqueles permeados por trevas sombrias. Porém, em todos eles, Deus nos garante que não nos deixará sozinhos. Ele sempre tem uma resposta, só precisamos abafar o mundo para dar prioridade aos comandos do céu. Apenas confie, irmãzinha – conclui com um sorriso doce.
Estacionamos no restaurante e ela me abraça forte. Meus pais acenam para nós e Mari desce do carro com o retorno da alegria usual. Tenho a sensação de ser percorrida por uma corrente elétrica de grande intensidade. Meu corpo vibra por inteiro. Deus me ouviu. Melhor, ele me respondeu. Sim, eu vou para o terceiro round, mas, dessa vez, com a estratégia certa.
#ForçaGuerreira... Só Deus na causa!
Se está gostando dessa estória que tal deixar uma estrelinha tão brilhante quanto você?
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