• Dezoito •
Fecho a porta atrás de mim, a tempo de ouvir apenas o meu nome e o do Henry serem proferidos na mesma sentença. A despeito de desconhecer o conteúdo, a minha imaginação facilmente completa as lacunas existentes no discurso da minha irmã.
– Eu o convidei para o restaurante com o único intuito de integrá-lo à Fruto do Espírito. Ele é recém-chegado à cidade e precisa de novos amigos – digo, sem esperar me questionarem o óbvio. Okay, admito que talvez esteja um pouco na defensiva.
– É claro, irmãzinha. Quem ousaria supor algo diferente? – Retribui com o tom carregado de ironia. Ela e minha mãe trocam piscadelas sugestivas e eu reviro os olhos. Adeus paz, foi muito bom enquanto o nosso relacionamento durou.
– Eu gostei do rapaz, me parece ter um bom coração – meu pai declara em um tom animado. – E a despeito do verdadeiro motivo que o trouxe à Águas Douradas, tenho plena convicção de que Deus tem um grande propósito em sua vida. – Fico boquiaberta. Em mais de uma ocasião, o meu pai aparenta estar disperso da realidade e, no entanto, quando a sua opinião é requerida, revela uma sabedoria oculta. Sempre termino impactada. – Mas nada nos impede de auxiliar nos planos do Soberano, não é mesmo, Cat? – Ele me lança uma expressão sugestiva e todos riem. Fico descrente com o comentário. Até tu, pai?
– Concordo plenamente, meu amor. Se a nossa filha está tão exclusivamente interessada em servir aos desígnios do Senhor, quem somos nós para interferir?
Ranzinza, cruzo os braços e subo as escadas à passos duros, deixando o grupo em completo divertimento para trás. Quando até o meu pai decide me provocar, significa que a situação fugiu absolutamente ao controle. Não há mais solução para mim.
Exasperada, me jogo na cama com os pensamentos em absoluto caos. Não, o problema não é a brincadeira da minha família. Isso gera, no máximo, uma indignação temporária e um constrangimento costumeiro. A real questão é bem mais profunda.
Repito as palavras do Henry em minha mente e me questiono se errei em privá-lo da verdade. No dia em que obtive os oito lugares premiados para a final do Torneio de Gamão, o primeiro com quem compartilhei a novidade foi o Art. Não parece certo substituí-lo tão abruptamente, como se descartasse um objeto que não me serve mais. Para ser correta com o Henrique, eu precisaria ser injusta com o Arthur, e isso me magoava intensamente.
Batidas suaves na porta atraem a minha atenção. Com um sorriso travesso, a minha irmã está parada na entrada do quarto, exibindo duas taças de sorvete e uma fita branca, presa ao braço direito.
– Eu vim em paz – declara, de modo solene, movimento a faixa como se fosse uma bandeira. – Podemos conversar?
– Bom, de forma alguma eu sou o tipo insano de pessoa que nega sorvete de chocolate. Então, se o preço é suportar a sua presença irritante... Que assim seja – solto, em tom de gozação, e ela senta na cama ao meu lado.
– Cat – a risada desaparece –, eu sinto muito se a entristeci com o convite ao Henrique. Não era a minha intenção – seus olhos transmitem um pesar sincero.
– Eu sei, Mari. A bem da verdade, eu reconheço que está tentando me ajudar – e ela está.
Nos últimos dias, as perdas da amizade do Arthur e da Elise foram golpes duros ao meu coração. Não foi difícil supor que, na aproximação do Henry, a minha irmã esperava reduzir o impacto e soprar uma brisa de alegria e leveza à minha vida.
– Você sempre gostou de fazer novos amigos, e... – Ela se cala. Sua mente parece selecionar o melhor modo de expressar a próxima frase. – Você não o está substituindo, Cat – e nesse momento, uma lágrima, caprichosa e silenciosa, corre por sua face –, nós não estamos.
Sinto uma dor imediata no peito. Ah, Mari... Como eu não percebi antes? Como pude ignorar os seus sentimentos? Como pude esquecer do seu amor pelo Arthur?
Quando nos tornamos amigos, Mari tinha apenas onze anos. Em todos os momentos, Art sempre a tratou como uma irmã mais nova, marcando presença, inclusive, nas suas apresentações de balé, violino, valsa, teatro, violão, steet dance, e todas as suas invenções que não ultrapassavam dois meses. Ele corriqueiramente a presenteava com flores e bombons, e aplaudia de pé a irmãzinha, mesmo quando o som que brotava dos instrumentos era capaz de enlouquecer um surdo.
Quando a Mari se apaixonou pelo Diego, ele foi o primeiro a ser contrário ao relacionamento. Assim, como um dos principais responsáveis pelo término entre eles, ao lembrá-la o quanto eram incompatíveis. Ele cuidou dela durante nove anos e agora, sem qualquer aviso prévio, o laço entre os dois havia sido rompido.
– Mari, eu sinto muito...
– A culpa não é sua, Cat. – Segunda vez que ouço essa frase hoje. Por que será que é tão difícil acreditar? – Sinceramente, você não é obrigada a corresponder aos sentimentos do Art, certo?
Espera... como? O mundo aparenta cessar os seus movimentos. Repentinamente, tudo fica mais lento... o meu coração, a minha respiração. O meu sangue parece correr silenciosamente em minhas veias, a fim de não interromper o curso dos meus pensamentos. A verdade me atinge como uma bala de prata e uma luz ilumina a minha mente cansada.
Eu sempre me considerei uma mulher corajosa e determinada. E agora, dia após dia, eu me culpo por não ter correspondido às expectativas alheias... do Arthur, da Elise, da Isabel. O que eu estou fazendo? Magoar o Art permanecerá massacrante, perder a Elise continuará doloroso, no entanto, não posso me martirizar eternamente por ser fiel aos meus valores e princípios. Não é certo... Não é justo!
A liberdade do Arthur foi revelar os seus sentimentos e a minha foi deixá-lo partir. Nós dois fizemos escolhas e já chega de eu ser a única a precisar repetidamente justificar a minha. Eu não vou permitir que o meu coração seja mergulhado em um vazio de culpa e frustração. E não vou permitir que a minha história com o Art seja convertida em mágoa e ressentimento. Eu nunca submeti a minha felicidade a opinião de alguém, com exceção do Pai Celeste, e não pretendo começar agora.
– Você está certa, Mari – digo, convencida –, eu nunca esquecerei o meu melhor amigo, entretanto, isso não me impede de fazer novos – sorrio, e ela me abraça. E, finalmente, em uma conversa aparentemente banal, regada a sorvete de chocolate, eu permiti que Deus desse o start em meu processo de cura.
O dia amanhece com um brilho tentador. Desço as escadas guiada por um delicioso perfume de bolos recém-saídos do forno. Meus pais preparam alegremente os deliciosos quitutes para o majestoso evento vespertino. Desfruto do café da manhã com eles e me encaminho para a faculdade. Retorno para o almoço, em companhia da Bel. Ela irá para o Campeonato conosco. Às 15:00h, nos dirigimos a Fruto do Espírito.
Encontramos o Henry conversando, animadamente, com o Tales e o Matias. A tríade vestida de vermelho, ostentando uma enorme bandeira de bordas douradas com os dizeres: "coração de dragão, eterno campeão", e dedos de espuma número 1, indicam que, definitivamente, precisamos de mais programações destinadas aos jovens em Águas Douradas, já que os três rapazes foram convertidos em orgulhosas integrantes da terceira idade.
Meu pai reúne animadamente os demais membros e juntos partimos em formação de carreata até o Estádio Fogo e Gelo, no centro da cidade. O XXV Campeonato Oficial de Gamão reúne alguns municípios próximos, e espera um público de 5000 pessoas, no mínimo. Quase a nossa cidade inteira, eu sei. Bem-vindo ao interior.
O time da casa, liderado pelo Sr. Oliveira, se prepara no lado norte. Sentamos na bancada premiada, que oferece a melhor visão do local, e aguardamos a abertura do Torneio. Matias, acompanhado do Tales e da Isabel, começam a animar a torcida com o hino do Coração de Dragão.
– Bem-vindos ao maior espetáculo da Terra – grita o Sr. Oliveira, com os braços para o alto. A plateia explode em palmas. Exultante, ele vem em nossa direção, e cumprimenta cada um.
– Sr. Oliveira, este é o Henrique, um novo integrante da Fruto do Espírito e um jogador profissional de gamão, pelo que eu soube. – Henry ostenta um sorriso prepotente. Como alguém consegue se exibir com a habilidade de disputar gamão, eu jamais entenderei.
– Muito prazer, meu rapaz. Espero que aproveite o show – declara com um olhar sagaz. Seguro a risada, com muito esforço, diga-se de passagem. – Cat, querida, eu não vi o Arthur. Ele não vem?
Ah não, Sr. Oliveira, eu o substitui por esse outro cara aqui. O que o senhor acha? Embora seja a resposta que a minha mente formule, decido seguir um caminho menos constrangedor.
– Acredito que não – e desvio a minha atenção para o Henry, a fim de evitar uma enxurrada de questionamentos. Ele está comendo, tranquilamente. Espera...
– Meu Deus – de um sobressalto, ele solta a embalagem –, isso que você tem em mãos é Cavasco?
– Bom – ele lê o rótulo rapidamente –, parece que sim – seu semblante fica alarmado. – Por quê?
– Porque é incrível – e fim. Cavasco é um tipo de chips, produzido pela Sweets & Books, formado por lascas de brownie repletas de gotas de chocolate. Um perfeito alimento criado pelo homem, mas idealizado por Deus. – Pode me dar um? – peço com a voz doce.
– Bom, pedindo assim... – ele me lança um olhar maldoso – Não! – Eu fico descrente. Ninguém priva um ser humano de Cavasco. É quase tão grave quanto negar um copo de água.
– Não seja cruel, Henrique, eu só quero um.
– Você quer? – Ele levanta o embrulho o mais alto possível e me lança um olhar desafiador. – Nesse caso, venha buscar.
Como assim? Quantos anos ele acha que eu tenho... cinco? Eu não vou entrar nesse jogo... pelo menos, não para perder. Me arremesso contra ele, tentando alcançar a embalagem a todo custo. Ele faz barreira com a outra mão.
– Pode esquecer, Fluffy, nem em sonho vou facilitar para você.
O jogo fica acirrado. Parecemos duas crianças disputando um brinquedo. Eu provoco cócegas nele e, em meio as suas risadas, me aproximo do alvo. No entanto, uma voz familiar e suave, faz uma corrente elétrica percorrer o meu corpo. Quando me volto para frente, contemplo uma expressão de surpresa genuína. Vinte três anos sem um único clichê e de repente isso... Por que, Pai?
– Arthur, que excelente revê-lo. Começava a supor que você não vinha – declara o Sr. Oliveira, alheio ao contexto.
– Bobagem, eu jamais perderia a oportunidade de cumprimentar um futuro campeão. – O Sr. Oliveira exibe uma postura pomposa. – Infelizmente, não poderei ficar. – Claro que não, eu doei o seu lugar. – Porém, estarei junto com o Coração de Dragão em pensamento. Sr. e Sra. Benedetto, é sempre um prazer encontrá-los.
Eles o abraçam, de modo afetuoso. Estranhamente, ele sussurra algo no ouvido do meu pai, que responde com um acenar discreto. O que poderia ser? Qual assunto seria comum a ambos? Com um sorriso enorme, ele se dirige a minha irmã.
– Minha pequena Mari, como você está? O Mat tem lhe tratado bem? – Mari solta um sim apaixonado, e o abraça, sendo seguida pelo Matias. – Eu trouxe as fotos que me pediu, irmãzinha. Espero que correspondam as suas expectativas.
– Estão perfeitas, Art. Elas ficarão extremamente agradecidas.
Mari possui um lindo trabalho com as mulheres em situação prisional. Há seis meses, ela criou um projeto para fotografar os filhos das mães encarceradas. Ela solicitou auxílio do Arthur, que atendeu prontamente.
Quando viajamos para a Itália, Art descobriu a sua paixão por fotografia. Desde então, tem lapidado essa habilidade por meio de cursos e prática... muita, muita prática. Ele captura de seres inanimados, passando por lugares, animais, até pessoas nas posições e situações mais diversas. Possui um amplo laboratório analógico de revelação em um dos cômodos da sua casa, e uma visão artística que deixaria inúmeros fotógrafos profissionais boquiabertos.
E, por fim, ele se volta para mim. Vejo a sua mente lutar bravamente para manter uma expressão neutra. Considerando o contexto, admito que ela está fazendo um ótimo trabalho.
– Cat... – Sua frase é interrompida e minha respiração também.
Dizem que os piores momentos da nossa vida estão, estranhamente, conectados às pessoas que nos são mais íntimas. Suponho ser verdade, porque a próxima voz que ouço não provoca qualquer sentimento positivo em meu íntimo, a despeito de um dia já ter sido uma fonte de imensa alegria.
– Boa tarde, Catarina.
– Boa tarde, Elise – Oh, céus.
Oh céus!! Agora pegou fogo o parquinho, o estádio e até o mar... Quero só ver o resultado desse encontro!!
Se está gostando dessa estória, que tal deixar uma estrelinha tão brilhante quanto você?!
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