C A P Í T U L O 34

A dormência do juízo

          ― Vira, vira, vira! ― elas gritavam fazendo ecos latejantes percorrem cada neurônio do meu cérebro.

          ― Chega! Não vou mais fazer isso. Já virei duas doses e ainda não são nem nove horas da noite. Já não sinto meu nariz ― falei com voz chorosa, franzindo-o.

          Se elas soubessem o tamanho da minha vontade de esganá-las, não estariam ao meu lado com aqueles sorrisos convencidos. Maldita hora em que sucumbi à chantagem emocional delas. Na verdade, nem havia sido chantagem, fora uma ameaça mesmo. Estrategicamente, Sophi, Mad e Mel haviam se reunido em casa mais cedo para me torturarem.

          ― Eu já disse que não quero despedida de solteiro! ― arquejei me jogando na cama, braços e pernas abertos e esticados como uma estrela.

          ― Ah, você quer sim, nós queremos, e nós vamos ter uma! ― Sophi bradou enquanto vasculhava o meu closet.

          ― Vocês estão malucas, hoje ainda é quinta-feira, e eu tenho que trabalhar amanhã! ― insisti.

          ― Não tem, não! Eu sei que o Sr. Landon te liberou desde quarta, e você só continua indo porque é teimosa. ― Levantei minha cabeça fazendo uma careta para Mel que estava parada na porta do closet com um dos meus sapatos de salto na mão.

          Ela era uma intrometida traidora!

          ― Darling... ― falou Mad se deitando ao meu lado com seu habitual movimentar sensual. Virada para mim, cotovelo na cama e cabeça apoiada na mão, me encarou. ― Já está tudo programado. O nightclub foi reservado, e estará cheio de homens lindos. Será inesquecível... ― Ela abriu seu enorme sorriso felino, o qual me fez temer pelo "inesquecível", e então me deu um beijo na bochecha antes de se levantar. ― Mas, se você não quiser ir por bem, infelizmente será por mal.

          Reparei em sua troca de olhares com a Mel, e o que eu vi a seguir me chocou o suficiente para me obrigar a aceitar. Minha amiga segurava uma corda vermelha, e me encarava com a expressão mais perversa que aqueles olhos escuros poderiam sustentar. Elas seriam mesmo capazes de me amarrar caso eu recusasse? Diante dos olhares insanos delas só havia uma resposta. Com toda certeza que sim.

          Concluí que estavam deliberadamente descontroladas e que a união das três era milhares de vezes mais perigosa do que eu seria capaz de imaginar. Temi pelo meu destino naquela noite, e embora não quisesse sair de casa, sabia que se ficasse choraria boa parte do tempo, assim como houvera alguns episódios na última semana.

          Balancei minha cabeça e espantei as lembranças de horas antes, me concentrando no bar onde estávamos. O lugar estava ficando cheio, eram poucas as mesas desocupadas, e ao fundo uma música agitada se misturava às vozes crescentes. Era impressão minha ou havia aumentado quantidade de pessoas ao nosso redor com os olhos curiosos sobre nós? Não era nada surpreendente, dado o escândalo delas, estavam causando tumulto.

          Tive vontade de me encolher.

          ― Para de ser fraca! Vira essa porra logo ― berrou Sophi batendo a mão no balcão já visivelmente alterada pelas três doses seguidas que tinha ingerido.

          Céus, aquilo não tinha como terminar bem.

          ― Vai, Li! É só o aquecimento antes de irmos para a boate ― declarou Mel batendo palmas.

          ― Vocês querem que eu entre de quatro na boate, só pode.

          ― Não seria má ideia, os homens iriam à loucura com essa bunda. ― Mad riu me dando um tapa na bunda.

          ― Ai! ― protestei massageando a região.

          Elas reviraram os olhos, e Sophi elevou o copinho com a dose de tequila. Fitei o líquido dourado que brilhava à minha frente, e fazendo uma cara de choro, virei a terceira dose que desceu queimando tudo. Quando senti a bebida chegar ao meu estômago, fui tomada por uma breve ânsia como se tudo quisesse voltar. Me agarrei firme ao balcão, fazendo uma careta carregada de um esforço gigantesco para me controlar, enquanto tentava ignorar as risadas delas.

          Elas iriam me pagar. Um dia eu ainda teria a oportunidade de me vingar de todas.

          ― Boa garota! ― falou Sophi me dando tapinhas no ombro.

          ― Eu nunca mais saio com vocês, nem amarrada, nem de qualquer outra forma ― choraminguei.

          Naquele exato momento o barman colocara três drinques diferentes à nossa frente. As taças estavam cheias com um líquido translúcido levemente rosado, com algumas sementes de romã, e algumas folhinhas verdes. Era tão agradável aos olhos que até tive vontade experimentar. Não poderia ser tão ruim quanto a tequila.

          ― Para de drama, Li. ― Sophi me entregou uma das taças, antes de pegar a sua e depois segurar a minha mão. ― Vamos!

          Mel pegou o seu drinque, e a Mad, a sua taça e garrafa de RedOpus, e assim fui guiada para uma das mesas. Como a boate só abriria às vinte e duas horas, elas tiveram a brilhante ideia de parar em um bar antes. Se me restaria um fio se sobriedade para conseguir ir até a tal boate, eu não tinha certeza, mas quem sabe se não sobrasse, elas não insistiriam nessa ideia maluca. De qualquer forma, era melhor ter cuidado com elas.

          ― Por que a Katerina não veio? Eleonora não a deixa sair? ― indaguei com a voz calma, já embolando um pouquinho as palavras.

          Madeleine riu balançando a cabeça negativamente. Eu acabara de falar uma asneira, no entanto, que culpa eu tinha se ainda era difícil aceitar que aquela menina de aparente dezesseis anos, não só morava sozinha na Oceania, mas como também era a responsável pelo controle total dos vampiros neste continente. Quando ela havia me revelado isso, quase não acreditei.

          ― Não, Eleonora não se importa com isso. O problema é a Kate, ela é muito certinha e sair de casa não faz muito o seu tipo. Ela é adolescente só na aparência, mas a sua mente e espírito é de uma idosa.

          ― Ah... ― Com o canudo na boca, sorvi a minha bebida. Aquilo era bom, parecia uma água frutada, foi difícil parar de beber.

          ― Ei, vai com calma que isso aí tem álcool, e muito ― repreendeu Sophi retirando a taça da minha mão.

          ― Poxa, não parece. ― A verdade é que eu já não estava sentindo muitas coisas, e isso não parecia ser um bom sinal. ― Preciso de água. ― Me levantei de uma vez, e vi tudo ficar mais lento e um pouco embaralhado. Meu corpo oscilou sutilmente, me fazendo voltar para a cadeira de uma vez. ― Sophi, acho que tem alguma coisa errada.

          As três gargalharam, e eu tive vontade de soltar um xingamento, mas da mesma forma que a ira surgiu, se esvaiu, e comecei a rir também. Logo a Mel se levantou para pegar água que eu queria, e acabou voltando com um garçom sustentando em sua bandeja mais uma rodada de bebidas.

          A embriaguez não era perceptível só em mim, mas em todas, Mel quase caíra da cadeira quando voltou a se sentar. Até a Mad que não parava de virar uma dose atrás da outra do seu Opus, parecia alterada. Ela ria e fazia caretas engraçadas ao contar e ao ouvir algumas histórias que foram surgindo.

          Minutos se passaram, a conversa transcorria, e de um modo natural tal qual o álcool permitia, migrou para um monte de besteiras, muitas mesmo, de todos os tipos e das mais indecentes. Me abstive ao silêncio já que não era capaz de opinar, o máximo que eu podia fazer era rir ou ficar muito chocada.

          No meio daquela confusão, e de todas as risadas, surgiu uma certa melancolia e eu senti vontade de chorar.

          ― Está tudo bem, Li? ― perguntou Mel com a voz arrastada.

          ― Eu não quero me casar ― respondi com a voz embargada. ― Me desculpa, Mad, eu sei que ele é o seu irmão, criador, sei lá.

          ― Não se preocupe, darling. O Anton pode ser meu irmão, mas agora você é minha amiga ― declarou ela passando a mão no meu cabelo.

          ― Obrigada, Mad. ― A abracei. ― Ele não gosta de mim, ele não me suporta.

          Que ironia do destino, a última vez que estivera em um bar, havia matado um vampiro, e quase três meses depois, eu estava em outro sendo consolada por uma.

          ― Oh... isso não é verdade ― tentou me confortar.

          ― É sim. ― Comecei a chorar ― Eu não sei o que estou fazendo da minha vida. Não sei o que vai ser de mim.

          ― Oun... ― Sophi e Mel falaram juntas enquanto se aproximavam para se unirem ao nosso abraço. ― Suspende a bebida ― finalizou Sophi.

          ― Por que as coisas não poderiam ser mais fáceis? Nós poderíamos tentar ser amigos, mas nem conversar ele quer. Ele só sabe me irritar e me provocar. O que ele tem de lindo e charmoso, tem de cruel...

          ― Você pelo menos já chamou ele pra conversar, Li? ― perguntou Mel.

          ― Já, várias vezes. Mas ele disse que não queria conversar, e que a sua única vontade era de me matar ― relatei soltando um riso ao recordar das palavras dele. Não parecia ser mais tão assustador depois que aceitei a minha sina.

          Mel e Sophi trocaram olhares preocupados.

          ― O Anton consegue ser tão amoroso às vezes ― ironizou Mad soltando uma risada.

          ― Às vezes tenho vontade de matar ele também ― confessei e logo uma onda de choro voltou com toda força. ― Mas nem isso eu posso fazer... ― solucei.

          ― Como sua amiga e psicóloga, acho que vocês precisam conversar e resolver isso antes do casamento ― aconselhou Sophi. ― Depois ficará tudo mais complicado.

          ― Tenho que concordar, uma conversa é primordial ― se pronunciou Mad pensativa. Tão logo seus penetrantes olhos azuis começaram a brilhar. ― Acabei de ter uma excelente ideia. ― Ela me entregou uma garrafa de água. ― Beba, respire fundo e tente se recuperar. Vou te levar até o apartamento dele, e assim vocês poderão conversar.

          ― Não! ― Balancei minha cabeça freneticamente. ― Ele vai me expulsar de lá ou me matar, eu não quero ir...

          ― Darling ― Mad me interrompeu ―, ele não vai fazer nada disso. Vocês vão morar juntos daqui a dois dias, uma visita não é nada demais.

          ― Eu acho que é o mais sensato a se fazer, Li ― ponderou Mel.

          A sobriedade praticamente inexistente que me restava, dizia para eu não ir, mas o meu lado embriagado, desprovido de juízo, era mais convincente e desejava desesperadamente resolver aquela situação tensa que existia entre nós dois. Eu só desejava enxergar uma luz no fim daquele túnel sombrio, algo para me apegar, para me dar esperanças de que aquele casamento não seria o meu atestado de óbito.

          Ao terminar de beber a água da garrafa, seguimos para o banheiro. Tentei me recompor enxugando as lágrimas, e limpando a maquiagem borrada ao redor dos olhos. Ajeitei o vestido preto colado ao meu corpo, mas como sempre acontecia com aqueles modelos, me peguei subindo o decote tomara-que-caia, e depois tendo de puxar a barra para baixo. Contudo, diante da minha ebriedade, eu não estava nem aí, pelo menos a minha bunda estava coberta.

          Não imagino como, dado o estado dela, mas Sophi conseguiu retocar o lápis dos meus olhos, e a Mad contornou os meus lábios com seu excêntrico batom vermelho enquanto a Mel ajeitava os meus fios loiros. Ao final, todas se afastaram e me encararam surpresas.

          Eu devia estar horrível.

          Pensei duas vezes antes de olhar no espelho outra vez, no entanto, era preciso diante da possibilidade de conseguir desfazer alguma coisa enquanto ainda era tempo. Me virei e vi algo muito diferente de mim, eu estava selvagem, até demais. Olhos e boca marcados, os cabelos levemente bagunçados, e o vestido curto...

          ― Só espero não ser confundida com uma garota de programa pelo caminho ― murmurei e elas riram escandalosamente.

          De qualquer forma, se eu conseguisse andar direito já estava no lucro, já que o meu senso comportamental e as minhas inibições pareciam ter sumido completamente.

          ― Você está incrível, ― afirmou Mad se colocando ao meu lado, e ao me abraçar pela cintura, se aproximou do meu ouvido. ― Aposto que vocês terão uma reconciliação ardente.

          Só ignorei aquele comentário, estava longe de estar ajuizada o suficiente para analisar o real significado dele. Será apenas uma conversa esclarecedora com o seu futuro marido. Repeti para mim mesma. No auge do meu estado entorpecido e confuso, nem me lembrei de quem realmente estávamos falando, e do quão louco ele poderia ser. Estranhamente esse detalhe havia sido esquecido. Eu só conseguia pensar em uma conversa sensata, entre dois adultos entrando em um acordo para conviver bem.

          Era isso.

          Pagamos a conta do bar, e então fomos embora no carro da Mad. Durante o caminho nem consegui ponderar se aquela ideia era mesmo boa, já que as três não paravam de conversar e rir. E também não demorou muito até que carro fosse estacionado em frente a um enorme edifício moderno de cor grafite e fachada de vidro fumê.

          ― É aqui, ele mora na cobertura. Se apresente na recepção e diga que está aqui para falar com Anton Skarsgard ― falou Mad apontando para a entrada envidraçada.

          Olhei para ela e depois para as meninas no banco de trás, esperando alguma movimentação que indicasse que estavam prontas para sair do carro, mas não houve nenhuma.

          ― Vocês não vão entrar comigo? ― questionei confusa.

          ― Melhor não. Não queremos atrapalhar a conversa, além do mais, o nightclub nos aguarda. ― Mad deu um sorriso, alcançando a minha mão. ― Quando terminar, me ligue, que venho buscá-la para se juntar a nós.

          ― Boa sorte, Li ― desejou Mel.

          Liberei um suspiro irresoluto dando uma última analisada em todas elas, que disparavam sorrisos e piscadas encorajadoras. Aquilo não parecia certo, e não havia sensatez o suficiente para me impedir. Peguei a minha bolsa de mão e desci do carro, ficando alguns segundos parada em frente ao prédio sentindo a brisa fria da noite. Um calafrio me subiu pela espinha e eu tive de abraçar os meus braços para dispersar o incômodo.

          ― Vamos, entre ― gritou Mad pela janela.

          Acenei para elas, e então caminhei até a porta de vidro que, depois de alguns segundos, fora aberta. Já dentro da suntuosa recepção, fiquei meio perdida. Qualquer som parecia ricochetear entre o piso e aquelas paredes altas cobertas por mármore escuro. Os meus saltos se chocavam estrondosamente contra ele enquanto eu caminhava até o balcão.

          Atrás dele, um senhor humano de cabelos levemente grisalhos, trajando um elegante uniforme social azul-marinho, pediu os meus documentos para identificação, e após me devolvê-los interfonou no apartamento do Anton. Por um momento tive medo de ser barrada logo na recepção, mas para a minha surpresa, assim que o senhor finalizou, me entregou um cartão magnético escrito "Visitante", falando que era só passá-lo no local indicado do elevador, que ele me levaria até o meu destino.

          Subi até a cobertura, e ao sair do elevador me deparei com um hall extremamente frio, de chão escuro e paredes de textura grafite com vários quadros pendurados, mas com suas telas inteiramente pintadas de preto. Até parecia uma mini galeria de arte sombria. Não contive o ímpeto de passar os braços ao redor do corpo.

          Era assustador, e estava frio, muito frio.

           Ao caminhar até a porta de madeira negra, vi que ao lado dela tinha um painel tecnológico que estampava uma aldrava de ferro, e ao tocá-lo ouvi ressoar o mesmo som oco do metal atingindo a madeira. Achei aquilo engraçado e interessante, mas não menos peculiar.

          Após alguns segundos a porta se abriu, e uma energia vampiresca me envolveu. Um senhor de pele alva e cabelos brancos, vestindo um terno preto rigidamente alinhado, sem falar nada, deu um passo para trás me indicando a passagem com um gesto refinado.




Alfred Russell




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