Ambelle

A aldeia era quase um vilarejo, haviam algumas casas espalhadas nenhuma muito próxima uma das outras. Os moradores não se importaram com nossa chegada, também não discutiram quando papa negou o convite para ficarmos em algumas casas. 

O acampamento foi montado, as tendas completamente erguidas e só então paramos para descansar, meus pés estavam completamente doloridos e minhas mãos ganharam alguns calos também, e quando Cloe e eu nos deitamos sob uma cerejeira mama se juntou a nós. Seus cabelos estavam presos num coque, enquanto uma fita preta rodeava sua cabeça, seu rosto estava sujo com manchas de cinzas da fogueira acesa no centro do acampamento, ela parecia esgotada.

"Olá meninas." Ela nos cumprimentou com um sorriso.

"Hey Mama!"

"Olá tia Becky, você parece bem cansada, pior que a gente." Cloe a olhou franzindo o cenho, talvez estivesse pensando muito profundamente ou, o que era mais provável, que estivesse irritada com o rumo que o dia tomou fazendo-a trabalhar quando podia ter aproveitado todo o dia com o marido.

"Acho que estou ficando velha, apenas isso minhas queridas." mama sorriu enquanto recostava-se em uma das árvores.

"Os anciões da tribo querem reunir a todos numa noite de fogueira novamente, ouvi alguns dos homens murmurando sobre isso." Cloe comentou, passando os longos cabelos por seus ombros enquanto começava a trançar pequenas mechas de cada vez.

"Quando ouviu isso?" Quis saber curiosa, meus olhos talvez estivessem brilhando agora, nunca fui a melhor em esconder meus sentimentos. Não que eu estivesse sentindo algo.

"Ainda hoje, ora essa. Não tive muitas oportunidades de ouvir conversas desde ontem muito cedo." Ela falou com um sorriso malicioso. 

"Pelos céus! Pare, ou irei vomitar em meus próprios pés." Levantei ambas as mãos, num gesto de pare, meu ombro ardeu terrivelmente com o movimento mas eu ignorei aquilo.

Talvez ficasse inflamado, mas que droga! Por que alguém precisa sair mordendo as outras pessoas?

Ouvi mama rir, ela realmente gargalhou, encostando-se contra o tronco áspero da árvore.

"Não dirá isso quando estiver no lugar dela." Garantiu com os olhos brilhando em humor contido.

"Bom mama, por enquanto não estou no lugar dela, e não quero estar por um bom tempo ainda." As suas riram. Deixei que meus cabelos caísse sobre meu rosto, que inconvenientemente, ganhou um tom de vermelho profundo.

Era só o que me faltava. Pensei irritada, por ter ficado tão vermelha assim.

Não que eu não quisesse um marido, longe disso, eu  queria muito ter alguém pra mim, mas eu não me sentia pronta, só agora ouvindo Cloe a incerteza do que o casamento traria se fez presente.

Além disso uma parte minha que sempre ficava a espreita começou a fantasiar com quem não deveria. Eu fiquei fascinada desde que pus meus olhos nele, mas agora… o que isso fazia de mim?  

Eu não queria decepcionar meu futuro marido, e menos ainda começar um relacionamento sabendo que jamais iria amá-lo. Meu coração doeu e nesse momento mais uma vez o ressentimento por não ter opinião ou escolha estava rastejando sobre mim.

"O que fazem aí?" A voz irritada de Freyja chegou até onde estávamos. "Fizeram-me vir procurá-las." Ela estalou a língua num claro sinal de repreensão.

"Está bem longe da hora do jantar," mama falou, pouco afetada com a irritação crescente de Freyja.

"Sim, estar. Porém alguém tem que fazer algo para os homens comerem, já me encheram falando que seus estômagos reclamam."

"Eles podem esperar um pouco mais minha jovem," mama estendeu uma de sua mãos em direção a ela. "Junte-se a nós também, merecemos um bom descanso assim como eles merecem comida"

Ela hesitou por alguns momentos, mas logo rendeu-se ao pedido, sentando-se próxima a Cloe, Freyja por um raro momento pareceu esquecer seus afazeres. A conversa variava constantemente e tão rapidamente que eu mal conseguia acompanhar as mudanças de assunto.

Em certo ponto, o céu já ganhava um tom forte de preto azulado quando mama pôs-se a rir subitamente. Ergui minha sobrancelha encarando a mulher ao meu lado, os cabelos jogados para trás com o vento enquanto os braceletes de ouro balançaram barulhentos com os movimentos de seus braços.

"O que é tão engraçado Senhora Loopse?" Freyja perguntou desconfiada. Sobrenomes de família era algo que só Freyja usava.

"Nada demais, apenas lembrei-me de uma antiga lenda que meu bisavô me contou."

"Ooh eu gosto de ouvir as lendas do clã!" Cloe declarou empolgada inclinando-se em direção a mama que ainda tentava conter a risada. Eu não era o que podiam chamar de admiradora de lendas, mas depois da surpresa com o jovem lobo por não ouvi-las passei a dar mais atenção ao que me falavam.

"Vocês terão a chance de ouvir esta, mas não agora" mama declarou, a expressão decepção no rosto de Cloe seria quase cômica se eu não tivesse ficado tão curiosa quanto ela também.

"Claro mama," revirei os olhos me pondo de pé, minhas mãos automaticamente passaram a tirar a grama presas no tecido da minha roupa.

"Deixar uma mulher grávida curiosa chega a ser cruel!"

Arregalei os olhos, girando em meus calcanhares tão rápido que perdi o equilíbrio me segurando em mama para não cair, Freyja não teve a mesma sorte tropeçando na raiz de uma árvore ela acabou caindo para frente rolando até o final da pequena elevação rochosa que estávamos.

"Freyja!" Cloe correu até ela, eu fui logo atrás. "Você está bem?" 

"Sim. Sim, estou ótima." Freyja riu de si mesma, para depois olhar atentamente o rosto de Cloe. "Você está mesmo..."

"Grávida!" Completei impaciente.

Cloe riu, seu rosto ganhou um tom rosado enquanto olhava para as próprias mãos. Sua felicidade era palpável.

"Eu descobri isso hoje, achei que estava doente e então fui para Nanci a curandeira."

"Contou para Namu?" Perguntei.

"Vou conta no jantar," ela me olhou nos olhos, eles brilhavam com uma animação dançante. Se é que isso era possível.

Não sei quem se moveu primeiro mas em poucos segundos Cloe, Feyja e eu estávamos espremidas num abraço apertado. Um pequeno momento de felicidade entre três amigas, tudo parecia certo  estava onde deveria, me permiti esquecer meus receios enquanto caminhávamos de volta para acampamento.

Cloe ficava mais empolgada a cada segundo, compartilhando seus planos para Namu. Um olhar de esguelha para Frey e não pude deixar de notar que quanto mais feliz Cloe ficava, mais os ombros de Freyja afundavam.  

📌

Eu sentia alguém me observar. A sensação de ter alguém me olhando não passava, e certamente não era o jovem lobo ou eu teria sentido seu calor. Era muito estranho, eu tinha certeza que coisas assim não eram normais.

Mas eu sentia, lá no fundo a pequena válvula de auto-preservação empurrava tentando chamar atenção. 

Meus olhos correram ao longo da muralha de árvores que me cercavam, estava escuro demais para ver algo através dela mas isso não me impedia de querer achar algo que eu não poderia encontrar: um par de olhos vermelhos e a frieza da pele branca.

"Preste atenção nas lendas Ambelle," papa me repreendeu parando ao meu lado, seu rosto praticamente congelado numa expressão vazia. A voz de líder. 

Suspirei deixando a sensação incômoda de lado. A voz dos anciões atravessaram a névoa escura da minha preocupação enfim, chegando em minha mente para ser devidamente processada.

"... e a deusa de três faces abençoou seu leais filhos. O lobo é a ponte que liga duas faces opostas, e por anos eles protegem a face mais fraca da deusa de sua face mais maligna." O velho senhor de cabelos brancos trançados, erguia as mãos, espalhando ossos sobre a fogueira, soprando areia branca ao vento. Posso ter me engasgado levemente uma ou duas vezes.

"Deusa de três faces isso me dá sono," Freyja murmurou ao meu lado, fazendo um pequeno som de cloop com a língua, uma senhora olhou feio pra nós duas e meu pai até me deu um beliscão, e não no sentido figurado. Qual o problema dessas pessoas?!

O aglomerado de pessoas me lembrava uma festa de casamento, quando muitos clãs se reuniram para os dias de festa. Os clãs que faltavam chegaram ao pôr do sol, Richard McLean foi a primeira pessoa a me ser apresentada.

Meu noivo. 

Ele parecia bem… Decente. Os primeiros minutos com ele foram mágicos, eu até suspirei de verdade como nos romances literários, ele era simpático e gentil, beijou meu rosto me fazendo ficar corada e passou um bom tempo conversando com papa enquanto eu o observava disfarçadamente. Tudo bem, talvez não tão disfarçadamente assim, já que fui pega no flagra não uma mas sim, três vergonhosas vezes.

Não era assim tão bonito, não que eu tivesse algum senso de beleza para homens. Já tinha ouvido Nanci falar uma vez, a uma garota recém casada que reclamava de uma cicatriz que o marido tinha no rosto, que depois do casamento ela ia esquecer de beleza e pensar em tamanho. Confesso que fiquei um pouco confusa com isso... no começo, até Cloe se casar.

Se for julgar por altura, o lobo deve ser bem maior que Richard, pensei mordendo o interior de minha bochecha. Ok, isso foi muito, muito estranho, o que é que estou pensando? Que coisa indecente Ambelle Hamira!, Obrigada consciência por me falar algo que já notei.

"..mira?" Encarei o ancião que estava em meio ao círculo de pessoas próximo a fogueira, por estarmos todos sentados ele estava se elevando sobre nós como um gigante, a luz fornecida da fogueira projetava uma sombra ainda maior dele para as árvores. Ele parecia ansioso, me olhava com expectativa.

Demorei alguns segundos até perceber que todos me olhavam com expectativa na verdade, meus olhos foram de um canto a outro, os pais de Richard me encaravam com curiosidade. Papa levantou-se fazendo um sinal com a cabeça, reforçando o fato de que o ancião tinha me chamado. Ferrou, e agora? O que eu faço? 

"Ahn?" Murmurei, pareceu a coisa mais lógica a se murmurar.

"Que bom que se ofereceu!" Papa sorriu forçadamente. "Venha até aqui."

Isso não me parecia bom. Me ofereci para quê? Fiquei de pé e sorri, não podia fazer feio em frente aos meus futuros pais. 

Outras duas garotas se levantaram também. 

Não deve ser nada muito ruim, coragem Ambelle!, como sempre minha consciência sendo minha maior incentivadora. Só queria que ela não me deixasse entrar em tanta merda.