4. ENTRE O IDEAL E O CORRETO
Ambelle
Em meu clã, as tradições para casamento eram muito rígidas, diferente dos clãs do leste onde a donzela era sequestrada. Eu sempre achei isso muito romântico, ser levada por um homem que te queria, e depois seus pais não poderiam fazer nada mais além de conceder a sua bênção. Nos livros sempre era mágico.
Apesar do romantismo sugerido ao imaginar a história ideal onde ambos se amam, a realidade dessa tradição poderia ser de revirar o estômago. Ser levada por qualquer um que decide querer você, pelo simples fato de poder fazer isso. Em um local onde a mulher em questão não poderia opinar se de fato queria ou concordava com aquilo. Desesperador.
Essa, felizmente, não era a minha realidade no entanto. Ainda que a minha realidade não fosse muito melhor já que meu papa escolhia quem seria meu noivo.
"Está animada?" Cloe perguntou pela milionésima vez.
"Pelos céus! Eu nem ao menos sei quem é." Nada tinha começado realmente ainda, mas eu já estava farta de tudo.
"Seu papa aprovou o pretendente, e você sabe que ele nunca aprovou ninguém Ambelle, isso é um sinal..." Cloe praticamente saltitava dentro da minha tenda.
"Sinal de que eu devo fugir?" Tentei.
"Não seja assim garota! Sinal de que ele é o homem ideal pra você." Freyja estava sentada em minha cama, os panos de sua saia se espalharam sobre suas coxas enquanto ela apoiava um dos pés sobre o joelho, colocando pedrinhas brilhantes nos dedos do pé.
"Duvido que haja um homem ideal pra mim," comentei ironicamente rolando para ficar de barriga para baixo no tapete enquanto olhava as garotas. Cloe jogou uma longa mecha de seu cabelo para trás, enquanto parava seus saltitos ao meu redor.
"Ora, mas é claro que há! Talvez o pretendente seja um certo lobo que gosta de cheirar bundas..." ela sorriu maliciosamente. Revirei meus olhos.
Meu maior erro foi ter comentado sobre isso.
"Ele nem ao menos faz parte do clã." A pontada de sarcasmo em minha voz, fez com que ambas ignorarem minhas bochechas vermelhas.
"De qualquer forma, ele tem sangue cigano e esse seria o momento ideal para uma aliança familiar, afinal ele é o primeiro lobo dessa geração." Freyja mastigava seu lábio inferior, muito concentrada em arrumar todas as pedrinhas em uma fileira perfeita, para se importar em tirar a franja dourada que caia em frente a seus olhos.
"Não acho que papa se importaria muito com esse fato, todas vocês sabem como ele é ligado a tradição, e os membros de nosso clã têm o costume de se casarem entre si." Falei baixo, eu não tinha a menor intenção de parecer triste ou decepcionada, mas foi assim que elas entenderam o tom baixo que usei.
"Oh Ambelle, você sabe muito bem que seu papa não aceitaria nada menos que o homem ideal, se não aceita o jovem lobo ele certamente não é o homem certo pra você." Cloe era extremamente sentimental, ficava eufórica com tudo, e magoada muito facilmente também. Ela era o tipo de garota doce, que sonhava com um conto de fadas e idealizava o conto de fadas de todas as suas amigas também.
Ela já tinha um conto de fadas, seu casamento foi no ano anterior e a festa durou quase uma semana inteirinha. Ela estava maravilhosa com o vestido rosado com babados vermelhos, a prova da sua castidade, os cabelos escuros trançados em ambos os lados da cabeça, foi a primeira vez que fantasiei com meu próprio casamento. Porém papa nunca deixou nenhum pretendente seguir adiante comigo, nunca aceitou ninguém, eu até acharia que o problema era comigo que ninguém me queria, mas Freyja e Cloe sempre me contavam os murmúrios que ouviam dos que eram rejeitados por papa. Papa nunca me diria quem rejeitava ou não.
As vezes, eu me sentia esquecida. Principalmente depois que até mesmo Freyja com seu jeito arrogante e sarcástico foi prometida e poucos meses depois estava casada, apesar de Freyja ser um ano mais velha que eu, Cloe era dois anos mais nova e isso me fazia sentir bem mal, ter ambas as minhas amigas casadas e eu escondida atrás de meu papa.
Imagine qual foi minha surpresa ao acordar esta manhã e ter papa esperando-me ao lado de um dos anciãos, achei que eu tivesse feito algo muito errado, mas não era o caso. Um pretendente havia sido aceito, e o casamento aconteceria em seis semanas, eu não podia questionar ou perguntar quem era o noivo, então apenas sorri sem vontade tentando aceitar a nova informação.
"Sim, sim, eu já sei de tudo isso." Fiquei de pé, esfregando meu olhos enquanto suspirava, pelo menos agora eu tinha um noivo.
"Os outros clãs já chegaram?" Perguntei de repente, lembrando-me dá mulher de olhos vermelhos que encontrei no rio. Girei em meus calcanhares, voltando-me para minha cama enquanto Freyja me dava espaço.
"Não até onde sei, Gael não me falou nada." Ela murmurou distraída, referindo-se ao marido.
"Namu também não." Cloe informou sentando-se no chão a nossa frente.
Estranho, eu sabia que estava fazendo uma careta, porque Cloe me olhava divertida.
"O que foi?" Ela questionou.
"Quando fui pegar água, encontrei uma mulher no rio, ela tinha olhos vermelhos como o lobo." Era bem mais fácil chamá-lo de lobo, já que nenhuma de nós sabíamos o nome dele.
"Será que é uma loba também?" Cloe bateu palmas animada.
"Não seja tola Cloely, não existem lobisomens fêmeas." Freyja cortou-a revirando os olhos, finalmente terminando seu trabalho, ela esticou ambos os pés, vendo o resultado e sorriu em aprovação.
"Porque ela teria olhos vermelhos então?" Cloe quis saber. Freyja levantou-se andando pela tenda como se precisasse esticar os pés.
Se não fosse de Freyja a se estar falando eu poderia confundir os passos apressados e os dedos apertando o vestido como ansiedade.
"Talvez, seja uma sugadora de sangue..." ela sorriu afetadamente erguendo uma sobrancelha fina, os olhos brilhando perversamente.
Bufei.
"Não seja tola você Freyja. Isso não existe." Balancei uma mão em sua direção, descartando a possibilidade. Ela deu de ombros.
"Lobisomens também não."
Um bom argumento.
📌
"Vamos desarmar todas as tendas, e seguiremos para a aldeia." Papa ordenou, os homens obedeceram e começaram a trabalhar. Fiquei confusa.
"Mas por quê papa? Aqui é o lugar ideal, não vai alagar se chover, tem comida fácil e perto, e um rio a poucos minutos de caminhada." Argumentei.
"Só temos um lobo até agora querida, estamos muito longe de sua casa, mesmo um lobo precisa dormir as vezes e ele não pode sempre deixar a aldeia para checar se estamos seguros." Papa deu tapinhas gentis em meus ombros, antes de me deixar para trás.
"Nós temos homens bem fortes aqui, podemos nos proteger!" Eu estava sim um pouco chateada, mas não sabia o porquê. Eu era o tipo de pessoa que não entendia nem a mim mesma.
"Não contra o que o lobo caça," papa parou, os dedos apertando as têmporas como se estivesse com dor. "Ambelle, quero que me prometa que não sairá para nenhum lugar sozinha." Ele segurou meus ombros, abaixando-se o suficiente para que eu visse a seriedade em seus olhos.
"Tudo bem papa, eu prometo." Murmurei. Ele me abraçou apertado beijando minha testa carinhosamente.
"Ótimo, não quero que nada nem ninguém machuque você."
"Nós temos um lobo," brinquei, apenas para ver sua tensão se dissipar. Deu certo, ele riu, o som reverberando por seu peito fazendo um sorriso involuntário sair de meus lábios também.
"Temos sim," ele se afastou mais uma vez e avisou antes de sair. "Ajude as garotas a guardarem os alimentos."
Não demorei a obedecer, pegando um cesto esquecido e guardando os pães deixados sobre a mesa. Senti minhas costas queimarem, um arrepio subir por minha coluna me fazendo parar, olhei para trás vendo um par de olhos vermelhos me observar de cima abaixo, como se me estudasse.
"O que faz aqui?" Perguntei antes que meu cérebro realmente pensasse em minhas palavras.
"Vim falar com seu pai, por esse motivo estão indo para a aldeia." Ele disse enquanto se aproximava, agarrando alguns pães, ele os soltou dentro do cesto. "Deveria ter mais cuidado com quem conversa garota."
Ele estava falando dele ou da visitante do rio? Os dois pareciam perigosos na mesma medida para mim.
"Não entendi." fiz questão de dizer. Virei-me para ele, encarando seus olhos mesmo que isso me deixasse trêmula e um tanto sem fôlego.
Ele me agarrou pelo braço, puxando-me para trás de uma tenda, com a força do movimento os laços de minha manga se soltaram expondo meu ombro, seus olhos estavam focados em mim, o calor de sua mão em meu braço chegava até meus ossos. E essa não era uma comparação romântica, ele realmente era o sol personificado.
"Não torne tudo isso..." ele estalou a língua suspirando. "De lobo, e caçar um monstro mais difícil ok? Não converse com seres pálidos que podem sugar toda a vida de seu corpo. Porque eu não posso ver o futuro e saber quando você estiver em apuros."
Lembrei do nosso rápido encontro no rio, minhas bochechas foram tingidas de vermelho na mesma hora.
"Eu não estava em apuros!" Pisquei repetidamente, lambendo os lábios enquanto tentava passar por ele. "Estava apenas pegando água."
"Você estava falando com um vampiro, o que ela iria fazer? Te ajudar a carregar os baldes?" ele perguntou com um sorriso cruel. "Se ela houvesse te mordido, você estaria morta."
Vampiro. Minha cabeça estalou, essa era a ameaça que fez os lobisomens despertaram. Minha garganta ficou subitamente seca, e o ar estava escasso demais perto dele.
"Ok, pode se afastar um pouquinho? Você está me sufocando." Soltei sem pensar, e imediatamente me arrependo de minhas palavras.
"Não consegue ficar no mesmo lugar que eu?" Ele perguntou trazendo o rosto para perto do meu, parecia se divertir com minha reação. Meu coração pulou em meu peito golpeando minhas costelas, achei que todo o clã pudesse ouvi-lo, empurrei seu peito e me esquivei de lado para sair de perto dele.
Não foi uma boa ideia. O lobo segurou-me pela cintura, empurrando meu corpo contra o tronco da árvore que sustentava a tenda, arfei surpresa.
"Você me deixou realmente curioso desde que chegou." ele falou perto demais.
"E você me deixou bem chocada" rebati só pra não ficar calada. A risada dele foi baixa e profunda quando ele respirou próximo ao meu pescoço.
"Quero testar algo que está me deixando meio maluco." E antes que eu conseguisse notar algo ele baixou a cabeça mordendo o local macio onde meu pescoço encontrava o ombro.
"Oohh" não sei o que saiu da minha boca, uma espécie de grito e suspiro surpreso, fechei os olhos ao sentir seus dentes perfurarem a pele, grunhindo de dor. E então ele estava lambendo e beijando o local onde mordeu.
Não sei se estava mais chocada por ele ter me mordido ou por eu ter achado aquilo bom. Demorou um pouco mas quando a lucidez voltou e lembrei que agora eu tinha um noivo, a completa vergonha me percorreu. Empurrei os ombros largos dele, enquanto minha mão fazia seu caminho até o rosto dele, mas ele não pareceu sentir nada, diferente da minha mão.
"Afaste-se." Falei com toda a firmeza que pude. "Uma jovem comprometida não pode estar escondida atrás de uma tenda com outro homem."
Toda a diversão escorregou de seus olhos, eu quase podia ouvir um rosnado se formando em seu peito.
"Você é casada?" De sua voz pareciam sair estacas de gelo. Respirei fundo, derrepente muito consciente dos arredores.
"Ainda não. Mas daqui a algumas semanas estarei sim casada."
"Perdão" Vi quando ele engoliu em seco, a carranca curvando os lábios. "Lamento por ter mordido a mulher de outro homem." Ele virou-se, seus olhos não mais vermelhos e sim negros, caminhando em direção a floresta.
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