1. ENCONTRO DOS CLÃS
Ambelle
O calor deste lugar me matava lentamente. De todos os lugares do mundo em que já estive, este com toda certeza era um dos piores.
Mama encarou meus olhos através do espelho enquanto terminava de trançar meu cabelo, seus lábios moviam-se silenciosamente enquanto ela murmurava canções antigas. Ela era jovem, tinha o dobro da minha idade, cabelos castanhos volumosos, olhos negros, a pele morena bem mais escurecida pelo tempo passado sob o sol implacável.
Eu era muito diferente dela, tinha o mesmo rosto fino e porte esguio, a mesma paixão por viajar, mas era aí que as semelhanças terminam meu cabelo era ruivo, a pele num tom mais claro e os olhos num inusitado tom de azul, nos diferenciava.
"Seu papa estará observando você. Ele sabe que gosta de sair durante as longas reuniões, mas não dessa vez mocinha." Sua repreensão veio em um tom suave, mas firme. Suspirei, eu não me sentia mal por não querer escutar as lendas bobas desses anciões.
"Eu não vou a lugar nenhum. Já falei isso não foi? Dei-lhe minha palavra mama, isso não significa nada?" Perguntei exasperada, e se tivesse que admitir, um tanto magoada por sua falta de confiança.
"Como filha do líder deste clã, você precisa comportar-se Ambelle, não pode fazer o que bem entender, regras foram feitas para que a ordem seja mantida." Ela terminou de trançar meu cabelo, colocando um único fio solto atrás de minha orelha cuidadosamente.
"Eu já sei de tudo isso."
"Não sei o porquê de errar tanto ainda, então." Ela falou, a sobrancelha se erguendo ironicamente enquanto segurava meu rosto entre as mãos e trazia seu rosto para perto beijando minha testa.
"Porque foi para isso que os filhos foram criados," sorri me afastando enquanto alisava minha roupa, tirando possíveis fios de cabelo que estivessem presos a saia vermelha.
Papa era realmente líder do clã de ciganos do sul, um dos mais antigos do grupo, este era o único motivo para o aceitarem como líder. Ciganos gostam de liberdade, não gostam nem um pouco de uma liderança a qual sintam-se presos, ou seja, eu não serei a líder se ele morrer, não é algo herdado e sim conquistado com o tempo.
Realmente muito tempo, já que os ciganos cultivam o respeito aos que viveram mais que eles próprios, sendo assim os mais velhos por terem muito conhecimento, mereciam liderar. Já a mim o máximo de tempo que tenho são 18 anos vividos sem acumular conhecimento nenhum, além de romances literários cultivados em minha mente nas horas vagas.
Deveríamos estar seguindo para oeste, perseguindo a noite infinita até chegarmos a nosso verdadeiro destino, porém, algo fez com que papa tivesse de interromper nossa jornada. Nenhum ancião parecia discordar em ficarmos, por isso ninguém questionou ou demonstrou impaciência apesar da quarta lua está bem próxima.
Não fazia muito tempo desde que descobri o motivo de pararmos. Aquele território pertencia a uma tribo que os anciões conhecem, ou conheceram a muito anos atrás, e não esses anciões que temos hoje, mas nossos antepassados. Ou seja, essa não era a primeira vez que o clã do sul atravessava essas terras, e se eu tivesse escutado alguma das lendas contadas em todas as nossas paradas, saberia de qual tratado falavam.
"Ambelle!" A voz irritada de mama me fez pular. Eu havia esquecido completamente que precisávamos sair.
"Calma! Já estou indo!" Peguei meu pingente caído sobre a velha cama, prendendo-o desajeitadamente ao redor do meu pescoço, deixando a pequena pedra bruta rosada cair entre meus seios. Eu havia ganhado tal presente de uma velha senhora que parecia mais frágil do que o tempo que lhe restava, ela me fez prometer que ficaria com ele para sempre, e que passaria para minha filha se um dia tivesse uma. Não sei porquê o aceitei, nem porquê usava-o, mas eu podia sentir uma força que me levava até ele que me chamava, ou que deixava um enorme vazio quando eu não o usava.
"Você precisa aprender a ser mais pontual." Mama murmurou assim que cheguei ao lado dela, o acampamento já estava vazio, só havia nós duas ali.
"Se ficarmos conversando vamos nos atrasar bem mais." Caminhei em direção a floresta, vendo uma pequena trilha quase escondida pelas árvores.
"Ambelle..." virei-me para ver um sorriso reprimido, enquanto mama me olhava com a cabeça caída de lado. "A reunião é na montanha a leste daqui."
Abri a boca, sem achar uma desculpa muito boa, sentindo minhas bochechas ficarem quentes.
"Ahn... bom, vamos lá." Ergui o queixo caminhando na direção oposta a que estava.
"Você precisa prestar mais atenção ao que os anciões dizem."
"Mama, eles me cansam! Vem com todas aquelas lendas e profecias e adivinhações ridículas que nunca são o que eu quero ouvir." A encosta da montanha era muito íngreme, cheia de pedras soltas que poderiam facilmente tirar o equilíbrio de qualquer um, por mais experiente que fosse em escalada.
"Nem tudo é o que queremos ouvir, e não seja tão desrespeitosa Ambelle Hamira não foi assim que te criei." As palavras foram acompanhadas por um tapa na cabeça, me fazendo grunhir de raiva.
Mama era bem melhor que eu escalando, levou um tempo, porém chegamos até o local da reunião sem cairmos ou rasgar nossas roupas nos pequenos gravetos perversos que saiam das árvores e arbusto pelo caminho.
"Por que tem tantas pessoas?" Perguntei curiosa, observando a variedade de rostos, roupas e sotaques.
"Ambelle! Você realmente não escuta o que falamos?" Mama estava um tanto revoltada.
Não posso culpá-la, eu também me irritaria se minha filha nunca ouvisse coisas importantes. Então apenas sorri, as bochechas chegando a doer com o ato, ela suspirou.
"É o encontro dos clãs. A tribo que seu pai encontrou nessas terras, já foram, um dia, antigos ciganos que resolveram se fixar num só local e abandonar as tradições, mas não completamente." Balancei a cabeça em afirmação, eu lembrava de ter ouvido isso em algum lugar. "Não somos os únicos que transitavam por aqui, isso raramente acontece, mas o subgrupo do leste viajava por aqui também."
"E por que isso é um problema?"
"Não é, mas as lendas começaram a se tornar reais. Ou como seu papa gosta de falar, as histórias começaram a se repetir." Passamos pelo aglomerado de pessoas, até onde papa se encontrava com vários outros homens, e nos sentamos junto às outras mulheres, próximas da fogueira.
Eu conseguia facilmente diferenciar os povos da tribo, assim como os ciganos do leste. Suas roupas os distinguiam, a forma como falavam e como avaliavam uns aos outros.
"O tempo que nossos antepassados pregavam retornou. A ameaça deixou de ser apenas uma lenda, e começa a atacar quem encontra vagando pela noite." A voz do velho homem, que vestia peças de couro e tinha seus cabelos grisalhos soltos com uma pequena trança em cada lado nas têmporas, reverberou ao redor. Todos os murmúrios pararam, pude ouvir suspiros surpresos de algumas das mulheres pelo jeito todos sabiam o que isso significava, e que ameaça retornou. Todos menos eu.
"Chega o tempo em que os genes adormecidos precisam ser completamente acordados." Papa levantou-se olhando cada homem próximo. Alguém me explica?
"Nascer e crescer, para proteger." O coro de vozes masculinas me deixou um pouco tensa, e eu não fazia ideia do porquê.
Enquanto ainda falavam meus olhos foram atraídos até uma sombra afastada de todos, talvez fosse só o costume de não ouvir, que me fez desviar a atenção do que era dito, de novo. Aquela sombra era um jovem alto, ele deveria ter pelo menos uns dois metros de altura, a pele bronzeada como se passasse horas sob o sol, o cabelo escuro era tão longo quanto o do velho que antes falava, talvez chegasse a ser mais longo que o meu. Eu não podia ver seus olhos mas eles deveriam estar tão duros quanto seu corpo parecia ser sólido, os lábios estavam apertados e as mãos escondidas atrás das costas, ele não parecia notar mais ninguém.
"Nunca pensei que fosse possível..." uma jovem morena suspirou ao meu lado, sua voz falhava um pouco. Isso me trouxe de volta ao que falavam.
"O ritual do despertar será feito em poucos dias, tempo suficiente para que os dois clãs ciganos que falta chegarem." Era o velho grisalho que falava novamente, o jovem solitário de minutos atrás se aproximou dele. "Com as pessoas em nosso território sendo caçadas, iremos defendê-las. O lobo está de volta."
Com essas últimas palavras, todos os anciãos saudaram jovem solitário que agora eu conseguia ver, tinha olhos vermelhos que crepitavam cheios de fogo e continham tanto calor como se fossem seu próprio sol.
Ele não me olhava, longe disso, mas me senti sendo queimada por aqueles olhos.
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