25.



Lembrete inicial: tivemos postagem do capítulo 24 na última sexta-feira (dia 11/10). Se você ainda não leu, volte um capítulo atrás antes de continuar com este. ♡

Dias normais, era só o que Kurt queria. Por um tempo, que não sabia quanto poderia durar, ele decidiu ser aquilo em que era melhor: apenas o mecânico. Apesar dos dedos fraturados da mão, que ainda estavam se colando no lugar, ele deu o seu melhor.

No momento em que voltou para a garagem e o Camaro estava lá fora — ainda preto, ainda sombrio, ainda parecendo um estranho — Kurt telefonou para o ferro-velho de Santiago para perguntar se ele tinha interesse em ter de volta o carro que havia lhe vendido. Quando o homem chegou com um guincho, ele encarou a situação do Camaro, mas não fez nenhuma pergunta. Santiago era alguém acostumado às bagunças ligadas a Mackenzie. Apenas pegou o Camaro e o levou, deixando Kurt assistindo àquela parte importante de sua vida sendo carregada pelo reboque.

Não houve nenhum carro novo depois daquilo. Isso significava que Kurt não poderia correr. Mas ele também contava que, com isso, conseguiria se distanciar de novos problemas.

Os dias passaram na sombra de uma dor de cabeça mansa; algo que Kurt reconhecia como efeito colateral de tantas reviravoltas bruscas. Manteve-se quieto o quanto pode, apenas focado no trabalho. Afinal, ficar sem corridas significava ficar sem apostas. E sem apostas, precisava se dedicar a conseguir dinheiro de outra forma. Começava o serviço cedo, terminava tarde. Passava a maior parte do tempo na garagem, debaixo dos carros, sem tempo ocioso ou energia para jogar conversa fora. Ele precisava mesmo de um tempo, de qualquer forma.

Algumas vezes, acontecia de não perceber se havia mais alguém no deserto com ele ou não. Quando os outros saiam juntos em um carro só, ou dividiram o velho trailer para um passeio despretensioso, ele passava o dia sem trombar com ninguém.

No fim da semana, Kurt teve certeza de que não havia mais ninguém na Toca porque Mackenzie veio se juntar a ele no trabalho na garagem. Mac poderia fingir que não, mas era alguém que não suportava ficar sozinho. Enquanto Kurt fazia um trabalho silencioso dentro do Porsche, ele também chegou sem fazer barulho e acendeu um cigarro.

O céu sem nuvens dava a eles um dia ensolarado e quente. Kurt tirou o Porsche da garagem, para aproveitar a luz natural, e abriu as duas portas para não sufocar de calor lá dentro. Sem camisa, Mackenzie se sentou bem onde a luz do sol se refletia no capô branco e deitou as costas no vidro do para-brisa. Ele parecia querer apenas relaxar para um bronzeado, mas Kurt já o conhecia o bastante para saber que aquilo significava que ele queria companhia.

Kurt continuou seu serviço. Deitou-se de cabeça para baixo no banco do motorista, a cabeça e os ombros enfiados debaixo do volante, e se colocou a reajustar os pedais. Gastou bons minutos naquilo e, quando se levantou de novo, Mackenzie ainda estava lá. Limpando a sujeira das mãos numa flanela, Kurt sentou direito no banco e estudou o corpo seminu de Mac pressionado contra o vidro, lançando sombra para dentro do Porsche.

Ele reparou em como a saliência das costelas aparecia sutilmente quando Mac sugava o cigarro, e como os músculos voltavam a relaxar quando ele soprava a fumaça. Reparou no fato de que as costas eram a parte mais tatuada de Mac; linhas pretas tão apertadas umas contra as outras que tornavam difícil enxergar algum centímetro livre de pele.

Kurt se inclinou sobre o painel para tentar distinguir algum daqueles desenhos. Um conjunto complexo e sombrio. Ele viu pássaros emaranhados em ninhos feitos de espinhos; penas caindo de asas arrancadas; galhos secos de uma árvore que pareciam garras; uma balança sem equilíbrio pendendo para um lado; e, na base da coluna, um texto escrito numa língua diferente que poderia ser hebraico. Todas elas faziam uma exibição impressionante, mas foi algo além das figuras que despertou o real interesse de Kurt.

Era algo que sempre esteve ali, mas ele não tinha reparado antes. Bem de perto, inclinando-se mais na borda do banco, Kurt viu como a pele debaixo das tatuagens parecia diferente, irregular. Ele ergueu a mão e tocou o vidro do para-brisa, como se pudesse sentir a pele de Mackenzie através dele. Seus dedos escorregaram suados, encontrando nada além do que a superfície lisa do vidro. O indicador lutou para tentar tocar um dos pássaros de bico aberto entre as omoplatas, numa expressão que poderia ser tanto fome, quanto choro, mas ainda parecia inalcançável.

— O que está fazendo, Young? — Mackenzie perguntou de repente, fazendo Kurt se assustar para trás.

Mac continuou deitado de costas, uma mão atrás da cabeça, a outra segurando o cigarro aceso. Kurt tentou entender como Mac poderia ter percebido o que ele estava fazendo.

— Eu posso sentir quando você está aprontando — Mac retrucou à pergunta em sua mente, com uma pontada de mau humor.

Kurt primeiro deixou que o calor em suas bochechas desbotasse antes de se mover. Então deslizou para fora e ficou de pé na porta, um braço dobrado em cima do teto.

— Você tem cicatrizes... — Kurt comentou sobre o que viu.

Com o cigarro na boca, Mackenzie deu um riso curto. Ele virou o rosto para enviar um olhar de lado.

— Pensou que fosse um privilégio só seu?

Kurt soltou a porta para chegar mais perto.

— Suas tatuagens... Você usa elas para cobrir as marcas — ele sussurrou como se tivesse feito uma grande descoberta.

Aquela pequena verdade deu a eles um instante de silêncio. Mac o analisou, tirando o cigarro dos lábios. E então, com a outra mão, puxou Kurt pelo queixo. Assustado pelo movimento brusco, Kurt se segurou na quina do paralama para não cair para frente. Ainda assim, ele terminou muito perto, seu queixo sendo segurado firme.

— Você levou um pouco mais de tempo do que eu esperava, hum? — As palavras de Mac saíram sopradas junto com a fumaça branca.

— Todo mundo sabe? — Kurt precisou perguntar para entender porque nunca ouviu ninguém do bando comentar sobre aquilo.

— Todos os que tem um nariz intrometido como o seu. E os que eu deixo se aproximar o bastante.

Pela inclinação que a mão virava seu rosto, Kurt percebeu para onde Mac queria que ele olhasse: Para a significante tatuagem em sua têmpora. "Devil Inside", ela dizia. Kurt ainda se lembrava como havia sido a primeira coisa que viu em Mackenzie quando o conheceu. Mas dessa vez não era apenas um desenho intimidador. Tão próximo, ele pôde ver o que ela escondia: uma marca pequena, redonda e fibrosa; a marca de um tiro, bem na testa. Kurt segurou o ar.

— Só vê quem está muito perto pra isso. E só chega perto quem eu quero — Mackenzie murmurou. Seu olhar desceu para a boca de Kurt por um segundo, depois subiu de volta para os olhos. — E se você está perto, significa que você está sob o meu controle.

A sensação de encarar uma serpente e pressentir que seria picado passou por Kurt. Inconscientemente, ele umedeceu os lábios com a ponta da língua.

— Pode me ajudar a conseguir uma dessas? — Sua voz saiu arranhada pela garganta seca. — Uma tatuagem, eu quero dizer.

Mac soltou o ar com um riso amargo, depois libertou o queixo de Kurt para lhe dar tapinhas em um lado da bochecha.

— É irritante como você nunca diz o que eu espero. Você precisa parar. Odeio ser contrariado.

Kurt piscou, confuso.

— O que você queria que eu dissesse?

Mackenzie o contemplou uma última vez, de baixo para cima, e balançou a cabeça. A expressão em seu olhar fez Kurt se sentir burro sem saber o motivo. Mac então tragou fundo o cigarro, sem paciência.

— Mande uma mensagem para o Jerome. Ele vai gostar de acompanhar. — Foi a última coisa a acrescentar, antes de escorregar pelo capô e cair com os pés firmes na terra do deserto.

Kurt saiu do caminho com um passo de lado para deixá-lo passar.

Atrás de Mackenzie e Jerome, Kurt entrou no estúdio de tatuagens. No hall de cortinas escuras e luz neon vermelha, a recepção era estreita, e a presença dos três por si só já era o suficiente para enchê-la. Kurt deu uma única volta ao redor de si mesmo para ter uma visão do todo; desde a parede rústica de tijolos pretos, aos quadros verticais com imagens de esqueletos, até as caixas de som tocando heavy metal sueco em som ambiente. Uma cortina de contas os separava da sala de procedimentos, de onde eles podiam escutar um contínuo "bzzzz" de uma agulha em trabalho.

Mackenzie foi até o balcão buscar um catálogo, enquanto os outros dois ficaram para trás. Àquela altura, Kurt entendia o que Mac quis dizer quando disse que Jerome gostaria de acompanhá-los. Jerry estava radiante; não por efeito dos piercings prateados em seu rosto, mas pelo sorriso aberto e olhar brilhante, apontando cada pequena coisa que o animava naquele lugar. Ele foi o caminho inteiro tagarelando sobre palpites do que Kurt deveria fazer, sugestões de desenhos exagerados e enormes. E não parou quando desceram do carro. Kurt sorria com toda sua empolgação.

Quando voltou a eles, Mac empurrou a pasta grossa e pesada no peito de Kurt, que segurou meio torto para que não caísse.

— Algumas ideias, se você precisar — Mackenzie acrescentou.

Kurt se sentou em um dos bancos altos para abrir o catálogo e se deparou com um mundo infinito de possibilidades. Agora ele podia imaginar que Mac nunca teve dificuldade em escolher as suas próprias tatuagens.

De pé, ao lado do vaso decorativo de um cacto grande, Jerome rodopiou, inspirando fundo o ar com cheiro de tinta.

— Eu não tinha ideia de como sentia falta disso... — ele cantarolou. Quando deu a volta completa, Jerry se pendurou nos ombros de Mac, rodeando seu pescoço com os braços. — Você se lembra da vez em que nos conhecemos?

Mackenzie revirou os olhos com um sorriso mordido.

— Aquela em que eu entrei por essa porta e você se jogou pra cima de mim? — Mac respondeu, convencido.

— Eu estava curioso! — Tentando se defender, Jerome riu. — Eu nem sabia na época que você já conhecia o Darko. E que veio para cima de mim só porque ele te disse não, e você decidiu chegar até ele me usando como ponte. Sua mente maligna.

Os dois riram.

— Você não reclamou dos meus métodos quando descobriu — Mac respondeu.

— Bom... talvez você não saiba, mas eu estava olhando pela janela desde que parou o Porsche no meio da rua.

Sem levantar o rosto ou chamar a atenção, Kurt tentou assistir à cena pelo canto dos olhos. Ele viu a mão desenhada de Mac subir e se emaranhar entre os cabelos azulados de Jerry, correndo os dedos pelos fios da lateral.

— Eu também estava curioso pelo o que vi — Mackenzie confessou mais baixo, entre eles.

Jerome mordeu o lábio de baixo.

— Você veio fazer sua tatuagem do pescoço, lembra? — Jerry assumiu um tom manhoso e se curvou para beijar o pomo-de-adão de Mackenzie, onde havia o desenho de um crânio de touro com chifres.

Jerome parecia mergulhado no prazer da lembrança, mas tudo o que Kurt podia pensar era que, se Mackenzie precisou de uma tatuagem na época, foi porque ele deveria ter uma nova cicatriz. Era ainda mais perigoso pensar que tinha sido por algo bem no meio de seu pescoço.

— E você veio colocar o seu milésimo piercing. Eu ainda me recordo de como você não disfarçou as segundas intenções quando me contou onde seria o lugar. — Com a voz grave, Mackenzie escorregou a mão pela frente da calça de Jerome, sobre o zíper, apalpando enquanto ainda olhava dentro dos olhos de Jerome.

Jerry agarrou seus ombros, boquiaberto em meio a um suspiro.

— Mac! Estamos em público. E o Kurt está bem ali — Jerome censurou, mas não demonstrou nenhuma intenção de mover a mão tatuada de onde estava.

Mackenzie tombou a cabeça de lado, apenas o suficiente para ter uma visão do balcão.

— Se importa? — Ele ergueu uma sobrancelha na direção de Kurt. Para além do desafio na voz, havia um intensidade no olhar que, estranhamente, Kurt sentiu como uma espécie de... convite.

— Nenhum pouco. — Kurt tentou disfarçar voltando a atenção para o catálogo. Mas ele ainda escutava os estalos do beijo que começou entre os dois.

Os desenhos nas folhas do catálogo pareciam cada vez menos interessantes. Ele havia ido até ali com uma ideia na cabeça, mas não encontrou o jeito certo de expressá-la ainda. Foi com um gole de coragem que ele bateu a pasta fechada em cima do balcão e se virou na direção dos outros dois, para contar o que estava pensando.

Um arrepio correu por ele quando encontrou os olhos de Mackenzie abertos durante o beijo, encarando de volta na sua direção. Olhos de águia. E ele era a presa.

Jerome partiu o beijo e arfou com um sorriso. Pendurado por um único braço pelo pescoço de Mac, tombou a cabeça para trás, olhando Kurt de cabeça para baixo.

— Já se decidiu, docinho? — Jerry perguntou.

Kurt engoliu seco. Devagar, seu olhar desceu pelo braço solto de Jerome que balançava no ar, até parar na mão que possuía a tatuagem de um beijo. A marca que Mac compartilhava com todos do bando.

— Na verdade, eu estava pensando em uma dessas.

A expressão no rosto de Mac e Jerome se transformou. Primeiro, surpresa; depois, uma plena e visível satisfação. Eles se entreolharam segurando sorrisos no canto das bocas, uma conversa telepática rolando entre eles.

— Diga onde você quer — Jerome soltou Mackenzie para ir até Kurt.

Foi justo aquela parte que deixou Kurt mais sem graça. Mas ele superou o sentimento e puxou a gola da camisa um pouco para baixo, trazendo à tona a cicatriz que haviam gravado à força com ferro e brasa em sua pele.

— Quero cobrir isso — ele confessou, se recusando a erguer o olhar e ver qualquer que fosse a expressão no rosto de Mac ao encarar as letras P e J gravadas nele.

— Está tudo bem — Jerry sussurrou suave, o tranquilizando e fazendo parecer mesmo tudo bem. — Vamos cuidar disso. Certo, Mac?

A resposta não foi verbal. No lugar de palavras, Kurt segurou o fôlego quando viu Jerome e Mackenzie se inclinando para ele. Primeiro foi Jerry, que beijou a marca em seu peito, como se moldasse, com a própria boca, o lugar onde a tatuagem ficaria. Apesar dos piercings frios, o beijo foi aquecido, macio, e terminou com um sorriso se esticando sobre a pele de Kurt.

Por cima do ombro de Jerome, Mac se inclinou logo depois. Quando seu lábio tocou o peito de Kurt, não foi como se beijasse a marca da cicatriz, mas sim o beijo de Jerry que havia ficado impresso ali. Foi um beijo de olhos abertos de novo. Kurt congelou, hipnotizado.

— É um ato compartilhado. Uma tatuagem compartilhada. Entende, Young? — Mac perguntou, como se para confirmar que Kurt concordava.

— Quer dizer que você vai ter uma igual, no mesmo lugar — Kurt respondeu, ciente das implicações.

— Naturalmente — Mackenzie se ergueu. — É isso o que você quer?

Se algum deles esperava hesitação, não foi o que receberam.

No domingo, pela primeira vez em muito tempo, Kurt sentiu que podia realmente descansar. O sofá parecia ter até mesmo assumido uma forma estranha, tendo perdido o costume de se deitar nele. Kurt se deu o luxo de ligar em qualquer canal e assistir a qualquer bobagem, como se a vida não precisasse ser tão séria.

O peito, sem camisa, ainda estava protegido por plástico transparente. A tatuagem do dia anterior estava fresca, a pele avermelhada, um pouco inchada, e levemente dolorida. Mas a satisfação de se ver livre daquela cicatriz com a inicial indesejada valia mais do que tudo. Um definitivo enterro para aquela fase ruim. Não restava dúvida de que Kurt parecia mesmo como parte do bando de Mackenzie agora.

Ele não viu quando dormiu no sofá, mas acordou de repente quando sentiu o peso substancial de uma segunda presença na almofada ao lado. Ao abrir os olhos, encontrou Nash com o braço espalhado no encosto do móvel, o rosto sério mirando nele. Na última vez que se viram, Kurt tinha saído sem avisar para lidar sozinho com a bagunça de P.J. Desde então, Nash havia sumido por dias, distante da Toca e de todos eles; Kurt incluso.

Agora, ele encarava o peito de Kurt e a marca tatuada nele, percebendo como havia perdido boa parte do que aconteceu naquele tempo.

— Isso definitivamente é uma escolha — Nash comentou baixo.

Kurt se ajeitou sentado no sofá e deu o seu melhor para apenas sacudir os ombros.

— Você tem as suas. Eu tenho as minhas. Não é assim que funciona?

O músculo na mandíbula de Nash contraiu. Mas ele surpreendeu Kurt ao puxá-lo pela mão e recostar o próprio rosto sobre seus dedos, quase como se pedindo carinho.

— Eu não quero brigar — Nash disse de olhos fechados.

Desarmado, Kurt esfregou o polegar na bochecha dele.

— Nem eu. — A resposta saiu fraca. — Me desculpa.

Ao longe, no andar de cima, era possível ouvir as vozes de Jerome e Iggy competindo numa conversa acalorada, enquanto Cole ria. Mackenzie e Darko haviam desaparecido juntos com o Porsche, logo cedo. Mesmo com o risco de algum deles surgir a qualquer momento, Nash se apoiou com o joelho no sofá e pairou sobre Kurt de corpo inteiro, buscando por um beijo. Kurt não teve como recusar. Poucos dias sem ter aquilo, e já sentia como uma parte sua faltando.

Depois que o beijo pareceu os balancear de novo, reequilibrando seus humores, Nash parou com a testa encostada na dele e suspirou. Kurt abriu os olhos, notando como ele ainda aparentava estar inquieto, então perguntou:

— No que está pensando?

— É sobre... algo que encontrei. — Nash se afastou para olhá-lo melhor. — Vim para te contar. Ou melhor, te mostrar. Pode vir comigo agora?

O Mustang os levou até um parque ecológico na periferia de Los Angeles. Um lugar verde e fresco, com sons legítimos de um dia de folga: crianças brincando, cachorros a passeio latindo, sininhos de bicicletas tinindo e até a canção suave de um carro de sorvete estacionado ao longe.

Nash estacionou no fim da rua, próximo a uma esquina mais quieta. Então desligou o motor e abaixou os vidros. Desconfiado, Kurt olhou de um lado para o outro.

— Por que paramos?

Nash olhou para ele em silêncio. Então apertou a curva de seu joelho com suavidade, sem segundas intenções aparentes. Foi um simples gesto de apoio que só deixou Kurt mais confuso.

— Ali. Olha — Nash orientou.

Kurt seguiu a direção apontada. No meio da extensão de grama verde do parque, havia um veículo de habitação formando uma área de acampamento. Um motorhome com reboque. Sentada numa cadeira dobrável do lado de fora, enquanto separava o lixo reciclável, havia uma mulher: magra e pequena, de roupas modestas, pele clara e um cabelo liso, ruivo escuro com uma franja reta na frente.

A imagem clicou aos olhos de Kurt e, de repente, ele não estava mais encarando uma simples estranha.

— ... M-mãe? — Sua voz saiu frágil, sem que previsse a nota sentimental por trás.

Antes que pensasse, sua mão alcançou a maçaneta, com pressa para abrir. Kurt se sentiu feito um fantasma atravessando o gramado até a habitação móvel, imperceptível para a mulher que, empenhada, continuava separando latinhas de metal num saco e caixas de papel em outro.

Até que ele chegou perto demais e empacou, contemplando o que está vendo.

— Mãe — ele chamou, ecoando dentro de sua cabeça como num sonho.

Alice Young levantou a cabeça em um susto. Era realmente ela.

Pálida e sem piscar, ela parecia estar vendo uma assombração. Mas era ele, seu único filho.

Mãe — ele repetiu, trêmulo dessa vez.

A mulher pequena se levantou, soltando o que estava fazendo. Mas não fez nenhum avanço, tão paralisada quanto o rapaz maduro e crescido que a observava.

— Kurt. — Sua voz, dolorosamente familiar, fez o queixo de Kurt tremer e os cantos da boca puxarem para baixo, se sentindo de novo uma criança de joelho ralado. Ela o olhou de cima para baixo, depois de baixo para cima. — Você está tão... diferente.

— Estou? — Kurt engoliu. Outro silêncio desconfortável cresceu entre eles. Ele fungou e esfregou os olhos. — Mãe, sou eu. Por favor, diz alguma coisa.

Alice piscou repetidas vezes. De repente, o envolveu em um abraço apertado, que parecia mais aflito do que afetuoso. Desajeitado, Kurt se abaixou para retribuir o abraço. Isso colocou seu ouvido na altura da boca dela, possibilitando que escutasse as palavras sussurradas, temerosas, que disseram:

— Onde está aquele homem, seu pai?

Kurt se ergueu para responder:

— Morto.

Alice cobriu a boca, até juntar as mãos à frente do peito e lamuriar:

— Ó Deus... Ó Deus... Obrigada, Deus.

— Agradeça ao inferno por levá-lo. Ele não morreu simplesmente. Ele foi morto. Eu estava lá para ver. — Kurt esperou, mas Alice não respondeu nada. Então ele precisou ser mais direto. — P.J., mãe. Reconhece esse nome?

Alice ergueu o olhar, assustada e preocupada.

— Então eles alcançaram você — ela reconheceu.

— Como não alcançariam? Eu estava sozinho no escuro, mãe. — O sentimento dentro do peito de Kurt apertou, angustiado. — Você sumiu sem me dizer nada, sem contar o que estava acontecendo. Você sabia deles. Sabia de todos eles esse tempo todo, não é?

Por isso tentou se matar, ele não disse. Por isso tentou me matar junto, ele não disse também. As mãos magras de Alice fecharam o casaco fino que ela vestia, como se subitamente com frio.

— Não existia saída, Kurt. E eu estava presa naquela clínica.

Ela virou o rosto de lado, tímida, se escondendo como fazia quando não queria ser olhada. Kurt olhou para o chão, decidindo que não queria estar ali para arruinar tudo, depois de tanto tempo procurando. Respirando fundo, ele ergueu o queixo e deu uma olhada no motorhome. Não era nada luxuoso, mas ainda assim... devia ter algum custo. Ele se perguntou como ela sequer foi acabar com um daqueles.

— Então é aqui onde esteve vivendo?

Alice deu uma olhada no novo objeto da conversa.

— Aqui e ali. Sim. Nós nunca ficamos por muito tempo no mesmo lugar.

— Nós? — Kurt captou a palavra.

— Eu... e Jennifer — Alice virou o rosto de novo.

— Quem é Jennifer?

— Minha... companheira.

Aquilo sem dúvida foi um choque. Ele não tinha alucinado a entoação diferente da palavra.

— Companheira? Do tipo... namorada? Desde quando você tem uma namorada?

— Desde que ela me ajudou depois que escapei da clínica. Ela dirige um guincho e trabalha com reboque. Por isso vive num motorhome. Olha... porque não entramos? — Alice sugeriu enquanto checava ao redor, como se desconfiada que outras pessoas pudessem escutar. Kurt sentiu alívio pelo convite que pensou que não aconteceria nunca. — Você veio sozinho?

— Não. Aquele carro ali... — Ele apontou, mas percebeu tarde demais que o Mustang não estava mais lá, nem Nash. Com uma averiguada rápida no celular, Kurt descobriu que ele havia deixado uma mensagem: Volto para te buscar. Me ligue quando precisar.

— O que disse? — Alice perguntou da porta do motorhome, esperando que ele entrasse.

— Não é nada — Kurt sacudiu a cabeça, se convencendo de que estava tudo certo. — Você é que estava me contando como tem vivido. Quero ouvir.

— Do que você precisa? Banheiro, comida, descanso? — Circulando pelo espaço limitado da cozinha-sala, Alice atropelou uma palavra sobre a outra. — Temos água quente hoje. E posso preparar algo nutritivo para você. Está com sede? A geladeira não está gelando, mas a jarra está fresca...

Kurt segurou as mãos trêmulas dela, que quase derramaram o copo de água, e pegou o recipiente para que não quebrasse.

— Tudo que eu quero é conversar com minha mãe. Posso? — Ele perguntou, gentil.

O rosto tenso de Alice se suavizou.

Eles se sentaram lado a lado, à beira da mesinha estreita, ocupando o pequeno assento estofado de três lugares. Kurt não resistiu ao impulso de se deitar com as pernas para fora e a cabeça apoiada no colo dela. O gesto despertou memórias que fizeram Alice sorrir. Então ela passou a afagar o cabelo dele, cuidadosamente, enquanto a segunda mão fazia carinho ao longo do braço dele, o embalando.

Sem querer, ela acabou esbarrando na cicatriz dos tiros em seu ombro. Kurt congelou enquanto ela olhava. Esperou por um sermão ou uma repreensão. Mas Alice pareceu disposta a engolir qualquer desconforto naquele reencontro, permanecendo calada.

— Você está feliz aqui, mãe?

Com um suspiro leve, Alice pensou um pouco antes de responder.

— As coisas são melhores, sem dúvida — ela disse.

A mão entre os fios de cabelo deslizou com a ponta dos dedos até o rosto, tocando a cicatriz no supercílio, onde Kurt tinha tirado os pontos recentemente.

— É mais seguro aqui? — Kurt quis saber.

— Estou lutando para que seja — Alice olhou ao redor, depois de volta para ele. — É bagunçado ainda.

O ambiente caiu em silêncio. A pequena televisão de tubo estava no mudo e, a não ser pelo som de vida do lado de fora, da rua, tudo ficou quieto. Kurt reabriu os olhos que havia fechado.

— Estou feliz de saber que você não ficou... abandonada — ele disse, virando a cabeça para encontrar o olhar dela. — Eu queria ter te tirado daquele lugar, mãe. Eu tentei, de verdade. Mas você já tinha sumido.

— Eu não podia mandar notícias, você sabe — Alice respondeu com o olhar perdido para o nada.

— Eu sei, eu sei. Não estou cobrando nada — Kurt tentou consertar. — Só quero fazer mais por você agora. Recuperar as coisas. Você tem dinheiro suficiente?

Alice estreitou os olhos e o analisou daquele jeito desconfiado de quem farejava coisa errada com seu instinto materno.

— E você tem, mocinho? — Ela questionou.

— Bem... sim — ele gaguejou.

Kurt...

— É de trabalho, mãe! Eu trabalho.

— Que tipo de trabalho? — Alice soava exatamente como anos atrás, quando Kurt aparecia com qualquer coisa nova e ela investigava para saber de onde vinha.

— Carros — ele resumiu. — É sempre carros.

Ela soltou o ar, conformada.

— Então guarde. Não vai sair gastando.

Era engraçado e triste ao mesmo tempo o jeito como ela assumiu que se tratava de pouco dinheiro, presumindo que Kurt ainda passasse alguma necessidade.

— Eu vivo bem agora, mãe. Ou... o mais próximo disso. Mas não falta nada.

— Ah, é? — Alice soou curiosa. — Em Riverside?

Kurt engoliu.

— Não. É... outro lugar. — Ele se pegou sem saber como explicaria sobre o deserto. — Eu também encontrei pessoas novas. Pessoas com quem posso contar. É tipo...

Família, ele pensou na palavra, mas ficou olhando para o teto manchado, sem dizer nada. Alice permaneceu olhando para o rosto dele, lendo sua expressão. Lentamente, ela alisou o rosto dele, ajeitando seu cabelo para trás, do mesmo jeito como o penteava quando criança, para tirar os fios da frente dos olhos e enxergar o mundo melhor.

— Você está diferente — Alice repetiu com mais convicção.

Sob seu toque cuidadoso, Kurt pensou um pouco.

— É errado estar diferente?

Nenhum deles respondeu, porque a porta logo à frente se abriu. Por reflexo, Kurt deixou o colo da mãe e se sentou depressa. Os dois encararam a entrada do motorhome e encontraram uma mulher robusta carregando caixas de ferramentas. Seu cabelo era curto, meio grudado pelo suor. Vestia roupas cinza, largas, sem mangas, e sapatos pesados que suportavam longas caminhadas. Um visual com certeza menos preocupado com apelo estético e mais com a praticidade do trabalho cotidiano.

Assim que os percebeu sentados no sofá da cozinha-sala, seus olhos pesados pousaram em Kurt, escaneando o estranho.

— Jen! — Alice se levantou e precisou só de três passos para alcançar a porta. Ela começou a ajudar a carregar as caixas de ferramentas para dentro. — Lembra de quando falei do meu filho? Bem... Jennifer, esse é o Kurt. Kurt, essa é a Jennifer.

Kurt ficou nervoso, sem saber como agir.

— Oi — foi só o que ele disse.

— Oi — Jennifer respondeu com a mesma disposição. Então, finalmente, desviou o olhar para dar uma olhada em Alice, que se agachava debaixo da pia para empurrar as caixas de aço onde ficavam guardadas. — Alice, podemos conversar?

A sós, ela acrescentou com uma ênfase que Kurt entendeu como um recado direto. Antes que Alice dissesse alguma coisa, ele limpou a garganta e se levantou, abaixando a cabeça sob o teto baixo.

— Eu vou esperar ali fora, ok? — Ele acenou para a mãe e seguiu para a porta, comentando quando passou por ela: — Satisfação em te conhecer.

Mas Jennifer não disse um "eu também" de volta.

A porta se fechou às costas de Kurt e ele ficou sozinho ali fora, esperando ansioso. Zanzando de um lado para o outro, tentou permanecer tranquilo e distraído, para não parecer que estava espiando. Mas em algum ponto foi impossível não escutar o que se passava lá dentro, porque as vozes se elevaram.

— Jen, é o meu filho!

— Não. É sua antiga vida! — Houve uma pausa pesada. — Você prometeu que não voltaria.

Aquilo pegou Kurt pelo estômago.

Quando a porta voltou a se abrir, Kurt se apressou para virar para o outro lado, dando o seu melhor para fingir que não havia escutado. Ele soube que Alice estava atrás dele quando sentiu os braços dela ao seu redor, o abraçando pelas costas com o rosto encostado entre suas escápulas.

— Escute... Jen está um pouco cansada agora. Trabalhou a noite toda — Alice disse sem olhar no rosto dele. — Podemos conversar outra hora?

Kurt estava consciente da mentira, mas acenou de cabeça baixa mesmo assim.

— Claro — ele concordou, ainda magoado pelo o que havia escutado. Alice tinha mesmo prometido que não voltaria? Ele não a escutou negar, afinal. — Que tal se a gente sair amanhã? Eu te busco aqui.

Alice se animou subitamente, o soltando para dar a volta por Kurt e segurar suas mãos.

— É perfeito! Vamos fazer isso! — Ela pareceu empolgada pela ideia de encontrá-lo em outro lugar, não ali.

Kurt se forçou a engolir o sentimento amargo.

— De manhã parece bom?

Em um quarto de hotel a alguns quarteirões dali, Kurt se jogou de costas na cama, os olhos vazios apontando para o ventilador de teto que girava lento, espalhando um vento morno do fim de tarde. Enquanto o sol se punha pela janela fechada, ele ficou um bom tempo tentando não pensar em nada.

Mas quando o silêncio pesou sobre ele, Kurt apanhou o celular no bolso e discou um número memorizado. Esperou na linha, contando os ecos do sinal que indicava que estava chamando. Até que o repetitivo tu tu tu virou um:

Ei. — A voz de Nash fez Kurt fechar os olhos. Sem resposta, Nash insistiu: — Está tudo bem?

Kurt pensou muito para dizer algo.

— Está. Eu acho. Não sei bem. Foi meio confuso. Ela ainda é a mesma, mas ficou um pouco assustada. E agora ela tem uma namorada que não vai com a minha cara. Deve achar que sou que nem o meu pai.

Do outro lado, a linha chiou com o suspiro de Nash. Kurt alucinou com o sopro de seu hálito fresco como se fosse físico.

— Quer que eu vá até aí? — Nash ofereceu.

— Não precisa se incomodar.

Kurt. Você não incomoda.

Sem graça, Kurt começou a cutucar o cobertor gasto da cama, arrancando alguns fiapos soltos.

— Está tudo bem, de verdade. Eu aluguei um quarto e vou ficar por aqui para não ter que me distanciar tanto dela nesse meio tempo. Vou vê-la amanhã de novo. Tentar mais uma vez.

Nash concordou com um grunhido, depois perguntou:

— Vai dormir sozinho então?

— É — Kurt respondeu.

— Tem certeza que não quer que eu vá?

— Vem me pegar amanhã. Ligo quando estiver livre.

Pegar você — Nash repetiu com um tom diferente. — Está no topo da minha lista, com certeza.

Kurt parou. Então riu para o teto.

— Eu liguei em alguma hora imprópria? — Kurt comentou, reconhecendo a virada de assunto. — Soa como se você estivesse prestes a perguntar o que estou vestindo nesse momento.

Nash riu também, mas soou muito mais arrastado. Lento. Rouco.

— Ligou na hora certa. E eu lembro exatamente a roupa que você está vestindo, Kurt. Seria mais interessante me convidar a imaginar como vai ser você na cama, indo dormir sem ela.

Uma fisgada prazerosa puxou abaixo do quadril. Kurt rolou de lado no colchão, ajeitando por cima do zíper da calça.

— Agora você está me fazendo sentir o sujo aqui. — Kurt riu mais.

— Quer que eu continue? — Nash brincou. Mas depois que as risadas de ambos diminuíram, ele confessou num tom mais sério: — Só quero fazer você se sentir bem.

— E já funcionou. Muito efetivo — Kurt respondeu humorado, mas assumiu a mesma seriedade ao final: — Obrigado.

A linha ficou silenciosa. Ou ao menos as vozes, porque Kurt conseguia escutar sons distantes ao fundo: motores ligando, fogo crepitando, o vento ao ar livre carregando vozes e música. Era provável que Nash estivesse no telhado da Toca, assistindo de longe enquanto os outros organizavam o início de uma noite de apostas. Kurt devia estar pensando na mãe, no quanto queria reconstruir a vida que perderam juntos. Mas, ao pensar em lar verdadeiro, Kurt mentalizava aquele lugar, aquelas pessoas, e sentia uma incontrolável vontade de estar lá.

— Eu te amo, sabe? — Nash disse de repente.

Pego de surpresa, Kurt sentiu o pulso disparar. A reação de um susto.

— Ama?

— Pra caralho — Nash garantiu.

Um sorriso lento se espalhou pelo rosto de Kurt. Um calor que nascia do peito se espalhou por todo seu corpo, formigando feito cócegas. Ele se enrolou em torno de si mesmo — o braço passando pela própria cintura, os joelhos encolhidos contra o peito — tentando agarrar e segurar aquela sensação para não deixá-la ir embora.

— Isso é bom. Porque eu também — Kurt confessou. — E eu nunca amei antes de você. Na verdade... você provavelmente me ensinou o que é sentir isso.

Nash respondeu devagar:

— Pra mim, parece como a primeira vez também. É diferente de tudo.

Fogos de artifício estouraram dentro de Kurt. De olhos fechados, o rosto meio enterrado no travesseiro, ele suspirou:

— Me conte como estão as coisas por aí. Quero dormir ouvindo sua voz.

Então Nash contou cada detalhe.

E, enfim, Kurt conseguiu descansar e sonhar os sonhos que merecia.



.

.

.

Olha, só! Se isso não é um capítulo com final feliz depois de tanto tempo! Gostaram? 🥺

Agora, o que posso dizer, é que o próximo capítulo será um dos mais importantes da história toda! Sou suspeita para falar, mas eu aconselharia vocês a não perderem. Vai sair na sexta-feira, dia 18/10, por volta das 18h, com muitas emoções! 🗣

Então vejo vocês, até lá! ❤

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top