21.


O momento em que se sentaram passou sem registro. Kurt nem ao menos percebeu quando abaixou a cabeça e adormeceu. Mas quando dedos rasparam atrás de sua cabeça, aquilo enviou uma sensação aterrorizante. Ele acordou assustado de um pesadelo. Assombrado por Antony Young, Monaco, Carter e P.J., todos fundidos no mesmo monstro de 4 cabeças em seu sonho. Seu corpo despertou num solavanco brusco, como se estivesse caindo. Ele se debateu e empurrou, até que bateu em algo sólido, mas macio.

— Ei, ei... calma. Sou eu — Nash cochichou, ajeitando o braço que estava ao seu redor.

Kurt abriu os olhos inchados para ver o dia amanhecendo, o sol se erguendo timidamente no horizonte. Ainda estava sobre o telhado, meio sentado, meio agachado no chão, as costas descansando contra a parede do abrigo da caixa d'água. Sua cabeça se inclinava no ombro de Nash. Kurt se levantou depressa quando percebeu. A jaqueta dobrada de Nash deslizou, caindo, e ele percebeu mais tarde que Nash teve o cuidado de colocá-la debaixo de sua cabeça, para que ele tivesse algo macio para descansar.

Houve uma troca sem graça de olhares. Kurt recolheu o casaco, bateu no lado que caiu no chão para limpar e entregou de volta, se esforçando no limite para não se encolher de vergonha. Mal podia acreditar que tinha obrigado Nash a passar a madrugada ali fora, no concreto duro e desconfortável, assistindo ao seu choro incontrolável. Ao menos agora ele se sentia vazio, como se tivesse esgotado o reservatório de lágrimas para sempre de novo. Ao mesmo tempo que isso era uma vantagem, também parecia ser o problema: a sensação de vazio era uma dualidade árdua.

— Eu estava mais cansado do que pensei — as palavras escorregaram, sem jeito. — Você ficou aqui o tempo todo?

— Você se apoiou em mim e apagou. Eu não queria atrapalhar — Nash disse, com uma voz grave que desceu reverberando pelo peito de Kurt.

O suspiro que Kurt deu saiu trêmulo.

— Me desculpe, de verdade. — Ele pediu, segurando as próprias mãos. As finas cascas que se formavam sobre os cortes e arranhões já eram perceptíveis, ásperas ao toque.

Nash balançou a cabeça, para tranquilizá-lo. Um feixe de sol incidiu sobre seu rosto, transformando seus olhos verdes em dois faróis apontados para Kurt. Ele esticou a mão e correu a ponta dos dedos pelo lado amassado do cabelo de Kurt, ajeitando os fios rebeldes para baixo e atrás da orelha. Não era algo tão importante, mas Nash tinha uma mania discreta de constantemente buscar desculpas para tocá-lo. E Kurt já tinha percebido.

— Há quanto tempo você não dorme? — Nash sussurrou.

— Bastante — Kurt deixou escapar com o ar.

A mão desceu de volta, o deixando, e o calor começou a desbotar rápido.

— Você sabe que pode conversar sobre qualquer coisa comigo — Nash disse.

Kurt sentia as mãos formigarem com a ânsia de querer tocar Nash também, mas decidiu ocupá-las com outra coisa. Prendeu-as atrás do próprio pescoço, e entrelaçou os dedos da nuca.

— É que... — As palavras entalaram na garganta de Kurt. Ele não queria que Nash soubesse das coisas terríveis que esteve fazendo, não queria ter que contar toda a história suja. Por isso, apenas disse: — Eu vi a morte muito de perto, de uma forma perturbadora.

Foi a vez de Nash respirar fundo, como se fosse ele quem estivesse cansado. Kurt subiu o olhar devagar e encarou seu rosto sério. De perto assim, foi que percebeu como o cabelo de Nash estava crescendo, revelando um tom de castanho claro nos fiozinhos curtos. Ele sentiu vontade de tocar aquilo também, para sentir a textura, mas se conteve de novo, apertando os dedos atrás do pescoço.

— Você já me ouviu te dizer pra que não se envolvesse demais. Mais de uma vez. — Apesar das linhas de expressão duras, Nash tinha uma maneira calma e macia de censurar. E ainda havia aquela nota de afeto por trás... — Olha, tudo bem se você acha que é uma insistência chata. Mas eu não vou me cansar de repetir para que saia disso. Você não é o tipo que pertence a uma vida dessa, Kurt.

O sol subiu um pouco mais, e Kurt sentiu o calor aumentando em suas costas, gradualmente. A sugestão passou pela mente de Kurt e ele só conseguiu se sentir estranho. Era como se não fosse uma opção real; ele simplesmente não podia voltar ao que era antes. Não agora que ele conhecia tudo aquilo. Ao invés de responder, ele ficou calado.

— Tudo o que eu quero é ver você sair de toda essa lama — Nash continuou. Então esperou entre mais uma pausa curta. — Eu nem sei ao menos como você conseguiu aceitar vir parar no meio disso tudo.

Kurt abaixou o rosto para o chão e soltou as mãos do pescoço. Ele encarou as pequenas ervas daninhas que cresciam intrusas no meio do cimento e começou a puxar as delicadas folhas. Em algum momento, sua voz quase pareceu sair sozinha, no automático.

— Eu nunca tive nada a perder, entende? Qualquer merda que me oferecessem já seria mais do que eu tinha, que era literalmente nada. Quando Mackenzie me ofereceu a única oportunidade de fazer alguma coisa que eu soubesse fazer, foi como um milagre... — Kurt riu da própria miséria com um riso curto. — E eu... nunca pertenci a lugar nenhum. Eu não tenho pra onde voltar.

As pequenas plantas mostravam suas raízes frágeis depois de arrancadas. Kurt parou encarando, as pontas de seus dedos sujas de terra.

— Nem sempre se trata de voltar. Esse não precisa ser o único movimento da vida — Nash falou.

Com os olhos mirados para baixo, Kurt reparou como o sol nascente em suas costas esticava sua sombra para frente, até que ela encontrasse a de Nash, e as duas formassem apenas uma no chão.

— Eu estou falando sobre continuar. Sobre seguir em frente — Nash completou.

Kurt olhou para cima. A resposta estava em sua mente, mas era algo difícil de se dizer em voz alta, ainda mais olhando para Nash. A verdade era que, de tudo que conquistou depois de deixar Riverside, eram as pessoas que conquistou ali que ele não queria deixar ir. Seria muito doloroso ser sozinho de novo.

Nash pareceu captar alguma coisa do olhar em seu rosto. Ele acenou, concordando, e soltou o ar pela boca, devagar.

— Se desligue pelo menos por um dia. Vai te fazer bem — Nash sugeriu. Então pegou as mãos de Kurt e limpou seus dedos, com suavidade. Quando soltou, seus olhos subiram de volta para o rosto de Kurt. — Posso te levar para onde quiser, se quiser companhia.

Kurt engoliu.

— Eu... tenho trabalho a fazer.

Eles continuaram no lugar por mais alguns segundos. Kurt reparou nas pupilas de Nash se adaptando à luz, contraindo, reduzindo o tamanho.

— Entendi. Tudo bem — Nash murmurou, espanando as mãos. Mas não soava como se ele houvesse "entendido", nem que estivesse "tudo bem". Kurt avaliou o peso de suas palavras e percebeu, tarde demais, que tinha soado como se estivesse dando um segundo fora nele, ainda mais depois de tê-lo deixado para trás quando ofereceu ajuda na última corrida dos homens de P.J. — Sua decisão é uma ordem. Não quero ficar sendo o chato aqui.

Kurt piscou, abriu e fechou a boca algumas vezes, mas nenhum som saiu. Nash já estava mesmo se levantando, arrastando a jaqueta pelo caminho, e saindo para a escada de incêndio. Fora de vista, o que restou foi apenas o som dos passos pesados nos degraus, ecoando e rangendo o metal antigo, até ficarem muito longe.

Reunir coragem para descer pelo mesmo caminho exigiu alguns minutos. Depois de juntar os cacos dos HDs quebrados pelo chão dentro da sacola escura, Kurt voltou devagar para dentro da Toca, para garantir que houvesse espaço entre eles.

A garagem estava aberta quando chegou até lá embaixo, depois de enrolar mais um pouco em um banho. Através dos portões levantados, a luz do sol se infiltrava para dar um descanso às luzes artificiais. Mas ainda era o amanhecer, e o fundo da garagem continuava coberto por uma fina penumbra, formando um gradiente no meio do caminho.

Assim que atravessou o caminho das prateleiras, Kurt viu três pessoas paradas em frente ao Porsche branco estacionado: Mac, Iggy e Cole. Ele deu um passo rápido para trás, de volta para onde não seria visto.

— Essa é a história toda, não tem mais nada — Iggy disse, de costas para Kurt e de frente para Mackenzie. — Pegamos um dos carros daqueles otários, Cole rastreou o histórico do GPS e foi assim que conseguimos a localização da garagem. Depois só o destruímos com o resto dos carros.

Pelo modo como Iggy balançava o peso de uma perna para a outra, movimentando os quadris um pouco além do normal, até mesmo Kurt podia dizer que ele estava contando uma mentira. E quando percebeu do que se tratava o objeto da conversa, Kurt segurou a respiração e espremeu os olhos.

— De quem era? — Mackenzie soava sóbrio, o que tornava a situação um pouco mais grave.

— O quê?

— O carro que pegaram. De quem era?

Kurt não estava olhando, mas ele praticamente conseguiu ouvir Iggy engolindo. Ele abriu os olhos de novo e espiou a vaga do Porsche. O garoto loiro correu uma mão ocasional pelo cabelo perto da orelha e usou o movimento para lançar um olhar de canto para Cole. Estava pedindo socorro.

— Era... hum... Não sei a droga do nome, porra! — Cole praguejou, se agitando também, mas com as mãos. — Você sabe como aqueles ratos do P.J. tem um monte de rostos diferentes.

A linha das sobrancelhas de Mackenzie era uma linha reta, tensa, fazendo sombra sobre a cavidade dos olhos. O modo intenso como encarava os dois à sua frente, quase como se enxergasse através deles, fez Kurt desejar não ter que receber um olhar daqueles. Foi justo então que Mac piscou e seus olhos de tubarão miraram entre as prateleiras, uma linha reta e certeira. Kurt congelou.

Com aquilo, ele foi praticamente arrancado de seu esconderijo. Saiu de cabeça baixa, como se tivesse acabado de chegar e procurasse algo perdido nos cantos do chão.

— E onde o Young entra nisso tudo? Ou vocês vão dizer que o levaram junto simplesmente porque ele tem um rostinho bonito? — Mackenzie alisou a mandíbula com a mão que possuía a tatuagem de corda.

— Ele... escutou por acaso o nosso plano e quis ajudar. Então o levamos também. Ajuda não seria demais — Cole foi mais rápido em responder, porque Iggy aparentemente tinha se afetado com as últimas palavras de Mac. — Não é, Kurt?

Fingindo-se de ocupado com sua caixa de ferramentas, Kurt tentou parecer casual quando levantou a cabeça e acenou.

— É.

Mas seu olhar ficou preso no de Mackenzie, sem que ele calculasse isso. Todas as vozes em sua mente o enlouqueciam com a ideia de que, a qualquer momento, Mac iria reconhecer algum detalhe que o relacionasse com o motorista que dirigiu o Mitsubishi contra ele. Aquilo estava arrastando sua sanidade ao limite de uma forma tão intensa, que Kurt pensou que, a qualquer hora, o peso em sua consciência o forçaria a confessar em voz alta: "Sim, era eu dirigindo para P.J.; sim, era eu humilhando você em público para um fracassado como Monaco."

Mas Mac não disse nada. Kurt começou seu trabalho como se não tivesse nada mesmo a esclarecer.

— Eu já escutei o que queria escutar de vocês dois — Mackenzie declarou. No momento que se levantou do capô do Porsche, Iggy e Cole se afastaram de imediato, abrindo caminho. — Mas quero ouvir a sua história mais tarde, Young. Tenho certeza que você deve ter alguns detalhes mais interessantes pra mim. Estamos mesmo precisando de uma boa conversa, só nós dois, não?

Agachado ao lado do parachoque do Toyota Supra azul de Jerome, Kurt suspendeu o olhar lentamente. Iggy olhava para o canto, visivelmente rangendo os dentes, incomodado. Mas Cole olhava de volta para ele como se estivesse prevendo um acidente dos feios. Kurt não tinha muito o que fazer naquela hora a não ser concordar.

Mackenzie tirou o celular do bolso, para uma ligação, e caminhou para os painéis de ferramentas, aos fundos da garagem. Rápido, Cole puxou Iggy para o outro lado do Porsche, e eles se agacharam ali, se escondendo. Os dois começaram a discutir baixinho sem chamar atenção, quase em forma de mímica.

Kurt tentou não prestar atenção em mais nada. Simplesmente não havia clima para suportar aquelas coisas agora. Já tinha sido duro o bastante superar a noite anterior. Por isso ele se focou no trabalho. Abriu o capô do Supra, mexeu em algumas peças, ajustou alguns circuitos. Mas a voz de Mackenzie no telefone continuava ali, os cochichos de Cole, os resmungos de Iggy... A culpa era pior do que um megafone, amplificando tudo, fazendo parecer gritos ao redor de seus ouvidos.

Sufocado, Kurt tombou a cabeça entre os ombros, os braços rígidos e bem retos apoiados nas bordas do Supra. Pelo estreito espaço debaixo do braço direito, ele teve uma visão do lado de fora, da fronteira onde o chão se dividia entre a sombra da garagem e a luz do deserto. À metros de distância, estava o Mustang, cintilando sob os raios fracos da manhã. Encostado na porta, fumando um cigarro, estava Nash.

Kurt desviou e disfarçou quando Nash o pegou olhando. Kurt se endireitou, coçou o queixo e mordeu a ponta do polegar, nervoso. De repente, foi como se ele tivesse alguns segundos de completo silêncio. Era o momento que seu cérebro parou para decidir uma escolha. Pareceu uma eternidade, mas quando terminou, Kurt recuperou a sacola escura cheia de HDs quebrados largada no chão e jogou a chave de fenda na caixa, o que provocou um ruído metálico.

Ele tinha consciência de como os outros três seguiram o barulho com o olhar, e de como acompanharam também os seus passos. Mas deixou para se importar mais tarde. Um passo atrás do outro, sem vacilar, Kurt atravessou o limite entre a sombra e a luz, indo para o carro parado no deserto. Ele não disse nada quando deu a volta por Nash, até o outro lado. Nem quando abriu e fechou a porta, se jogando no banco do passageiro.

A posição estacionada do Mustang fez Kurt ter que encarar a garagem pelo para-brisa. Os outros pareciam sem entender em vê-lo lá dentro. Kurt não soube se pelo prazer de vê-lo dando o braço a torcer, ou se pela diversão sádica de ganhar um olhar assassino de Mackenzie, Nash demorou um pouco mais do que deveria com seu cigarro lá fora. Mas assim que, finalmente, o apagou na sola do sapato e descartou o resto, Nash abriu a porta do motorista. Antes de entrar, ele apenas mirou a garagem sobre o ombro, na direção de Mackenzie. Kurt reparou como o canto de seu lábio escondia um sorriso e se sentiu dentro de uma aposta particular entre os dois.

A porta do motorista bateu, e os ouvidos de Kurt zuniram com a nova atmosfera.

— Você disse que me levaria onde eu quisesse. — Kurt escolheu encarar um ponto perdido do painel preto, na saída de ar, porque preferia não olhar para ninguém naquela hora.

Nash tomou um segundo de pausa, provavelmente para olhar para ele. Kurt não viu, mas sentiu.

— Pensou em algum lugar?

A mente de Kurt correu, pensando em todos os lugares que ele gostaria de estar agora. Não eram muitos, mas eram os primeiros que vinham à cabeça quando ele queria fugir do que o cansava: O pequeno esconderijo infantil que tinha longe de casa, onde brincava com os cães abandonados da rodovia; a antiga igreja fechada onde às vezes se escondia sozinho; os braços de sua mãe, tão distantes. Possibilidades impossíveis.

— Qualquer um que seja seguro — Kurt murmurou, sem energia. — Mas parece que não existe mais nenhum lugar assim.

— Deixa isso comigo — Nash respondeu.

Por cima do câmbio, ele estendeu a jaqueta, segurando pela gola com a ponta do dedo, para que Kurt segurasse por ele. Kurt colocou o casaco no colo, pensando no que os outros lá fora deveriam estar pensando daquela cena. Mas era melhor pensar nisso depois. Nash abaixou a alavanca do freio de mão e, suavemente, fez uma curva de ré e os levou para longe dali.

Kurt tentou deixar que seus pensamentos se dissipassem com as nuvens de poeira levantadas pelos pneus, mas, encarando o caminho pelo deserto vazio, ele só podia pensar no par de olhos escuros que ficou encarando da garagem enquanto o assistia se afastar.

— Me desculpa se coloquei o Mac contra você — Kurt disse finalmente. — Eu posso ter provocado isso sem querer, desde a última vez que discutimos.

— Não se preocupe. Não é nada com você. É mais porque o Mackenzie já está se cansando de mim — Nash se recostou de lado na porta, apenas uma mão no volante.

Kurt olhou para ele.

— Por quê? Você não fez nada de errado.

Nash o olhou de volta. Havia uma rigidez diferente na borda de sua expressão. Seus olhos pareceram esconder mais do que Kurt sabia.

— Agradeço sua boa fé em mim — foi o que Nash respondeu.

Kurt olhava sempre tão apaixonado para ele que às vezes esquecia o que fazia Nash se encaixar muito bem no bando de Mackenzie: o mesmo aviso de perigo que o cercava para prevenir que chegassem perto demais.

Mesmo depois de meses, ainda havia tanto o que cavar para entendê-lo. Nunca parecia realmente perto o bastante.

Kurt deixou o olhar cair entre os joelhos, e Nash voltou a atenção para a pista.

A sacola escura lotada de HDs destruídos com seu nome resistia caída no tapete do carro. Kurt a apanhou e esfregou o plástico na ponta dos dedos em um nervosismo involuntário.

— Dá pra gente só parar em alguma lixeira onde eu possa jogar isso fora?

Nash observou.

— Do que se trata? Parece importante para ter te deixado tão mal ontem.

Kurt engoliu quadrado, mordendo os dentes. O canto de seus olhos queimou apenas pelo mero pensamento em ter que contar.

O Mustang desacelerou, e eles pararam ali mesmo, sozinhos no meio do nada.

— Kurt — Nash chamou — O que continua te deixando mal assim?

Sufocado, Kurt mal teve coragem de encará-lo. Ele só disse alguma coisa depois de Nash insistir de novo, como se contar fosse a única moeda válida para que voltassem a sair do lugar:

— Se for algo muito ruim... você me julgaria?

— Nunca. — A resposta veio na mesma hora. — Só quero saber como ajudar. Se ter alguém para escutar for o caso, eu estou aqui por você.

Ele havia conversado com Ace sobre Nash uma vez. Agora era uma questão de fazer o reverso, apesar de muito mais difícil. Porque agora envolvia uma culpa dolorosamente mais profunda e consequências do tipo irremediáveis. Kurt ainda não aceitava que havia perdão para si.

Talvez fosse se arrepender mais tarde, mas ele deixou o desabafo sair com a verdade. Desde o plano traçado de fuga até aquelas gravações terminarem quebradas em suas mãos. No fim, o peso sobre si o impedia de erguer a cabeça, resistente em encarar a reação no rosto de Nash por ouvir tudo aquilo.

Mas seu rosto foi levantado pela ação da mão de Nash em seu queixo. Kurt lutou, se encolhendo, mas a palma de Nash encostou em sua bochecha, formando a concha exata para que seu rosto encaixasse no calor de sua pele. Kurt soluçou pelo conforto que não achava que merecia.

A sacola escura foi puxada tão suave de suas mãos, que ele só percebeu quando já estava sem ela.

— Vamos nos livrar disso — Nash garantiu. — Descansa um pouco agora.

Kurt nem ao menos tinha força para dizer qualquer coisa contrária.

O Mustang caiu na infinita Rota 66, na companhia de mais alguns carros. Pareceu um longo trajeto, e a manhã começou a se transformar no início da tarde. Mas ao invés de esquentar, o sol esfriou com as nuvens que foram sendo carregadas pelo vento. Assim que lá fora começou a ficar nublado, Nash subiu as janelas para ligar o ar condicionado. Em algum momento, Kurt se enrolou na jaqueta dele, feito um cobertor, e se sentou encolhido; os pés sem sapato sobre o banco, as pernas dobradas junto ao peito.

Parecia que tinha acabado de fechar os olhos quando os abriu de novo. O motor ainda estava ligado, emitindo um ronco constante e confortável, a uma velocidade moderada. Piscando, Kurt se arrumou no assento e deslizou pelo couro liso. A sacola escura não estava em lugar nenhum mais para ser vista, desaparecida enquanto esteve dormindo. Devagar, ele registrou onde estavam com a visão que teve pela janela.

A Highway 1 era não só a maior rodovia costeira da Califórnia, como a estrada mais bonita também. Ela os conduzia pelas curvas ao pé de uma montanha, enquanto o mar brilhava em azul e branco lá embaixo.

Kurt nunca tinha tido o costume de ser levado à praia. Mesmo com o tempo fechado, ele assistiu admirado enquanto uma grande onda quebrou no meio do mar. Bem perto, um grupo de gaivotas passou voando, cantando. Abrindo a janela para receber o vento, Kurt olhou para o céu e respirou fundo, ouvindo as gaivotas migrando para mais longe.

Era como se pudessem correr o mundo em uma volta; poderiam ir a qualquer lugar. Kurt pensou em como correr com Nash parecia ser diferente. A sensação não era sobre competir, não era sobre ambição de vencer; era sobre simplesmente sentir o momento, sobre se entregar. Tinha sido assim da primeira vez, continuava sendo assim ainda.

— Já deixamos Los Angeles? — Kurt perguntou com o rosto na janela.

Confirmando que havia escutado, Nash respondeu:

— É Santa Bárbara aqui.

O som de sua voz misturada ao vento suave fez Kurt deitar a cabeça na abertura da janela, sentindo o vibrar do motor viajar pela porta até o osso de sua bochecha. Ele fechou os olhos.

— Estamos longe. — Não foi uma reclamação.

Em nenhum momento passou por sua cabeça que estavam de fato indo a algum lugar. Apenas passando. Sem destino. Nada mais para alcançar. Mas Nash disse:

— Estive pensando... Tenho um lugar para te levar. Um lugar para te mostrar algo importante. Pode vir comigo?

Kurt levantou a cabeça, as ondas do cabelo sem corte esvoaçando contra o vento.

— Agora?

Nash acenou.

O "sim" para aceitar o convite foi uma mera cerimônia, pois não era como se Kurt fosse habilitado para dizer não a Nash.

Eles aproveitaram a viagem até que a vista mudou ao entrarem para a cidade. A grande rodovia se reduziu a uma rua estreita, ladeada de árvores. Subindo uma colina, no lugar do mar, agora encaravam um extenso campo verde de grama aparada, de onde despontavam diversas placas de pedra.

Lápides. Criptas. Estátuas de anjos. Um cemitério.

Kurt não disse nada até descerem do carro e caminharem em silêncio sob o arco de ferro do portão aberto.

— O que... — Ele começou.

Porém, Nash apenas indicou com a cabeça o caminho por onde deveriam ir, como se a coisa toda fosse se explicar por si só. Kurt o seguiu, em meio a toda a quietude do lugar, e foi como sentir paz pela primeira vez. Os dois deram as mãos em algum momento, andando mais próximos.

Como esperado, pararam em frente a uma lápide, bem cuidada, polida e de mármore preto. Kurt esperou entender toda a questão ao ler o inscrito esculpido na placa, mas terminou mais confuso ainda.

Em amada memória de

Charles Austin Lane

1990 — 2014

"Não é o fim da estrada, só uma nova chegada."

— Você me perguntou sobre Charlie antes — Nash disse, enviando um arrepio pela pele de Kurt. — Acho que agora é a melhor hora de contar.

Kurt precisou de um longo momento, encarando a lápide, antes de se virar para Nash e olhar em seu rosto enigmático enquanto contava:

— Ele era a melhor versão de mim. Meu melhor amigo. Irmão de alma, não de sangue — Nash continuou. — A gente trabalhava no mesmo negócio, e era nossa coisa favorita, o que nos fazia estar juntos o tempo todo. É difícil até reconhecer um eu do passado separado, sem a influência dele. Consegue entender como era realmente importante?

Kurt acenou devagar. Nash engoliu, o pomo-de-adão subindo e descendo. Como se ganhasse um peso extra, seu olhar caiu para o chão.

— Estou te dizendo isso agora porque... foi um acidente que matou Charlie. Um acidente de carro. E era eu que estava atrás do volante naquela noite.

Kurt deu o seu melhor para conter a surpresa.

— Nash...

Ele continuou, como se não pudesse mais parar agora:

— Nós estávamos... a trabalho quando aconteceu. Eu assumi o controle, porque sabia que o Charlie era muito mais imprudente e arriscado. Mas na ocasião, a gente precisava correr. Correr de verdade. E eu dei ouvidos quando Charlie me disse para pisar no pedal. Parecia que iria dar certo, mas não deu para prever que apareceria outro carro no caminho. Então aconteceu. — Nash tomou uma lufada de ar meio trêmula e desacelerou o ritmo das palavras: — Se eu pensei que deveria ter morrido no lugar dele? O tempo todo. Virou meu pensamento padrão. Foi nessa época que tive problemas com drogas, a dependência de pó que me levou para a clínica por meses. Eu cavei um buraco e me joguei dentro, estava tão ferrado...

Não havia palavras adequadas que Kurt encontrasse para dizer. Então ele subiu a mão até o rosto de Nash e depositou um carinho gentil na lateral entre a bochecha e a orelha. Em reação, Nash segurou seu pulso, não para afastá-lo, mas para garantir que continuasse ali.

— Eu não... te carreguei até aqui só para reviver o trauma — Nash esclareceu, agora olhando em seus olhos. — Só quero desfazer um mal entendido e mostrar que realmente entendo o que quer que você esteja passando com a morte desse cara, Ace. Eu demorei muito tempo para aprender a viver de novo, além da culpa. O mais difícil é perdoar a si mesmo. Mas o que aprendi é que, se você sente um arrependimento tão fundo assim, é sinal de que tem algo bom em você. E é nisso que precisa se concentrar. Eu não posso te dizer para não sentir culpa, mas só que saiba que nada do que aconteceu te faz um monstro. Nem que podemos controlar o destino. Você estava tentando fazer o seu melhor em ajudá-lo. E sei que voltaria no tempo, se pudesse, para fazer diferente, para fazer melhor. É isso que conta. É isso o que realmente diz sobre você.

Em algum momento, restou somente a voz de Nash soando com a brisa fria chiando por entre as árvores, enquanto a visão de Kurt se tornou um borrão desfocado. Agora era a mão de Nash que estava em seu rosto, afastando uma gota teimosa que venceu todo o esforço de segurar as lágrimas acumuladas.

Kurt fungou, se recompondo. Olhou uma vez para a lápide no chão, depois de volta para Nash.

— Você... — Ele tentou encontrar a maneira certa de falar. — Você me chamou pelo nome dele na primeira vez que eu corri nas apostas do deserto. Quando insistiu para que eu desistisse.

— Aquilo despertou esse gatilho enterrado dentro de mim. — Nash suspirou.

— E, ainda assim, você ficou comigo e correu junto. — Kurt reconheceu, horrorizado pelo o que deveria ter significado para Nash fazer aquilo. Nash nunca corria nas apostas, ele se lembrou. Se mantinha sempre de fora, servindo a Mackenzie de outras formas. Jamais correndo. — Por quê? Por que se importou logo comigo, quando já tinha assistido todos os outros correrem diversas vezes antes.

Um músculo na mandíbula de Nash se tensionou.

— Você me lembrou ele — Nash confessou num murmúrio.

A barriga de Kurt gelou.

— De que maneira?

— Pela simplicidade. Pela gentileza. Pela vontade de ver o melhor lado das pessoas. Eu estava tão imerso naquela atmosfera de competição, disputas, segredos... Que quando você apareceu com todo seu jeito inofensivo, com sua consideração de pensar nos outros... — Nash soltou o ar, como se estivesse sufocado. — Porra, você ajudou o Mackenzie na estrada, sem nem conhecê-lo. Entende? O Mackenzie. Você deveria ser um santo!

Piscando com os olhos ardendo, Kurt negou com a cabeça, ainda reorganizando os próprios pensamentos.

— É o Charlie quem você vê quando olha pra mim? — Kurt perguntou com o coração entre as mãos.

Não — Nash respondeu rápido, balançando a cabeça. — Eu vejo você. Você, Kurt. Com todos os detalhes e diferenças que te fazem você. Talvez não faça sentido nenhum agora, mas o que precisa saber é isso: conhecer você, foi uma mudança. Você foi um pedaço de sol em dias escuros.

Parecia tão irreal ser descrito daquela forma, mas Kurt não via nada além de uma honestidade de peito aberto em Nash, que não desviava o olhar.

— É essa a história que também explica o fato de você ser tão enfático em me fazer sair da vida na Toca e das corridas?

Nash fez uma pausa, suspendendo a respiração, sem piscar. Devagar, ele soltou o ar e passou as mãos pelo cabelo de Kurt, até terminar com os dedos entrelaçados atrás do pescoço.

— Também — ele respondeu suave. — Mas eu também pedi para você ficar, lembra? Quando o acidente aconteceu no túnel, não dava para saber quem tinha se machucado ou não, se tinha sido fatal ou não. O Mac tinha desaparecido, Jerome, Darko e Cole estavam desesperados, e eu só podia esperar o pior. Até que você apareceu por aquela porta, como um milagre. Iggy estava deplorável, e eu não podia colocar para fora tudo o que estava sentindo em respeito por ele. Mas quando pude seguir você sozinho até o seu carro... precisei de todo o meu autocontrole para não desmoronar. Eu implorei para você não fazer mais isso. E pedi pra você ficar. Mas não estava dizendo sobre a Toca. Estava dizendo sobre a minha vida. Porque eu me prometi que não me apegaria a ninguém, não deixaria ninguém mais ser tão importante a ponto de me arrastar para o buraco de novo e, desde então, tenho vivido de relações temporárias, nada que seja permanente. Mas você... eu queria que você ficasse. Ainda quero. Mesmo que seja tão egoísta da minha parte.

No meio de tudo aquilo, uma tristeza profunda tomou Kurt. Ele não imaginou que a curiosidade de seu ciúme acabaria desenterrando um passado com aquela profundidade. Ele quis pedir desculpas, dizer que sentia muito, mas as palavras ficaram entaladas na garganta.

Foi Nash quem acabou pedindo em seu lugar:

— Me desculpe por fazer você esperar para saber, por não conseguir dizer antes. Isso tudo toca numa parte realmente difícil da minha vida.

A distância entre eles já se resumia a poucos centímetros. Kurt tratou de reduzi-la ainda mais no abraço mais forte de sua vida, com as mãos agarradas à camisa nas costas de Nash. Peito com peito, ele podia sentir as batidas do coração de Nash, aceleradas, e tinha certeza que Nash também podia sentir as dele, acompanhando a velocidade.

— Não me peça isso, por favor. Não me deve desculpa alguma. — Kurt choramingou. — Não é sua culpa. Na verdade... você está certo. Não é culpa de nenhum de nós.

Mesmo sendo um lugar aberto, eles precisaram sair do cemitério para respirar. Ao invés de voltarem para o Mustang, Kurt se viu sendo guiado por Nash a descer a colina a pé com ele. Logo estavam entranhando pelas ruas de Santa Bárbara, explorando pelo bairro comum onde as pessoas continuavam vivendo suas vidas.

— Foi aqui que vivi a maior parte da vida — Nash contou, como se estivesse muito mais disposto a se abrir agora. — Com Charlie e outros amigos. Crescemos nessas ruas. E continuamos vivendo até tudo acabar.

Kurt observou a vizinhança, reparando no padrão classe média que, para a realidade de onde saiu, conseguia ser bem luxuoso. Uma melancolia irracional espetou seu estômago diante do pensamento que ele e Nash jamais se conheceriam se tivessem tomado caminhos diferentes, se não fosse pelo espaço da Toca igualar suas condições e tornar possível que se aproximassem.

— No que vocês trabalhavam? Digo, você e Charlie. — Kurt tentou colocar a mente em outro foco.

— São... negócios antigos. Não importa mais — Nash respondeu, mas parecia justo o contrário, depois de ter contado como o negócio deles era a grande coisa favorita que uniu os dois no passado.

Mas Kurt sentiu que não era hora de pressionar. Ele não queria ser quem estragaria de novo o clima por questões que não entendia. Talvez fosse melhor deixar que Nash contasse em seu próprio tempo.

— Vem comigo por aqui — Nash o distraiu de novo com o chamado.

Eles correram pela rua sem carros até o outro lado, onde havia uma escola fechada para as férias. Os dois passaram escondidos por alguns poucos funcionários que podavam os jardins e se enfiaram numa parte solta da grade de alumínio, aos fundos do prédio. Acabaram saindo no grande campo esportivo extenso, usado para os jogos do colégio.

Kurt ficou um pouco para trás, admirado por toda a estrutura bem cuidada que nunca conheceu em sua escola pública, onde só havia uma única quadra pequena com chão de cimento e cheio de buracos.

Já Nash foi em frente, olhando ao redor mais com reconhecimento do que surpresa. Então parou, olhando para o céu. Depois fechou os olhos e respirou fundo.

— É minha primeira vez de volta a esse lugar, depois de tantos anos. — Nash disse, e até em sua voz era possível ouvir o rastro de um sorriso.

Agora Kurt admirava apenas um ponto específico de todo aquele imenso lugar, que era justo aquele cara que dirigiu centenas de quilômetros até ali só para lhe oferecer um dia melhor. Uma onda de amor atravessou Kurt. Um sentimento que não sabia ter conhecido antes até de fato sentí-lo.

Ele se juntou a Nash no meio do campo.

— Não me diga que você era um jogador na época da escola — Kurt brincou.

Um jogador? — Nash riu, se gabando. — Eu era o quarterback do time de futebol americano.

Kurt acompanhou na risada, enxergando ainda mais sentido onde Nash tinha aprendido a construir força e forma física.

— Se a gente frequentasse a mesma escola, então você seria o tipo que faria bullying comigo — Kurt brincou.

Mas Nash parou e negou, como se levasse a sério.

— Nunca — ele respondeu. — Eu seria mais do tipo secretamente apaixonado, observando pelos corredores, me fazendo de burro com as tarefas se isso significasse passar mais tempo na aula de reforço com você.

Kurt riu como se fosse piada, enquanto Nash continuou olhando para ele, apenas com um leve sorriso no canto da boca, que não tirava sua seriedade.

— Não está acreditando? Então imagina isso... — Nash, empenhado em convencê-lo, começou a narrar e simular uma partida. — Segunda para dez. O quarterback do time atacante desloca para a esquerda, buscando pela lateral esquerda, sobrevive de forma inacreditável, corre para a linha de gol com domínio da bola, joga para o ar e... touchdown!

Com um assovio alto, ele imitou o apito final, declarando vitória. Kurt olhou para trás, com medo de que o barulho pudesse ter chamado a atenção de algum funcionário. Mas, quando se virou de volta, Nash estava brincando de imitar a torcida ovacionando o resultado. Contagiado por sua despreocupação, Kurt voltou a rir, assistindo à peça teatral.

Foi justo quando Nash gesticulou um enquadramento de câmera com as mãos, em sua direção, colocando Kurt no meio do foco. Nash continuou a narração:

— Então o quarterback olha para a arquibancada, e lá está... o garoto por quem esteve apaixonado o ano inteiro. Dentre a multidão, só tem olhos para ele. O quarterback quer tanto pular a grade e chegar até ele para pedir um beijo, na frente de todo mundo. — De repente, Nash abaixou as mãos para colocá-las no bolso e contemplar Kurt cara a cara. — O único medo dele é que o garoto o rejeite se ele tentar... Ele rejeitaria?

Aos poucos, o riso parou, e os dois foram deixados se entreolhando através do campo.

No súbito silêncio, Kurt deu um, dois, três passos, encurtando a distância entre eles devagar. Nash esperou com paciência, até que Kurt parou e o encarou bem de perto. Nash era uma estátua enquanto Kurt aproximava seu rosto do dele no mesmo ritmo lento. Primeiro os narizes se encostaram, depois as bocas. Então a mão de Kurt estava na nuca dele e a de Nash em sua cintura. Eles nunca se beijaram tão devagar daquele jeito, sentindo cada detalhe, guardando a memória do gesto. Como se fossem novos naquilo. Como se fosse, de fato, a primeira vez — jovem e ingênua — que não puderam ter.

Kurt foi quem partiu o beijo primeiro. Olhou nos olhos de Nash mais uma vez, longa e duradoura, antes de começar a correr a plenos pulmões até o outro lado do campo. Seu coração batia tão rápido, antes mesmo da corrida começar. Soltava risadas para o ar, e o vento carregava o som, espalhando pelo ar livre. Quando espiou para trás, ele viu Nash correr junto, entrando na brincadeira também, empenhado em recuperar a desvantagem e ganhar dele.

Eles terminam caídos e ofegantes debaixo da trave sul do campo. Se levantaram quando já estava ficando tarde, o céu nublado se tornando mais escuro Assim que saíram para procurar o que comer, encontram onde comprar cachorro quente com algumas bebidas em lata. Então ficaram dando voltas pelas ruas do passado de Nash, onde conversaram e compartilharam outras pequenas coisas que faziam a vida parecer mais simples de ser vivida.

Quando já era noite, Nash o levou para conhecer por último o píer de Santa Bárbara. A vista cinematográfica do oceano noturno já seria o suficiente para valer a viagem inteira, mas eles ainda usufruíram do recursos do lugar, experimentando da boa culinária local num dos restaurantes à beira da praia.

Ao fim do jantar, Nash pegou Kurt o espiando por cima da chama da vela que iluminava a mesa deles. O flagrante colocou um sorriso no rosto dos dois.

— Agora você já sabe o suficiente da minha vida? — Nash perguntou, sabendo o quanto a cegueira de informações esteve chateando Kurt desde que começaram aquela coisa entre eles.

— Não o bastante. Mas o suficiente por agora — Kurt respondeu com suavidade. — Eu não quero forçar nenhum de nós por mais do que isso por hoje.

Eles descansaram por mais um bom tempo. Deitados nos bancos perto da areia, assistiram à lua cheia, branca e alta no céu, até terem energia o suficiente para fazer todo o caminho de volta, onde o Mustang esperava estacionado.

Assim que entraram no carro, não tiveram pressa nenhuma em sair do lugar. No lugar disso, se beijaram por mais um pouco e descansaram com os bancos deitados, fazendo nada mais do que conversar trivialidades e se entreolhar com olhos brilhando na penumbra quando o assunto acabava.

Só souberam que era madrugada quando o locutor da rádio anunciou duas horas.

Nenhum deles estava nem ao menos bocejando, mas Kurt estava se sentindo mal em obrigar Nash a ficar naquela posição desconfortável por horas e se viu compelido a dizer:

— Está realmente tarde. A gente devia voltar.

Na semi escuridão, ele sentiu a mão de Nash passear pela lateral de seu rosto, depois pular para o ombro, deslizar pelo braço e terminar em sua mão, de dedos encaixados.

— Só se você disser que está melhor — Nash por fim deixou sair.

— Muito melhor. Graças a você. Obrigado. Foi tudo muito importante, de verdade.

A próxima coisa que sentiu, foi Nash se inclinando para beijá-lo na altura da testa. Então eles estavam de novo sentados, com o motor ligado e uma estrada bonita pela frente. Nash apenas deu uma última olhada para sua antiga cidade antes de irem.

A manhã estava perto de despertar quando atravessaram de novo o deserto. Vinte e quatro horas distantes daquele mundo e suas peles voltaram a chamuscar com o calor do lugar, sem precisar de sol para isso.

Quando entraram na Toca pela garagem, as vagas estavam vazias, exceto aquelas com o Challenger destruído de Darko e o Skyline de Cole. Era sinal de que o bando havia saído para uma corrida ou algo assim, uma vez que Cole não gostava de dirigir e preferia coordenar as apostas.

— Pode checar o sistema de mensagens? Talvez eles tenham avisado para onde foram. — Kurt pediu. Nash era o único com um celular funcional entre eles, já que seu último aparelho continuava sendo aquela porcaria fornecida por P.J. para controlá-lo.

Nash deslizou o celular largado no porta copos do carro e virou a tela para que Kurt enxergasse a mensagem selecionada.

— Racha na ponte 6 do rio Los Angeles — Nash leu em voz alta. — Tudo de volta ao normal.

Mas o sarcasmo da resposta enviou um arrepio tenso por Kurt, porque ele ainda tinha pesadelos em pensar naquele rio, o lugar onde Monaco o havia emboscado para sequestrá-lo e entregá-lo diretamente nas garras de P.J.

Kurt sacudiu a cabeça para afastar o pensamento e saiu do carro, disposto a apenas dormir pelo resto da noite. Ao invés de segui-lo, Nash continuou no carro. Kurt só se deu conta quando os faróis acenderam de novo e o motor deu a partida.

Surpreendido, Kurt se virou de volta até o Mustang e se abaixou pela janela aberta do motorista.

— O quê? Você vai até lá? — Kurt questionou. Nash não podia estar querendo correr.

— Na verdade, eu preciso ir a um outro lugar. — Nash respondeu. Kurt ficou esperando por detalhes, mas foi só isso. De novo, aquela porta fechada para sua vida privada. Estavam mesmo de volta ao normal. — Eu volto mais tarde.

Mas a tentativa de apaziguar a situação não resolveu nada. Kurt ainda continuou encarando por longos segundos em silêncio. Até que pensou melhor em toda a memória daquele dia e decidiu que não queria encerrá-lo da forma errada. Não seria ele que estragaria tudo agora com perguntas demais que Nash não estava disposto a responder.

Sem muita escolha, Kurt se abaixou para um beijo de despedida, puxando Nash mais perto pela gola da camisa. Entretanto, no lugar da boca, ele investiu no pescoço. Forte e intencional. Com lábios e dentes. Sugando.

Da mesma forma que agarrou, ele soltou de repente, deixando um Nash desorientado para trás.

Ei! O que foi isso?! — Nash estava meio chocado, meio rindo, apalpando o pescoço, certo de que havia uma marca vermelha ali que ficaria roxa mais tarde.

Como último ato, Kurt pegou a jaqueta de Nash repousada sobre o banco e se afastou do carro, enfiando os braços por dentro das mangas longas, reivindicando o casaco como seu por direito.

— Eu posso até não saber onde você está indo... — Kurt respondeu. — Mas posso deixar um recado de onde você esteve até agora.

A provocação fez Nash rir. Ele puxou Kurt pela jaqueta, o trazendo para um beijo nos lábios dessa vez. Então sussurrou contra a boca dele:

— Você está me metendo em problemas.

Kurt o empurrou pelo rosto, com os nervos no limite, e disse sério:

— Essa é a intenção.

Abraçado aos cotovelos, ele assistiu ao Mustang se afastar de ré. Era como se o carro estivesse atado a alguma parte dentro dele, partindo junto.

— Você volta mais tarde mesmo? — Kurt exclamou por cima do ronco do motor.

Nash colocou a cabeça para fora da janela e gritou de volta.

— Pode esperar por mim. Só não arranje problema até lá, consegue?

Kurt tentou rir, mas não conseguia disfarçar mais do que isso o quanto não queria deixá-lo ir. Então se virou para a escada que levava ao interior da casa e parou de se torturar com aquilo. Se dormisse agora, talvez Nash e todos os outros já tivessem voltado quando acordasse. Talvez nem pareceria que tinha sido deixado sozinho.

Ele dormiu no último andar da casa, no único cômodo ocupado por lá. O quarto de Nash.

Quando acordou, foi com o som de um despertador, um trim trim cadenciado.

Kurt rolou no colchão, resmungando. Até que abriu os olhos ao perceber que o sol não tinha nascido ainda. Por quanto tempo tinha dormido? Vinte minutos? Meia hora?

Sentado, esfregou os olhos e procurou pelo despertador. Mas não estava em lugar nenhum dentro do quarto. Então ele seguiu o som.

Para sua surpresa, o som insistente vinha de cima. Do telhado.

Ele se vestiu para sair e escalar a escada de emergência do lado de fora. Do topo do prédio da Toca, uma injeção de ansiedade picou seu estômago quando percebeu do que de fato se tratava: no chão, cercado por pequenos caquinhos de plástico quebrado — os resquícios de HDs que havia quebrado — estava caído um volume maior e inteiro. Um celular. O seu celular. Ou ao menos aquele que P.J. havia lhe fornecido.

E ele estava tocando.

Essa porcaria nunca tinha tocado, ele não saberia dizer antes o som que isso tinha. Mas apitava com aquele mesmo trim trim que o havia acordado.

Muito devagar, Kurt se aproximou para apanhá-lo. A última chamada tinha morrido, caindo na caixa postal. Mas ele mal teve tempo de suspirar aliviado quando acendeu a tela e viu uma mensagem esperando para ser lida.

Kurt precisava abrir para acabar com aquela tortura.

Receber mensagens naquele celular nunca era boa coisa. Kurt só não imaginava que fosse ser muito pior do que esperava.

"Ei, covardezinho. Não ficamos felizes com o que rolou com a frota de P.J. Você não vai gostar da reação."

O número salvo como "Degraçado nº 2" indicava que era Monaco o remetente. Kurt encarou a tela, calculando uma resposta para dar. Até que, em menos de um minuto, outra mensagem chegou, vendo seu status online:

"Racha agora, na ponte 6 do rio. Adivinhe com quem vou correr?"

Monaco enviou uma foto logo abaixo, fazendo Kurt tapar a boca, os olhos vidrados refletindo a luz da tela. A imagem era muito clara: no meio de uma multidão, o Supra azul de Jerome se destacava, pareado na linha de partida com outros dois menos impressionantes.

A terceira mensagem pulou:

"Quem sabe eu posso poupar o JJ se você aparecer."

Kurt tremia. O celular virou uma pequena coisa instável em sua mão. Antes que ele se deixasse dominar por uma descarga de adrenalina e jogasse o aparelho contra o concreto, uma última mensagem piscou na tela:

"Tic-tac. 10 minutos"



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Mas é claro que ninguém nessa história tem um minuto de paz 🗣

O capítulo que vem vai ser definitivamente uma... emoção (não disse qual). Quais serão as piores coisas que podem acontecer ainda?

Bom... mas o que acharam do momentinho do Kurt com o Nash no capítulo de hoje? 🥺eu particularmente amei reescrever esse capítulo e acrescentar mais significado e subtexto a tudo o que rolou ali entre eles. Na versão antiga do livro, eles não se comunicavam muito nessa altura da história, nem conversavam abertamente sobre os sentimentos, porque eu deixava isso mais para o clímax do livro. Mas percebi o quanto estava perdendo da construção da relação deles ao postergar esses momentos. Então, dessa vez, estou trazendo um pouco mais cedo as conversas entre eles, mesmo que de pouco em pouco ainda.

Enfim, domingo que vem vai rolar nossa atualização semanal normalmente, já que consegui deixar o capítulo 22 já bem arrumado. Minhas férias acabam hoje, e essa semana volto a ficar bem mais ocupada. Mas vou tentar ao máximo manter o ritmo de escrita, então vamos ver como vai ser nas próximas semanas. Vou mantendo vocês atualizados!

Nos vemos semana que vem sem falta, dia 29/09! Até lá ♡

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