20.
Zonzo e desorientado, Kurt seguiu a pé pela margem da estrada depois de quase bater numa árvore. Os postes da longa rodovia o acompanhavam, feito dezenas de lanternas curiosas, vigiando seus passos. Os diferentes focos de luz fragmentaram sua sombra em duas: uma que se adiantava à frente, e a outra atrás, o seguindo. Vez ou outra, Kurt se assustava com a segunda.
No meio da noite, ele encontrou um carro bem disfarçado nas sombras de um posto de abastecimento fechado, mesmo que a lataria fosse de um vermelho chamativo. Um jaguar escondido entre as paredes de um lava jato inativo, esperando. Era o novo carro de Iggy. Sua frente, composta de faróis estreitos e um capô comprido, inspirava uma aparência felina; uma elegância que poderia ser lida tanto como feroz, quanto traiçoeira. Sem dúvida, fazia uma melhor combinação com Iggy do que o antigo Audi. Renascido depois do acidente no túnel.
Kurt reparou no Jaguar escondido somente porque já esperava por ele estar ali. Depois de uma espiada por cima dos ombros, verificando o vazio do acostamento, Kurt entrou para a sombra debaixo de um viaduto e atravessou correndo para o outro lado. Na beira do posto escuro, pulou por cima da grade de alumínio, arranhando as mãos dolorosamente no alto das pontas de metal.
Já deveria fazer algum tempo que Cole e Iggy estavam esperando, pelo menos 40 minutos desde que recebeu a mensagem. Ele cambaleou até o carro, mal sustentando a firmeza dos joelhos, respirando pesado. Pelo para-brisa, os rostos de Cole e Iggy pareceram estranhar, como se contemplassem alguém que não conheciam.
A porta de trás escancarou, e Kurt caiu no banco traseiro, exausto. Quando a porta fez um baque suave para se fechar, os dois da frente já estavam virados para trás. Kurt sabia que eles estavam reparando em como parecia uma amontoado de cacos; era óbvio que estavam. Precisariam ser cegos para não reparar no cabelo caótico, nas olheiras fundas, nas roupas amassadas, nas mãos agitadas com um tremor que ia e voltava.
— Kurt? — Cole estranhou.
— Você parece horrível — Iggy provocou.
Mas quando Kurt tentou dar alguma resposta, sua visão ficou embaçada, fora de foco. De repente, ele não enxergava um palmo à frente do rosto. Sua respiração acelerou sozinha, e ele abriu a boca como se nenhum ar fosse o suficiente. A pressão dentro de sua cabeça cresceu, então Kurt se abaixou, encolhido entre os joelhos, as mãos agarradas em torno da nuca, mas escorregando pelo suor frio.
— Eu só queria deixar todo mundo seguro. Eu não queria machucar ninguém. — As palavras começaram a escalar sua garganta para fora, engasgadas. Uma confissão dolorosa buscando alívio em meio ao castigo. — Me perdoem. Por favor... me perdoem. Não posso mais fazer parte disso. Não posso...
— Do quê?! Kurt?! — Cole e Iggy soaram ao mesmo tempo, com muito mais apelo. Mas era como ouví-los debaixo d'água.
— Primeiro meu pai. Mas agora foi o Ace. Foi minha culpa. Eu trago isso para todo mundo.
— O que aconteceu?!
— Eles estão mortos. — Dizer foi como vomitar de novo. — Não quero matar mais ninguém. Eu não deveria estar aqui, agora, porque não quero machucar vocês. Mas eu não posso voltar. Não me façam voltar. Por favor, por favor...
Ele só parou de choramingar porque se engasgou.
— Kurt! — As vozes pareceram chamar várias vezes, mas ele estava se distanciando. Sua própria mente fugindo.
Ele não viu quando Iggy e Cole trocaram olhares aflitos, indecisos sobre o que fazer com aquela bomba em seus colos.
— Vá. — Foi Iggy quem decidiu primeiro, apontando a porta para onde Cole deveria sair. — Estamos sem tempo nenhum. Comece o trabalho. Eu cuido disso.
Cole deu mais uma rápida olhada na direção de Kurt antes de aceitar que seria a decisão mais certa a se fazer.
— Vou ser rápido — Cole prometeu em voz alta. Não só para Iggy, mas para Kurt também.
De baixo do banco, ele puxou o que tinha levado: uma placa de disco rígido, dois conjuntos de cabos enrolados em círculo, alicates, uma fita adesiva prata e um mini tablet. Depois puxou a maçaneta do passageiro, empurrando a porta para abrir e descer com os materiais debaixo do braço. O calor abafado do lado de fora competiu com o ar condicionado, mas ninguém perdeu tempo em fechar a porta.
Assim que Cole correu do lado de fora e sumiu nas sombras do posto, Iggy se apressou em puxar a alavanca do banco do carona para dobrá-lo e ter o espaço onde pular para o banco de trás. Houve um atropelo de tornozelos e pernas batendo contra o câmbio, até que Iggy caiu no apertado espaço traseiro do Jaguar e parou sentado de joelhos dobrados ao lado de Kurt.
Iggy não só levantou a cabeça de Kurt entre as mãos e a segurou com estabilidade; ele agarrou com os dedos entre seu cabelo. Forte e apertado. Pareceu que ele conhecia a exata quantidade de pressão que Kurt precisava para voltar à consciência de si mesmo e se manter ancorado.
— Olha pra mim. Kurt! Aqui — Iggy foi incisivo. E Kurt tentou. Realmente tentou. — Que história é essa? Aquele garoto da moto, ele morreu?
Kurt piscou repetidamente, manejando um aceno difícil entre as mãos de Iggy.
— Eu estava lá. Não faz nem duas horas. Ace... ele iria fugir. Mas ele não pode, porque ele morreu no meu lugar. Deveria ter sido eu — Kurt sussurrou sem forças, lutando para articular as palavras contra seu queixo trêmulo.
— Aqueles nojentos — Iggy murmurou indignado. — Não passam de uma corja doentia.
Kurt concordou com a cabeça, sentindo a onda se formar em seu peito, uma turbulência emaranhada de mágoa, medo, tensão, horror e ódio. Nada que não estivesse acostumado, mas numa intensidade diferente dessa vez.
— Eu sei... — Ele respondeu, abatido. Sem escape naquela posição, numa espécie de visão túnel entre as mãos que o seguravam, o rosto bonito de Iggy era tudo o que podia ver. E tudo o que podia focar eram nos sinais desbotados do acidente que havia acontecido semanas atrás: uma cicatriz na linha do cabelo, um resto de hematoma no canto do olho, os arranhões na bochecha ainda com um pouco de casca. Uma angústia dentro de Kurt apertou como se fosse partí-lo, e ele choramingou ao perceber a seriedade do fato: — Você poderia ter morrido também.
Iggy o puxou mais para perto, os olhos fixos e persuasivos.
— Eu não morri. E nem você. Olha pra mim — Iggy repetiu com uma espécie de raiva que chamuscava também em seu olhar, aquele velho calor perigoso de volta ao seu olhar azul. — Você literalmente me salvou. Isso foi uma escolha sua. O que aconteceu com Ace, não está nas suas mãos. Ouviu? Não é seu.
De todas as pessoas, Iggy era sempre o mais direto com a verdade, indiferente ao quão cruel ou doloroso pudesse soar. Mas, justo quando não estava tentando ferir, por que era tão difícil aceitar aquilo como verdade? Kurt continuava se torturando com a memória: o carro sabotado que ele deu a Ace; o plano de fuga que ele incentivou; o medo precipitado que Ace teve e ele mesmo ignorou. Sua culpa. Toda sua. De mais ninguém.
— Já chega. Escute aqui: — Iggy voltou a falar. — Sabe esse serviço de merda que está fazendo para esse covarde do P.J.? Acabou. Não vamos mais cobrir suas costas. Não vamos mais concordar com isso.
O coração de Kurt pulsou na garganta, enquanto o resto do corpo pareceu perder o resto de força.
— Iggy, não... Por favor, não conte para o Mac. Por favor. — Seus ombros caíram com o peso. Era somente aquilo que faltava para tudo se tornar uma desgraça completa.
— Isso não é sobre o Mac mais — Iggy retrucou, seu corpo rígido, as costas duramente retas. — Olhe pra você... Está se enterrando vivo. Isso não é uma brincadeirinha, Kurt. Eles estão jogando pra valer. E nós vamos também. Você é nosso. E não vão mais atacar nenhum de nós. Não vamos deixar até que seja tarde demais.
Kurt ficou paralisado e piscou, um pouco zonzo e confuso. Ele entendia como a situação deveria ter um nível pessoal para Iggy. O próprio garoto tinha passado por uma experiência de quase morte, tinha experimentado por si mesmo como a covardia e a perversidade dos homens de P.J. poderia beirar a intenção de assassinato. Mas por que ele sentia que estava assistindo a Iggy através da rachadura de um casco?
Em algum momento que não havia percebido, o tom de Iggy tinha passado de mordaz e irônico para honesto, quase como se se importasse. Como se estivesse genuinamente preocupado. Kurt não esperava por isso.
— Você... — Kurt engoliu. Então tentou de novo: — Você não prefere me ver morto?
Era o que acreditava que merecia e o que Iggy deveria julgar dele. Mas toda aquela raiva nos olhos de Iggy... não era para ele. Perceber isso fez um véu sobre a cabeça de Kurt ser levantado, e a luz descoberta do lado de fora da venda o inundou de redenção e alívio.
— Eu prefiro destruir aquele desgraçado do P.J. e dar exatamente o que ele merece — Iggy murmurou, sua voz ganhando cada vez mais intenção. — É para isso que viemos até aqui, lembra? É aqui que a gente se vinga. E você volta com a gente. Você já fugiu uma vez, do lugar que não te merecia, quando te encontramos pela primeira vez. Essa não vai ser diferente. Só que, dessa vez, você não precisa mais aguentar a tudo sozinho, Kurt. Você já pertence a um lugar. Um lugar onde temos um pacto de passar por todo tipo de coisa juntos. Todos nós. Com riscos ou não. Ameaçados ou não. Só sobrevivemos por confiar uns nos outros. É só nos dar essa confiança também.
Foi a coisa mais estranhamente confortável que já tinha ouvido soar na voz de Iggy. Hostilidade e competição eram o seu forte, não sensibilidade e empatia. Mas pelo menos ter tentado já significava muito. Kurt se lembrou de quando esteve em seu carro com Iggy, depois de tirá-lo do hospital, de oferecer apoio. Ele nunca cobrou nada de volta, mas, ainda assim, ali estavam eles, em papéis invertidos.
Sua mente ainda girava quando Iggy aliviou o aperto e largou sua cabeça. Por ação do peso repentino de estar solto, o rosto de Kurt tombou, até encontrar suporte contra a clavícula magra de Iggy. O mais sensato teria sido se levantar e se recompor, respeitar o espaço de Iggy do outro lado da fronteira entre eles. Mas... era como se não houvesse mais uma fronteira tão resistente. Kurt escolheu ficar ali, recuperando a respiração cansada, sua testa pressionada contra a curva do ombro dele. E, por um momento, Iggy permitiu que ficasse.
Kurt nunca esteve tão próximo de Iggy para descobrir que ele cheirava a baunilha. Feito chá e biscoitos. Um cheiro tão aconchegante para alguém sempre fechado, que nunca oferecia convites para entrar. Kurt sentiu uma súbita vontade de abraçá-lo, mas duvidava se poderia. Era Iggy, afinal. Um garoto com cheiro doce. Mas, ainda assim, Iggy.
Como se adivinhasse, ou até mesmo estivesse considerando a questão na própria mente, Iggy se moveu para segurá-lo atrás do pescoço. Não era um abraço exatamente, mas uma única mão, firme e apertada, cravando um gesto em sua pele. Era como Mac fazia com todos eles quando queria dizer meu. E Iggy repetia aquela linguagem que eles conheciam entre si, reafirmando tudo o que havia dito: Você é nosso.
— Eu mantive algo guardado pra você — Iggy disse, de repente. — Está no compartimento atrás do banco do motorista. Pode pegar.
Por um instante, pareceu algo dito para outra pessoa. Mas Kurt se surpreendeu ao levantar o rosto e se dar conta de que ainda estavam sozinhos e aquilo era mesmo para ele.
Iggy fez um gesto impaciente para o banco logo à frente, e Kurt seguiu o comando, sem querer testar mais da sua disposição.
Algo guardado para ele? Dentro do carro novo de Iggy? Ele foi incapaz de antecipar do que se tratava. Mas quando enfiou a mão pela dobra atrás do banco e tocou um objeto lá dentro, frio e metálico, ficou tudo muito claro, de uma forma brusca: ele estava tocando uma arma. Com uma olhada, percebeu que não era qualquer arma, mas aquela que Mackenzie havia lhe dado, a pistola que recebeu para usar quando não se sentia capaz de atirar com a velha arma de seu pai.
Kurt havia notado como aquilo tinha simplesmente sumido há algum tempo, mas ele tinha se convencido que a arma estava dentro do Camaro quando foi sequestrado, e que ela havia sido confiscada pela corja de P.J. com o resto de suas coisas. Tê-la de novo era a última coisa que ele poderia ter imaginado.
— O quê... — Ele perdeu as palavras, confuso.
Iggy olhou para o chão do carro, mordendo o lado de dentro da bochecha. Depois ergueu de novo o queixo e cruzou os braços, se fazendo de durão.
— Sim, eu peguei escondido. Mas foi para proteger a casa e todo mundo. Eu não sabia que tipo de pessoa você era — explicou contrariado.
Sem piscar, Kurt encarou a arma estendida na palma de sua mão. Prateada, com a imagem da santa em lágrimas estampada no cabo. Ele olhou para aquilo e para si mesmo, reconhecendo que havia fundamento na motivação de Iggy.
Lentamente, levantou o olhar de novo para Iggy.
— Isso quer dizer que confia em mim agora? — Kurt questionou, sem nenhuma piada, sem nenhuma graça. Ele tinha mesmo interesse em saber.
Iggy franziu as sobrancelhas e desviou o olhar para o lado.
— Não diga assim, em voz alta. Soa estranho — censurou.
O ângulo da boca de Kurt puxou para cima, querendo sorrir. Mas ele se esforçou para não deixar aquilo sair. Algo do tipo podia ser interpretado como provocação por Iggy.
Eles ficaram em silêncio por alguns segundos, até que Kurt disse:
— Obrigado, Iggy. — Ele esperava que entendesse que não era pela arma que ele estava agradecendo.
Nunca poderia imaginar que ter salvado aquele garoto do acidente no túnel resultaria em mudanças tão significativas.
Iggy não olhou para ele ao responder. No lugar disso, se ajeitou rápido do outro lado do banco e olhou de braços cruzados pela janela escurecida pela noite.
— Tanto faz — Iggy rebateu. Mas não havia inimizade em sua voz, apenas a vaidade de um menino que nasceu orgulhoso. — Agora fica quieto.
No mesmo momento em que Kurt se perguntou o que tinha feito de errado para a mudança brusca de comportamento, Cole apareceu na porta do carona que tinha sido deixada aberta. Ele se abaixou sob a curva do teto e olhou para dentro. O castanho claro de seus olhos investigou entre os dois, desconfiado ou só curioso.
— Todos bem? — Cole investigou.
Iggy permaneceu calado e deu uma olhada para Kurt, que demorou a perceber que era uma deixa para responder por si mesmo.
— É. Bem melhor. — Kurt acenou mais enérgico, guardando a arma na parte de trás do cós da calça.
Cole aceitou a resposta, mas olhou de volta para Iggy em silêncio, compartilhando alguma coisa particular entre olhares.
— Eu conheço essa cara — Cole sussurrou por fim, como se Kurt não pudesse ouvir, bem ali.
Qualquer que fosse o significado da insinuação, sem dúvida serviu para atingir um nervo de Iggy.
— É a cara que diz para você calar a boca — Iggy murmurou irritado. Então pisoteou pelas costas do banco abaixado do carona, sem cuidado pelo próprio carro, e empurrou Cole para fora do caminho, saindo do Jaguar.
Como se algo clicasse e mudasse suas lentes, Kurt ficou observando quieto. Observou enquanto Cole ria da reação de Iggy e o provocava mais por isso. Observou enquanto Iggy empurrava Cole contra a porta aberta e discutia ainda mais com ele. Ele não prestou atenção às palavras porque sua atenção desviou para o fato que Cole deu um beijo no ombro de Iggy, como um gesto de desculpa, depois outro no pescoço dele, como um gesto de outra coisa. Ele se viu prestando atenção no modo que a boca de Iggy continuava se mexendo, arguindo, mas seu corpo não, sem a mínima tentativa de escapar dos beijos, mantendo a proximidade.
Era uma coisa boa que os dois tivessem voltado a se dar bem, como Jerome tinha dito que havia sido um dia. Ele só não esperava se sentir daquele jeito. Uma ligação puxando entre os dois para ele. Se sentindo parte da reconciliação. Afinal, eles ainda o queriam. Mesmo depois de tudo, mesmo representando o risco que representava.
Uma onda de afeto cresceu dentro dele. Kurt sentiu tanto a falta deles. Ele desejou meios para dizer isso em voz alta, mas não conseguia encontrar as palavras adequadas. Porque não era um simples "senti saudade". Era... mais.
P.J. estava tão certo que seria fácil colocá-los contra Kurt ao provocar toda aquela bagunça. Mas se P.J. achava que tinha conhecimento suficiente sobre o bando de Mac, ele havia se enganado. E essa poderia ser a grande vantagem naquele jogo.
— Anda logo, gênio. Já acabou seu serviço? Ou ainda vai nos fazer esperar mais? — Iggy continuou alfinetando na provocação entre eles.
Das coisas que havia levado, Cole trouxe de volta apenas os alicates e o tablet.
— Alguma vez eu já te decepcionei? — Cole respondeu com um meio sorriso e sacudiu a tela do aparelho eletrônico à altura dos olhos, para depois pressionar algumas teclas. — Deixa eu só... Tsc, a internet desse lugar é uma droga. Até na Toca é melhor
— Você está jogando uma hora dessas?! — Iggy empurrou outra vez o ombro de Cole.
Cole deixou uma risada escapar e murmurou um "espere" por cima dos protestos. De onde estava, Kurt era capaz de enxergar que não era um jogo, embora que, se tratando de Cole, poderia muito bem ser. Mas a pequena tela exibia uma porção de códigos, números, letras e caracteres especiais. Kurt não entendia nem uma vírgula, apenas achava que pareciam pequenas figurinhas verdes dançando contra o fundo preto.
Quando os códigos pararam de se mover e os dedos agitados terminaram de pressionar os comandos, Cole levantou o rosto, brilhando em expectativa.
— Peguem os aperitivos. O show vai começar — Cole anunciou. — Pronto?
A última palavra veio acompanhada dos olhares de ambos na direção de Kurt, que sentiu uma injeção de ânimo ao se ver incluído no que estava acontecendo.
Assim que desceu do carro e os seguiu, Kurt aprendeu do que realmente se tratava por "aperitivos". O porta malas deslizou aberto, revelando o que haviam trazido: explosivos e gasolina. Galões lotados. Pilhas de rolos e pacotes de papel pardo recheados, reforçados com fita adesiva. Sem marca de fabricante à vista, mas não era como se precisasse para saber de onde saiu. Produção caseira e pólvora fresca, Kurt sabia reconhecer. Receita da casa.
As malas cheias daquilo foram mais leves de carregar do que todo o peso moral que se somava em seus ombros.
Com duas sacolas em cada par de mãos, o trio deixou o lava a jato e deu a volta pelo quarteirão no escuro. Pela tranquilidade, quem quer que os visse, pensaria que era apenas uma bela noite para uma caminhada.
Quando pararam no cruzamento de duas grandes avenidas, Cole apontou para algo que Kurt e Iggy seguiram com os olhos pelo longo tapete de asfalto. Mesmo centenas de metros depois, era muito visível o prédio alto e refinado, se destacando entre as outras construções mais ordinárias. Um prédio de esquina, feito para tomar o espaço do quarteirão inteiro. Sua frente era uma ponta arredondada, se moldando ao formato da esquina. Era mais largo atrás, as duas longas paredes seguindo ruas diferentes, se abrindo em direções opostas. Passava a impressão de uma pirâmide.
— Estamos mesmo no lugar certo? — Iggy perguntou, deslumbrado. E ele não era alguém que se impressionava fácil por qualquer coisa.
Ele pareceu discretamente comovido com a visão do estacionamento de 10 andares do outro lado do cruzamento. O lugar mais parecia com um prédio executivo, feito de vidraças panorâmicas e luzes externas jogando pequenos holofotes de baixo para cima; não com uma garagem. Isso porque garagens não eram feitas para abrigar frotas tão numerosas que ocupassem um prédio inteiro. Mas essa era uma regra que não valia para P.J. As noites no cassino ensinaram isso, depois de ver tantos homens juntos trabalhando para a mesma pessoa.
— Pode apostar que sim — Cole afirmou, sem tirar os olhos do alvo.
Era estranho pensar que a garagem mais importante de P.J. fosse exposta daquela forma, num prédio nada discreto quase no centro da cidade. Quando Cole decodificou as coordenadas geográficas do GPS, eles esperavam acabar num subúrbio distante, num lugar isolado, talvez subterrâneo. Mas o histórico de destinos mais visitados do GPS no carro de Carter tinha os levado à beira de uma avenida movimentada, cercada de outras construções comerciais.
— Maldito exibicionista — Iggy amaldiçoou com desprezo. — Esse é o quanto ele pensa que é poderoso, a ponto de nem precisar se esconder. E esse megalomaníaco precisa mesmo de todos esses carros?
— Faz sentido que tenha uma frota incontável — Kurt respondeu com a voz apática, vazia, de quem já tinha se acostumado com as surpresas de P.J. — Os homens de P.J. usam um carro atrás do outro, como se fossem descartáveis. Eles próprios são descartáveis.
Ele lembrou com amargor da morte de Ace e da importância nula que o fato recebeu no momento da loteria.
— Bem... Isso só vai deixar as coisas mais interessantes para a gente. — Iggy retomou a segurança de antes. Ele tinha os olhos brilhantes, mais parecendo iluminar a rua do que o contrário. — Vamos quebrar P.J., duvido que se recupere em pouco tempo depois de perder tudo isso.
Kurt contemplou a vista pelo o que pareceu a última vez, se permitindo imaginar como seria se aquela presença sólida e monumental desaparecesse. Então estalou o pescoço, antes tenso, mas agora apenas um pouco ansioso.
— Como vai ser o plano? — Ele imaginou se seria o caso de se dividirem a cada 3 andares e destruímos carro por carro. — Porque eu não me importo de atirar em cada pneu e em cada tanque desse filho da puta.
Na espera por aquele momento, Cole puxou o tablet e acendeu a tela para revelar um painel de controle virtual.
— Esqueceu de como as coisas são feitas de onde viemos? — Cole comentou com um sorriso para as malas cheias, o lembrando do que traziam. — Vamos queimar algumas coisas. Mas, primeiro...
Cole apertou um botão de comando na tela.
No mesmo instante, a garagem de 10 andares apagou de uma vez, em um blecaute. As luzes não existiam mais, e eles assistiam a uma torre obscura, se erguendo para o alto como a sombra de um gigante no meio da noite.
Logo depois, veio o cheiro de gás, uma nuvem invisível vazando para a rua. Se a luz cortada não tinha sido o suficiente para persuadir uma evasão, o risco do gás certamente foi.
Não demorou para que as pessoas começassem a evacuar o prédio. Era pouco mais do que cinco, entre porteiros e seguranças. Lendo a postura confusa deles, Kurt podia imaginar como se perguntavam o que tinha acontecido e porque as luzes de emergência não funcionaram, sem notarem que, em um ponto perdido, a fiação tinha sido trocada por condutores novos, e que o sistema de controle tinha sido invadido com um disco rígido diferente.
Seria uma pena se eles descobrissem tarde demais que o alarme de incêndio também estava misteriosamente inativo.
Enquanto os funcionários se isolavam do outro lado do quarteirão, se organizando sobre o que fazer, o trio desapareceu por trás de máscaras lacrimogêneas, se esgueirando pelas sombras do térreo. Quando se infiltraram pelos fundos do edifício, as câmeras não eram uma preocupação a se evitar. E, assim, tinham o prédio inteiro para eles.
Rápido, os explosivos foram posicionados estrategicamente a cada andar; não para demolir, mas para incendiar quando acionados. A gasolina espalhada no último andar do telhado foi para garantir que queimaria até o topo.
Lá de cima, Kurt imaginou se deveria queimar junto com tudo aquilo. Mas Cole e Iggy o arrastaram pelo caminho de volta, e ele os seguiu, como se salvo por eles das armadilhas de sua própria mente.
Ao invés de sair para a rua, Cole mostrou uma passagem que comunicava com o prédio vizinho, uma segunda torre vazia, com anúncio de aluguel disponível. Um antigo escritório desocupado. Os três subiram pelas escadas de incêndio depois de arrombar a entrada. Do quinto andar, sem cortinas e persianas, tinham uma vista direta da garagem de P.J.
Cole começou a regressiva para acionar os explosivos, o que Iggy interrompeu com um:
— Espera. — Do bolso, tirou o celular e o apontou para a janela, com a câmera gravando em vídeo. — Agora.
E, satisfeito em obedecer, Cole apertou o último botão.
Uma fagulha era o suficiente para começar um incêndio.
De repente, a noite se acendeu em vermelho e laranja. Uma onda de calor chamuscou a pele de todos eles. E o impacto daquilo vibrou pelo vidro da janela, reverberando até sacudir seus ossos.
A Torre de P.J. se tornou um tocha em poucos segundos, inflamando aquele bairro rico e quieto com um fogo vivo e caótico. As paredes e as pilastras ficaram quentes, as chamas correram com uma fome mortal pela trilha de gasolina que deixaram pelo caminho. Quando os primeiros carros começaram a explodir nos andares mais altos, os poucos presentes na rua já estavam correndo para longe. Mas os três no prédio da frente ficaram, contando cada explosão como um ponto marcado, assistindo com seus rostos acesos pela luz.
— As corridas de P.J. estão suspensas por tempo indeterminado, vadias — Iggy declarou por trás da câmera, ainda filmando.
Kurt reconheceu o canal para onde ele enviou o vídeo logo depois. Era o canal de comunicação feito para contato entre o bando e os outros grupos das corridas. P.J. podia ter tentado destruir aquilo, mas eles tinham se recuperado e restaurado. Todos receberiam o vídeo por mensagem agora.
Na manhã seguinte, aquilo estaria nos jornais para a cidade inteira. Mas a notícia seria primeira mão para o submundo ilegal que habitavam.
— Vamos — Cole alertou quando atingiram o limite do tempo seguro, antes que chegassem reforços para combater o incêndio.
Acima deles, as chamas estalavam, consumindo tudo em poucos segundos, quase um aviso para que se afastassem de uma vez por todas. O momento pedia urgência, por isso Iggy foi rápido em parar os outros dois e mostrar o que restava na última mala esvaziada: uma lata de tinta spray.
Kurt foi o primeiro para quem ele olhou, com um sorriso maldoso. Iggy então estendeu a lata.
— Quer fazer as honras?
Da última vez em que Kurt teve uma daquelas ao seu alcance, não havia sido uma experiência boa. Mas, ao contrário daquela vez, ele pegou a lata porque quis e sentiu certo prazer em pensar no que faria.
Na vidraça panorâmica com vista para o incêndio, onde seria bem visível, ele fez um desenho enorme do teto ao chão, precisando escalar para alcançar tudo. No fim, iluminado por cima pela luz laranja do fogo, ele admirou o "M" maiúsculo que resultou daquilo. Cole e Iggy apontaram os celulares para o conjunto da obra, registrando várias fotos.
O último andar da torre explodiu, provocando uma chuva de destroços em chamas, os fazendo encolher, assustados. Eles então abandonaram o escritório vazio e começaram a correr para longe, deixando que o som dos risos e dos sapatos rangendo se misturasse com os estalos das chamas ferozes. O pleno som da revanche. Pela invasão da garagem da Toca. Pelo acidente no túnel. Por forçar alguém a se tornar um traidor. Cada um deles se sentiu de alma lavada.
Kurt se viu de novo tenso quando entrou no carro de Iggy para partir. Estava voltando junto com eles para o deserto, o que representaria alívio em outras ocasiões, mas uma incerteza depois ter declarado que não iria retornar àquele lugar.
— Eu disse coisas bem feias da última vez que saí da Toca. Não acho que o Mac vai me deixar entrar — Kurt confessou baixo, apertando entre os dedos a sacola escura que Ace havia lhe dado e a única coisa que ele levou consigo até ali depois de abandonar o Camaro onde o tinha estacionado, uma vez que aparecer na Toca com seu carro transformado num dos modelos de P.J. era a última coisa que precisava.
— Kurt... — Cole olhou por cima do banco do carona. — O Mac nunca falou nada sobre você ter saído. Para ninguém. Tem noção do que é isso? Eu só acabei descobrindo porque Iggy me contou e precisava de ajuda nisso. Mas Jerome e Darko nem ao menos fazem ideia. O que quero dizer é... Se Mac realmente quisesse te banir, já tinha anunciado para todo o lado que você não é bem-vindo. Mas seja lá o que o Mac esteve pensando... ele não tentou sujar seu nome nenhuma vez.
Pelo longo momento que Kurt ficou quieto e sem piscar, processando a ideia em sua cabeça, somente o som suave do motor trabalhando na pista livre foi ouvido dentro do carro. Até que, ao volante, sem desviar o olhar do para-brisa, Iggy disse:
— Ele já espera que você volte alguma hora. É isso o que ele está pensando. — Iggy tinha aquela mesma firmeza arrogante na voz de quando havia revelado a quanto tempo estava com Mackenzie. Seis anos, não seis dias. Mais tempo do que qualquer um.
Confuso, Kurt tentou ler o rosto de Iggy pelo retrovisor central, mas o loiro estava evitando seu olhar.
— Então ele... não sabe onde eu estive? Sobre P.J.?
Era loucura pensar nisso, uma vez que tantos homens de P.J. sabiam que ele estava lá, e rumores se espalhavam rápido, sem precisar ser inteiramente verdadeiros. Mas Monaco havia mesmo insinuado que poderia revelar tudo para Mac, mas que não faria se fosse algo que P.J. não queria.
Então significava que P.J. não queria que Mac soubesse ainda? Mais provável que só quisesse mostrar o quanto controlava a situação, brincando com Kurt e seus nervos.
— Aparentemente não. Então não vamos desperdiçar isso — Iggy respondeu, virando o carro sem a seta para saírem da pista. O Jaguar caiu no chão de terra do deserto, se sacudindo pelo solo irregular. — Pensamos numa forma de fazer ele escutar a história toda depois. Mas, primeiro, faça o que ele quer e volte.
— Não acho que ele me queira tanto assim — Kurt disse.
Cole riu.
— Iggy tem razão. Porque, se tem algo que o Mac sempre quer é estar certo. É só reconhecer que você foi o errado. Dê isso pra ele, e vai funcionar.
A velha fábrica estava bem desperta quando chegaram. Tinha sido um caminho longo, o suficiente para esfriarem a chama de êxtase dentro deles. Por isso, eles caminharam tranquilos até a porta e, depois dela, pelo longo corredor até chegar às salas integradas.
Todos os outros estavam ali, acordados, mesmo que fosse quase madrugada. E todos eles encaravam seus respectivos celulares, sem palavras.
Jerome foi o primeiro a erguer o rosto, notando a entrada dos três. Seu rosto estava pálido, e ele começou a puxar o piercing do lábio, seu tique nervoso habitual. Por estar ao lado dele, Darko também os viu. Ele soltou o celular no sofá e tapou a boca com a mão aberta, apertando o osso da mandíbula.
Kurt sentiu uma batida dentro do peito saltar quando olhou para o outro canto e viu Nash, sentado no raque de madeira baixo, debaixo da televisão. Não estava olhando, mas pareceu sentir o peso do olhar sobre ele, porque, quando levantou a cabeça, suas íris verdes se ligaram automaticamente a Kurt, sem passar por nenhum dos outros dois antes.
O momento se quebrou apenas pelo movimento da figura mais longe, perto da janela. Mackenzie se virou para eles e jogou o celular na mesa cromada, deixando o aparelho deslizar sozinho pela superfície. Enfiou as mãos nos bolsos da frente da calça e começou a dar passos para o limite de encontro entre as duas salas.
Não era à toa que Kurt estava muito nervoso ainda. A última vez que havia visto Mackenzie, ele o derrotou numa corrida, no carro de Monaco para piorar. Precisou de um esforço consciente para que ele ficasse onde estava, sem se deixar consumir pela culpa.
— Vocês estão todos testando os meus limites. Então era por isso que estavam agindo pelas minhas costas? — Mac resmungou. Mas ele estava olhando entre Iggy e Cole, esperando uma satisfação deles. O plano do incêndio sem seu conhecimento parecia mais importante, antes de qualquer coisa.
— De certa forma — Iggy foi quem respondeu, e, pela primeira vez depois do acidente no túnel, ele não parecia um pequeno animal acuado em frente ao predador. — Eu disse que o placar não ficaria maior para eles. E é assim que ficamos com a última palavra. Não está bom pra você?
Eles todos viram quando o canto do lábio de Mackenzie formou uma curva. Fazia tanto tempo que era como um fenômeno. Vê-lo sorrir em sã consciência era como assistir ao próprio incêndio queimando aqueles carros, três vezes mais luminoso e quente.
— Eu estava sentindo falta disso — Mackenzie disse, encurtando a distância entre ele e Iggy. Era como se aprovasse mais do que o ato de vingança em si, mas a atitude de Iggy em parar de agir encolhido e voltar a mostrar os dentes. Isso era o que sentia falta.
Com a aproximação tão rápida, Iggy engoliu em seco, ao mesmo tempo que mordeu o lábio. Isso não impediu o sorriso se espalhar por seu rosto, o iluminando.
Mackenzie o tomou pela cintura e o beijou, com uma profunda intenção. E Iggy o beijou de volta, enrolando seus braços magros e brancos ao redor do pescoço tatuado.
Devagar, uma comoção ao fundo começou a despertar. Jerome deixou alguns risos nervosos escaparem, até se transformarem em risadas de verdade, de satisfação e ânimo. Ele bateu palma e abraçou Darko, o qual também tinha começado a rir.
Cole de repente estava envolvido no ato quando o outro braço de Mackenzie o puxou para outro beijo, compartilhado com Iggy também. A cena tinha algo especial. Não pelo beijo; isso era algo que eles faziam o tempo todo. Mas por aquela paixão palpável e visível, o verdadeiro motivo que os atava, todos juntos.
Pela segunda vez naquela mesma noite, Kurt se viu encarando o afeto deles do lado de fora, com aquele sentimento que não deveria sentir. Aquilo que não era exatamente saudade, mas uma ligação puxando dentro de si para eles. Algo que era... mais.
Mackenzie tinha um olfato apurado para fraquezas e farejou seus pensamentos. Ele o encarou no meio do beijo com os olhos mais escuros que Kurt já havia encontrado, antes de interromper, segurando Iggy e Cole de cada lado.
Parado à frente do trio, Kurt engoliu, ansioso.
— E você... — Mac soou rouco. — Você teve a ousadia de aparecer aqui de novo.
Kurt lutou para não desviar o olhar e mostrar intenção.
— Foi você que me ensinou coragem, não lembra?
Mac soltou um riso seco pelo nariz.
— O que aconteceu com o papo de "talvez eu não seja feito pra isso"? — Mackenzie cobrou. Então olhou uma vez para longe, na direção do hack, onde Kurt sabia que Nash estava sentado.
— Estava errado. Eu errei — Kurt se lembrou de seguir o conselho de Cole. — Eu quero voltar. Quero estar aqui... Eu nunca devia ter saído.
Mackenzie acenou devagar e calculado, tomando tempo de absorver cada palavra com deleite.
— Isso é o que acontece quando você dá ouvidos ao que não deve — Mac disse olhando para ele, mas como se destinasse as palavras para outra pessoa. Devagar, Kurt se deu conta que Mackenzie não tinha tentado esquecer o que ele lhe disse sobre Nash ter tentado convencê-lo que não devia estar ali. Talvez não desconfiasse de toda a situação com P.J. justo porque suas suspeitas estavam viradas para outro lado. — Por que não tornamos essa uma decisão democrática, hum? Você pode ficar se todos concordarem que você deve ficar. Mas sei que todos querem o Young aqui, não querem?
A pausa na fala veio seguida de uma porção de "sim" e "é claro", acompanhados de acenos de cabeça. Exceto por um em particular.
Mackenzie encarou de novo na direção de Nash.
— Não querem? — Repetiu, enfaticamente.
Nash empurrou o móvel para se levantar e deu as costas.
— Dá um tempo, Mac. Você já tem tudo o que você queria — Nash resmungou no caminho pelo corredor até as escadas.
— É, eu sempre tenho a porra que eu quero! — A voz de Mackenzie aumentou a cada palavra, tentando alcançar mais longe.
Imóvel, enquanto assistia Nash se afastar, Kurt se deu conta que provavelmente os dois estiveram discutindo em sua ausência. E por algo que ele mesmo provocou.
Mas os outros não pareceram tão afetados quanto ele. Logo voltaram a comemorar entre sorrisos o grande ato da noite. Eles se sentaram juntos a Jerome e Darko, se jogando no sofá para assistir de novo e de novo ao vídeo do incêndio. A conversa animada logo preencheu toda a sala. Cole começou a contar todos os detalhes a eles, exceto pelo o que de fato os levou a conseguir o endereço da tão desejada garagem de P.J.. Para isso, ele inventou uma pequena mentira. Kurt suspirou. Se lembraria de agradecer mais tarde.
Sozinho na cozinha, Kurt aproveitou para beber água da torneira, se desfazendo do gosto amargo que persistia. Quando todos pareceram ocupados, ele saiu discretamente pelo canto e entrou nas sombras do próximo corredor. Em silêncio, a mente distante, ele subiu os degraus de concreto da escada, sentindo a firmeza sob os pés. Uma mão correu pelo corrimão frio de aço; a outra segurou firme a sacola plástica escura que trouxe da loteria de P.J.; a última lembrança de Ace.
Kurt foi parar no telhado, depois de pular a janela do segundo andar e subir pela escada externa de incêndio. O céu estava muito escuro, mas Kurt não se importou pela falta de estrelas. Era uma noite morna, sem vento, e ele se sentou sozinho sobre o abrigo da caixa d'água com os pés firmes no chão.
Prestes a abrir a sacola preta, ele deu um longo suspiro. Havia ganhado aquilo antes de tudo acontecer, quando Ace ainda estava vivo. Era muito forte sequer tocar naquilo, quanto mais descobrir o que o garoto gostaria de ter dado a ele. Duas vezes, Kurt abaixou as mãos, com a imagem viva de Ace se intrometendo em sua memória. Precisou fechar os olhos e prender o ar alguns segundos para manter a calma.
Lentamente, respirando fundo, ele desfez o nó do plástico, que tinha sido amarrado forte. Lá dentro, havia ainda mais plástico. Kurt afundou as sobrancelhas, estranhando, e enfiou a mão para trazer aquilo para fora. A fraca luz da Lua iluminou uma porção de placas de plástico escuro. Eram dezenas de unidades de HD externo, com uma provável porção de arquivos digitais armazenada dentro. E, em cada um, havia o seu nome escrito nele, seguido de um número.
Kurt 1, Kurt 2, Kurt 3, Kurt, 4, Kurt 5... Kurt 28.
A mente de Kurt correu, trabalhando para conectar os fatos. Até que lhe veio a lembrança sombria e indesejada de quando os homens de P.J. o sequestraram pela primeira vez. Carter havia exigido algum tipo de fita, mas não era segredo que seu inglês era terrível. Na ocasião, ele queria mesmo eram HDs; gravações. Kurt arfou, assombrado, olhando para as mãos cheias. Aquelas eram as filmagens que P.J. tinha contra ele, a arma que tinha usado como ameaça. Ace era quem havia gravado tudo. E ele tinha roubado de P.J. para dar a Kurt.
Subitamente apressado, Kurt se levantou e virou a sacola no concreto onde se sentava, despejando os inúmeros HDs. Eles jorraram, fazendo barulhos sólidos. E, por cima do monte, caiu um pequeno papel, quase insignificante, que estava no fundo do saco. Kurt o apanhou, aflito. Era um papel termossensível, liso como seda, feito para se apagar em um curto período de tempo. As letras cinza escuras digitadas nele já estavam mesmo se desbotando, mas Kurt ainda conseguia ler a mensagem: "Fuja também. Não deixe eles pensarem que te comandam".
Kurt sentiu uma fraqueza nas pernas. No final de tudo, ele tinha conseguido o que queria: se livrar das algemas, ser livre de novo. Mas ele só conseguia se sentir mal por Ace.
Ele encarou uma vez a pilha de HDs com olhos vazios. Imaginou a coleira curta que P.J. usou no garoto por todo esse tempo, sabe-se lá por quanto meses ou anos, tratando Ace como uma propriedade. Kurt então permitiu que a onda dentro dele finalmente vazasse para fora, um tsunami de destruição.
Com raiva e mágoa, ele esmagou os HDs. Começou tentando dobrar um por um, quebrando pedaço por pedaço. Até que a onda se tornou forte demais, e ele começou a pisotear tudo junto, socando os cacos depois. Demorou para perceber que estava sangrando; foi só quando as articulações das mãos arderam muito. O mesmo foi com as lágrimas; ele só percebeu que estavam lá quando seu rosto começou a esfriar, úmido.
Soluçando, Kurt se encolheu, abaixado no chão. Ele chorou com o rosto pressionado na curva do braço, deixando que a manga da blusa enxugasse as lágrimas amargas. Ele prendeu o ar de novo, tentando parar, tentando conter a onda. Era como se ele pudesse se afogar nela.
Até que alguém falou atrás dele:
— Da última vez, você não podia me deixar te ajudar, mas agora isso tudo bem? Desafiar P.J., se envolver em incêndio criminoso, voltar a deixar o Mac te dizer o que fazer... mas eu não? Você deve mesmo me odi- — A voz de Nash soou, e Kurt ouviu como se escutasse de muito mais longe, abafado. — Kurt?
Ele continuou na mesma posição por alguns segundos. Depois, muito devagar, tirou o braço da frente do rosto e fungou, engolindo o choro difícil. Com o ombro, esfregou o canto dos olhos. E, nos bolsos de trás da calça escura, enxugou os rastros de sangue que brotaram nas costas da mão.
Nash pareceu assombrado quando Kurt se virou para ele.
— Kurt — ele repetiu, a voz sufocada de tensão.
O colapso era visual. Mudo, Nash observou as mãos arranhadas, o rosto marcado de lágrimas, o monte de plástico quebrado. Ele tinha se preocupado com a segurança de Kurt quando recebeu o vídeo e as fotos, por isso não tinha conseguido reagir tão animado quanto os outros. Havia pensado que aquele era o pior terror que Kurt poderia ter passado, mas, agora, analisando sua postura cabisbaixa naquela situação, só o fazia pensar que, muito provavelmente, não sabia nem da metade do que Kurt tinha enfrentado.
Contra o halo fino da luz da lua, ele viu a silhueta dos ombros de Kurt começarem a se sacudir discretamente, o início de um choro. Os passos de Nash então foram rápidos para chegar até ele.
Tão suave como se ele pudesse quebrar, Nash segurou o rosto dele, acariciando as olheiras fundas sob os olhos de Kurt. Depois deslizou para baixo, limpando a marca das lágrimas. Quando os cílios longos de Kurt se levantaram, revelando seus olhos cheios de água, Nash se inclinou para beijar sua testa.
Aquilo só serviu para levar as muralhas de Kurt às ruínas. O choro veio de uma vez, convulsivamente, soluçando de corpo inteiro. Mas no instante seguinte, ele estava entre os braços de Nash, que o abrigou cuidadoso. Nash deitou a cabeça de Kurt em seu ombro, dando um lugar para que se sentisse seguro para desabafar.
Kurt agarrou a parte de trás da camisa de Nash, apertando com força. Os cortes arderam, mas pouco importava. Sentindo o calor das roupas cheirosas, a maciez dos músculos por baixo delas, ele se permitiu um momento de esquecimento e fingiu que estava tudo bem entre eles. Deixou que Nash fosse aquilo que seu coração sempre sentiu que fosse: alguém capaz de silenciar todos os seus gritos, de confortá-lo de seus medos.
.
.
.
O reencontro entre Kurt e Mac foi mais tranquilo do que muita gente imaginava, né? Bom, pelos menos o Mac não ficou sabendo onde o Kurt esteve esse tempo todo... ainda 🗣🗣🗣
Uma parte que amo nesse capítulo é o momento que rola entre o Iggy e o Kurt. Tem mudanças ali sobre o Iggy muito significativas para ele como pessoa, além da maneira como ele vê o Kurt, claro. Como sei que ele é um personagem difícil de gostar, amo trazer os momentos que a gente consegue ver melhor o que se passa com ele.
Enfim... o capítulo da semana que vem já está bem encaminhado e vai sair no dia 22/09, sem falta! Enquanto isso, vou correr para adiantar os próximos depois desse. Então até domingo que vem e boa semana pra vocês! ♡
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top