01.
De joelhos no chão de cimento áspero, Kurt terminou de esfregar a privada, enjoado pelo cheiro de urina e sujeira do banheiro coletivo que impregnava seu nariz. Esse era o preço por trinta dólares. Trinta dólares sofridos para esfregar marcas de mijo de caminhoneiros e suas pegadas de lama no banheiro de uma parada. Quando fugiu de casa, não pensou que teria de trocar uma humilhação por outra. Mas ali estava todos os dias, há uma semana. Amargo era admitir que, ainda assim, essa vida era melhor do que aquela que levava antes.
Kurt empurrou a descarga, e o redemoinho girou dentro do vaso de porcelana. Quando a água parou o agito, ele se viu encarando seu próprio retrato refletido dentro da privada. Seu cabelo castanho jogado por cima da testa, fazendo sombra no rosto que era meio torto pelo nariz quebrado e pela boca retorcida de desgosto. Kurt odiava ter aquele rosto tão parecido com o homem que deveria chamar de pai. Era como se ter fugido não tivesse adiantado nada, porque, a cada momento que virava e encontrava seu reflexo, a imagem de seu pai estava lá, encarando. E Kurt não podia evitar recuar alguns passos por impulso, esperando que uma mão saltasse da imagem para socá-lo na cara.
— Some, desgraçado — Kurt xingou sua cópia na água e cuspiu.
O sanitário devolveu, e a água por pouco não respingou no rosto de Kurt, que desviou por um reflexo defensivo há anos acostumado. Com raiva, ele amassou o pano de chão numa bola e limpou os respingos da gota que arruinou seu trabalho duro.
A porta do banheiro estalou aberta, e ele esfregou mais rápido, querendo acabar logo o serviço. Kurt não se importava em olhar quem entrava, pois era sempre só mais um motorista que havia dado uma pausa para abastecer e aproveitado para descarregar a bexiga.
Mas passos pararam no vão aberto da cabine, bem atrás dele. Por cima do ombro, Kurt olhou e reconheceu o gerente da parada de caminhões, um homem elegante com roupas impecáveis demais para um lugar daqueles. O bigode loiro em seu rosto marcante era falhado por uma cicatriz que riscava da boca até o queixo. Era do tipo de marca que contava uma história. Kurt só não sabia qual.
— Por que está carregando um revólver dentro do meu posto, garoto? — A voz tinha um forte sotaque estrangeiro.
O olhar severo do homem apontava para a parte mais baixa das costas de Kurt.
A arma enfiada no cós da calça pesou quando Kurt se lembrou que ela estava lá. Seu estômago deu um giro. Ele tinha cuidado em escondê-la bem o bastante por baixo da roupa, mas ficar se abaixando muitas vezes deve ter levantado a barra da blusa.
Kurt deixou o pano cair e se levantou em um movimento só, pulando de pé. Ele espanou os joelhos e disfarçou, levantando a calça e abaixando a blusa para esconder a arma.
— É pra caça. De patos — Kurt respondeu em pausas, sua voz saindo vacilante pela mentira.
A testa lisa do homem enrugou, duvidando. Ninguém caçava em Los Angeles, Kurt se lembrou com atraso. Isso era coisa de gente do Vale Central. Mas ele não insistiu em concertar o erro, porque ainda era sua melhor alternativa. Era mais fácil do que explicar que aquela era a arma que seu pai usava para ameaçá-lo nas piores noites. A arma que roubou de cima da geladeira antes de ir embora, para se lembrar todo dia do que estava fugindo.
— Pensei que usassem espingardas para isso — o homem comentou e alisou o bigode.
Kurt sacudiu os ombros.
— Só os amadores — ele tentou brincar, mas o homem não riu, e nem ele.
— E, por acaso, você tem idade para ter posse de arma, garoto? — O homem continuava usando aquele termo para fazê-lo se sentir menor.
— Completei vinte e um ontem — Kurt rebateu. Outra mentira. Os vinte e um só viriam no fim do ano, mas pelo menos ele contava com a defesa da identidade falsa em sua carteira.
O homem o investigou com o olhar de cima a baixo e parou na altura dos braços, avaliando as queimaduras de cigarro que marcavam Kurt até os cotovelos. Não precisou dizer para mostrar que cheirava encrenca exalando de todos os poros dele. Estava claro em seu olhar desconfiado.
O rádio comunicador preso ao cinto do homem chiou com uma voz emitindo um código.
— Olha, garoto, nós terminamos por aqui — ele cortou o ruído, e começou a mexer fundo nos bolsos da calça alinhada.
Kurt se desesperou ao perceber que não era como as outras vezes, um simples fim de turno. Ele estava sendo dispensado definitivamente.
— Não! Por favor. Eu ainda posso limpar mais, prometo. Isso... isso não é nada — Kurt tentou se defender, agitado no lugar.
— Terminamos por aqui — repetiu o homem, enfático e sério. — Aqui estão os trinta combinados. Agora vai.
Kurt só teve tempo de pegar as três finas notas estendidas antes de ver o homem lhe dar as costas e sair pela mesma porta que entrou, desaparecendo com o som de seus sapatos sociais. Um suspiro pesado depois, e as notas foram socadas no bolso de trás. Para Kurt, era difícil decidir o pior: ser dispensado de um serviço infeliz daqueles ou estar tão miserável a ponto de se sentir mal por isso.
Depois de chutar de lado um balde vazio no caminho, ele empurrou a porta e deixou o banheiro. Lavou as mãos antes, mas ainda se sentia tão imundo quanto aquele lugar.
O calor úmido da Califórnia o atingiu como uma estufa assim que pôs os pés para fora. O sol estalava do alto do céu sem nuvens, o vapor subindo do asfalto em ondas visíveis. A única sombra por perto era a do posto de gasolina ao lado, mas a cobertura de ferro da estrutura só piorava a temperatura.
Kurt preferiu continuar descendo na beira da estrada debaixo do sol. A barriga roeu quando passou pela loja de conveniência e sentiu o cheiro de hambúrguer pronto no micro-ondas, mas preferiu economizar o escasso dinheiro conquistado agora que não sabia como ou quando conseguiria mais. Outro banquete rico em sódio e conservantes o aguardava no porta-luvas do carro: os suculentos restos de um pacote de batata. Isso seria o suficiente. Teria que ser suficiente.
Do outro lado da rodovia, o Ford Taurus 1992 apareceu estacionado no trecho de terra do acostamento. Kurt reconheceu à distância o carro antigo que arrombou e usou para dirigir do subúrbio de Riverside até a periferia de Los Angeles. A lataria de cor apagada era familiar, assim como o teto amassado e a porta do motorista destoante do resto por ter sido trocada várias vezes e substituída por uma peça das mais baratas.
Ele podia prever como tinha sido a reação do pai, sete dias atrás, ao acordar e perceber que seu desprezível carro tinha sumido. Sem surpresa, deve ter demorado para se importar. Tony estava acostumado a ceder as chaves a Kurt para que o filho resolvesse seus problemas por ele. Pode ter pensado que era só mais uma das vezes que Kurt tinha saído para pagar um de seus devedores em seu nome. Demoraria pelo menos três dias para que Tony realmente se comovesse com o sumiço; não de Kurt, mas de seu carro. A essas horas ele finalmente tinha começado a procurar, sentindo falta da arma também.
Dezenas de carros cruzavam zunindo a rodovia, alguns ignorando as placas de limite de velocidade. Quando houve uma trégua, Kurt atravessou correndo a estrada. Não precisou chegar ao acostamento para ver dois homens saírem de trás de seu carro e correrem assustados ao vê-lo. Kurt sentiu todos os seus sinais de alerta se acenderem como alarmes.
— Ei! — Ele correu mais rápido e chegou ao chão de terra, a tempo de ver os homens subirem numa moto de placa coberta. O motorista acelerou, enquanto o da garupa segurou um largo pneu com roda e tudo entre eles. — Ei! Filhos da-
O ruído do escapamento rugiu alto, abafando o apelo. Os dois homens ganharam a estrada em seguida, deixando Kurt engolindo a poeira de terra levantada.
Tossindo, Kurt deu a volta no Taurus para encontrar um pneu traseiro faltando, com um tijolo de concreto sustentando a suspensão do carro. Uma chave de roda tinha sido deixada para trás. Provavelmente os ladrões planejavam levar todas as rodas se não tivessem sido interrompidos. Frustrado, Kurt socou a traseira do Taurus, onde não fazia diferença ganhar mais um amassado. Num movimento abrupto, apanhou a chave de roda e arremessou com toda força na estrada, na direção de onde os dois tinham escapado na moto. Um micro-ônibus passou na hora e soltou um som rasgado de buzina, evitando de ser atingido por pouco. Só então Kurt percebeu o que estava fazendo e decidiu se acalmar.
Ele sentiu o chão debaixo dele deslizar, mas entendeu mais tarde que eram suas pernas cedendo, até que ele caísse sentado na terra, com a cabeça entre os joelhos. Kurt permitiu seu autocontrole ruir por um instante e tudo que fez foi afundar o rosto entre as mãos, soltando um grito de frustração. Ele berrou até o grito ser escutado por cima do barulho na estrada. Se ele ainda fosse uma criança e estivesse em casa, sua mãe o faria pedir desculpas por falar alto, uma das poucas coisas que ela não tolerava. O impulso de obedecer a isso veio, porém, quando Kurt olhou de novo ao redor, a ficha caiu que estava sozinho. E sua mãe tinha sumido há muito mais tempo do que isso. O pedido de desculpas então morreu em sua garganta.
O carro não saiu do lugar e nem ele, dois corpos recostados um no outro no meio do nada. Não foi como se ele não tivesse percebido o tempo passar. Pelo contrário, ele contou cada minuto que se arrastou enquanto ele continuava largado no acostamento. Era mais como se as peças estivessem muito gastas para ele juntá-las mais uma vez, feito um vidro quebrado e colado centenas de vezes. Era um cansaço mais do que físico. Ele só se mexeu por perceber que estava tempo demais parado ali. A qualquer momento a polícia rodoviária poderia fazer uma visita nada agradável. Era difícil aceitar, mas as coisas poderiam ficar piores.
Com o freio de mão abaixado e alguns empurrões, Kurt arrastou o Taurus, guiando o volante com a porta aberta e os pés para fora do carro. A camisa suou pelo esforço de empurrar o carro sem uma roda, mas foi o suficiente para levar o Ford para dentro da mata à beira da estrada, na tentativa de camuflar o veículo. Depois de trancar as rodas com algumas correntes e cadeados, mesmo que não fossem grande obstáculo para ladrões profissionais, Kurt deixou o Taurus fechado e seguiu pelo acostamento. Seus míseros trinta dólares não bancariam um guincho imediato, mas ele daria um jeito de voltar com um no dia seguinte.
Agora que o carro onde esteve dormindo não era uma opção, teria que vasculhar a cidade atrás de um lugar ultra barato ou beneficente para ter onde passar a noite. O caminho até o centro não era perto nem para os mais otimistas, mas ir andando era a alternativa que Kurt tinha. Ele arriscou pedir carona para alguns carros que passavam por perto, mas foi ignorado em todas as tentativas, a não ser pelo caminhoneiro que ofereceu carona em troca de alguns serviços especiais. Kurt o dispensou com um gesto dos dedos do meio e continuou andando.
O plano tinha se tornado encontrar um ponto de ônibus. Mas depois de muita caminhada a leste, a estrada foi ficando cada vez mais vazia, com nenhuma placa de parada a vista. Kurt contou quantos carros passaram em cinco minutos: Apenas quatro; nenhum caminhão, nenhum ônibus. Estava perdido. Esse era um dos problemas de não se conhecer a cidade.
Com mais meio quilômetro andado, um cheiro de óleo queimado surgiu, trazido de longe pelo vento quente e seco. O odor se intensificou à medida que Kurt seguia pelo acostamento. A coluna de fumaça que subia para o céu apareceu primeiro. Depois veio a visão de um carro branco parado na beira da estrada.
Kurt segurou o queixo. Ele nunca tinha visto um Porsche pessoalmente e ficou deslumbrado com a imagem, mesmo que por debaixo do capô branco escapasse a fumaça densa e malcheirosa. Automaticamente ele desacelerou, até parar a alguns metros de distância, e admirou a máquina brilhando sob o sol, como se tivesse saído de um sonho.
Outra pessoa estava por perto. Era um homem; um rapaz. Kurt não daria mais do que 27 anos para ele. A idade da morte prematura dos astros, ele ouviu uma vez. O cara bem parecia um astro. Esguio e alto o suficiente para marcar presença, de cabelo escuro e liso, aparado num corte moderno, e muito bem-vestido. De costas, se movia inquieto e falava alto ao telefone. Um raio de sol bateu no relógio de ouro em seu pulso, e Kurt espremeu os olhos pelo efeito ofuscante do brilho.
— Qual parte do "eu preciso dessa merda agora" você não entendeu? O Porsche está fumando no meio da estrada! — O cara gritou para o telefone. Sua voz era um pouco rouca e tinha impacto, de forma que prendeu a atenção de Kurt. — Não fode, Cole! Se enfia na porra do seu carro agora e vem resolver isso. Eu não quero saber o que você está fazendo... o quê? Eu não sei! Eu não sei em que caralho o Nash está! Quem eu tô chamando agora é você, e não é um pedido.
O sujeito deu a volta no carro, passando na frente da coluna de fumaça, e Kurt teve um vislumbre lateral de seu rosto. O que primeiro ele registrou foi o perfil do nariz fino e reto como uma régua; depois, uma frase tatuada na têmpora direita: "DEVIL INSIDE", ela dizia.
— Cole? Cole! — Ele esbravejou, e Kurt deduziu que quem quer que fosse Cole, tinha ousado desligar na cara dele. — Cacete!
No instante seguinte, o telefone celular voou na mão do rapaz para o asfalto, esmagado. Partes do aparelho voaram para cantos diferentes, e Kurt se segurou para não gritar de desespero vendo algo tão caro ser jogado como lixo.
O rapaz recolheu os pedaços e deu meia-volta até o carro, ainda xingando sozinho. Kurt observou com curiosidade ele jogar os restos do celular lá dentro pela janela, para depois debruçar os braços sobre o teto branco do Porsche e olhar fixamente para o veículo. Ao invés de xingar e chutar o carro, como Kurt faria com o Taurus, ele alisou a lataria branca, quase como uma carícia. Kurt podia dizer com certeza que aquele carro era importante para aquele cara, ou quem sabe houvesse um valor sentimental nele. Talvez esse fosse a sensação de zelo que as pessoas desenvolviam quando tinham algo para chamar de seu. Kurt nunca soube o que era isso.
De repente, o rapaz parou e se virou de uma vez na direção de Kurt, como se só então percebesse a presença de outra pessoa ali. Kurt congelou com o choque. Desse novo ângulo, conseguia ver todo o rosto do outro e acabou gostando mais do que pensou que poderia. Ele tinha muitas outras tatuagens além daquela, descendo pelo outro lado do rosto até o pescoço coberto por desenhos, de uma forma que sugeria que os traços continuavam pelas costas, ombros e peito. Suas sobrancelhas eram naturalmente bem delineadas e elas enrugaram, formando um vinco no rosto fino.
— Que porra você está olhando? — Ele conseguiu usar um tom ainda mais agressivo do que ao telefone.
Demorou para Kurt encontrar sua voz.
— Isso... isso... — Kurt vacilou, quase gaguejando, e apontou para a fumaça saindo do Porsche. — Parece ser seu reservatório de óleo.
Kurt não era agradecido a seu pai por quase nada, a não ser por seu conhecimento e habilidades com carros. Nas horas em que Kurt não estava na escola pública, Tony o fazia trabalhar com ele na oficina ao lado de casa. Os hábitos alcoólatras de Tony teriam arruinado os negócios, já que ele não tinha vergonha de ir trabalhar bêbado. Era Kurt quem mantinha a clientela, depois que aprendeu a fazer todo o serviço sozinho. Desde então, a oficina passou a não depender só do pai. Pelo menos foi graças a isso que Kurt descobriu sua paixão por carros.
— Mas que sotaque é esse? — O outro rapaz rebateu, franzindo mais ainda a expressão. — Em que buraco de Los Angeles as pessoas falam assim?
As orelhas de Kurt esquentaram e ele encolheu os ombros. Ao menos o rubor ficou escondido pelo tom bronzeado que ganhou naqueles dias passados a fio debaixo do sol.
— Eu... eu não sou daqui. Sou de Riverside... na verdade, sou da Geórgia, mas vim de Riverside — Kurt explicou sem graça, inconscientemente forçando a voz para parecer menos sulista. Ele tinha mudado o jeito de falar há anos, desde que se mudou para a Costa Oeste aos treze. Mas às vezes ainda escorregava para os velhos hábitos, principalmente quando ficava nervoso.
O outro rapaz, por sua vez, redobrou a cara de dúvida.
— Ahã... E algum caminhão de porcos tombou na estrada e você se perdeu? Não mete essa. — O sujeito levantou o queixo fino, desafiador. — Quem mandou você?
Em um segundo, o cara cruzou a distância entre eles e enfiou a mão por dentro do blazer. No outro, puxou e apontou uma arma na direção da testa suada de Kurt. O dedo no gatilho demonstrava quanta intenção ele tinha. Paralisado, Kurt engasgou com qualquer resposta. Ele não entendia como o cara podia duvidar tão violentamente sobre de onde ele vinha.
— Fica quietinho aí e me passa a porra da carteira. Anda! — Ele fez um gesto brusco com a arma para apressá-lo.
O assalto do Taurus já tinha drenado qualquer energia para reagir. Kurt pescou a carteira desgastada do bolso da frente devagar e entregou com cuidado, imaginando se levaria um tiro por não ter dinheiro lá dentro.
O cara tomou sem o mesmo zelo e começou a vasculhar a carteira bem ali, na frente dele. Ao menos, com as duas mãos ocupadas, a arma perdia a mira. Kurt calculou quais eram os riscos de sair correndo naquela hora, mas, quando o outro tirou o objeto de interesse de dentro da carteira, ele se viu paralisado de novo. Não era atrás de dinheiro que ele estava, era atrás da identidade.
Com as mãos tatuadas, o sujeito exibiu os dois documentos que Kurt carregava: um verdadeiro e um falso.
— Espertinho — ele ironizou e exigiu saber qual dos dois dizia a verdade sobre quem Kurt era. Kurt apontou, ainda mudo.
Tendo o que queria, o cara soltou todo o resto no chão. Depois puxou um celular novo em folha de dentro do blazer e fez a última coisa que Kurt esperava: tirou uma foto, focando na 3x4 colada no documento. Então apertou algumas teclas, colocou o aparelho na orelha e gravou uma mensagem de voz logo depois:
— Cole, escuta aqui, melhor não me ignorar. Escanea esse cara pra mim, agora.
Assim que ele desligou, a arma subiu de novo, e Kurt se viu sob a mira. Ele esperou acontecer mais alguma coisa, mas o outro também estava esperando por sua resposta. Eles ficaram ali se encarando; temor de um lado, desconfiança do outro.
Se o sujeito procurasse no banco da polícia, será que encontraria uma denúncia de furto contra Kurt? De porte ilegal de arma, talvez? Apesar de Tony ser muito covarde para ir à polícia, com risco de ter suas sujeiras descobertas, Kurt sempre esperava o pior.
Um minuto depois, que valeu por uma eternidade, o celular apitou com uma mensagem. Kurt tentou ler a tela junto, mas o sol impediu. Então ele olhou para o rosto tatuado, procurando algum indício de resposta na expressão dele.
Kurt recebeu uma encarada longa e demorada. Havia algo perverso naqueles olhos escuros que fez Kurt desconfiar sobre não ter sido na base policial, ou em nenhum outro meio legal, onde sua identidade tinha sido buscada.
— Você escolheu o caminho certo não mentindo para mim — o outro disse por fim.
Kurt saiu do choque quando teve a identidade verdadeira jogada contra seu peito. Reagiu se agarrando a ela e se abaixou para apanhar do chão a carteira com o documento falso.
O sujeito assistia de pé todos os seus movimentos amedrontados. Analisava cada gesto. O revólver já tinha sumido de vista de novo, assim como o celular. Isso deu a Kurt um pouco de coragem, ainda que hesitante, de se levantar e encará-lo na mesma altura.
— Quer saber?! Eu só queria ajudar, cara! — Kurt explodiu de repente, todo o sentimento quente de revolta pela humilhação do dia inteiro fazendo sua voz subir. — Eu me arrastei pelo caminho até aqui porque não tinha outra opção! Se você acha que a sua situação está ruim, devia ver o carro que eu tive que deixar para trás porque roubaram a roda! É foda! Não dá pra sair! Não dá pra consertar!
Kurt parou, respirando pesado. O outro lhe deu um olhar de cima a baixo, sem comoção alguma, e seu único ato foi enfiar a mão dentro do bolso para tirar um cigarro, como se estivesse entediado. O som do isqueiro acendendo se confundiu com o resto do desabafo sem controle de Kurt:
— Eu estava tentando sair dessa merda de lugar nenhum quando vi você. E eu nem pensei em conseguir uma carona ou qualquer benefício. Eu só queria ajudar! — Então apontou com ênfase para o carro quebrado e para o vazio ao redor. — Porque eu sei como é estar nesse lugar, valeu?
Eles se encararam no súbito silêncio da estrada solitária.
— Dramático. — O outro exalou a fumaça do cigarro pelo nariz.
Kurt soltou os ombros junto com uma risada seca e amarga.
— Eu só estou... preso. E cansado disso.
Quando o protesto morreu com sua voz, o tatuado tombou o rosto de lado. O sujeito estudou seu rosto. Kurt não sabe o que ele viu, mas no fim ele jogou as mãos para o alto.
— Tudo bem. Essa coisa já tá fodida mesmo... Acho que nada que você faça pode piorar. — Ele se afastou um pouco do Porsche, abrindo caminho. — Vá em frente se entende de alguma coisa. Se não estiver me enganando, eu te ajudo de volta.
Kurt congelou. Não tinha certeza do que significava "ser ajudado de volta", na percepção dele. Mas o que era a incerteza de uma promessa para quem não tinha nada?
O único carro que tinha dirigido por toda a vida foi o Taurus danificado do pai, mas os clientes da oficina tinham dinheiro, e Kurt aprendeu a manusear uma boa máquina. Então seguiu em frente. Fazia tempos desde a última oportunidade que teve de mexer com um carro de verdade, e aquilo seria no mínimo divertido depois de tanto estresse.
Abriu o capô, deixando o resto da fumaça sair, e se debruçou sobre o motor. Já estava quase frio, o que lhe deu liberdade de explorar o quanto pode do carro. As peças eram incrivelmente excitantes, partes personalizadas que tornavam o modelo único. Dava para notar todo o investimento empregado para o melhor desempenho. Tanto aprimoramento que Kurt duvidava que tinha sido do dia para a noite. Quem sabe levaram anos.
Com uma inspeção, ele confirmou que o reservatório tinha um leve problema. Uma raspagem no plástico que permitia um pouco de óleo vazar. Procurando, não demorou para entender a causa através de um buraco no para-choque. Tinha sido um tiro, bem na direção do reservatório. Kurt engoliu calado, sem disposição para comentar. Tudo o que podia pensar era que agora podia entender de onde vinha toda aquela desconfiança sobre ser enviado por alguém até ali.
Ele se concentrou. Pediu algumas ferramentas ao dono do Porsche, que cedeu contrariado, e improvisou outras. Ao final de dez minutos, o estrago estava aparentemente consertado. Ao menos até um reparo permanente que segurasse melhor.
No momento que Kurt baixou o capô de volta ao lugar, seu olhar encontrou o do outro rapaz, que o assistia o tempo todo.
— Você trabalha com isso? Mecânica? — O tatuado questionou subitamente interessado.
— Não. Quero dizer... já trabalhei por um bom tempo, mas não mais. Na verdade, acabei de ser despedido de um trabalho que nem era fixo, que envolvia limpar a lama do chão e esfregar vaso sanitário de uma parada de caminhoneiros.
Pela primeira vez, o rapaz riu de verdade. Um riso debochado que deveria ter feito Kurt se sentir ofendido, mas não fez. Na verdade, ele relaxou os ombros e soltou o ar, aliviado por aquela reação desfazer parte da tensão entre eles.
— Ótimo — comentou o tatuado, soprando o resto de fumaça antes de jogar a guimba para o acostamento. Ele enfiou metade do corpo pela janela aberta do Porsche, pescou algumas coisas do porta-luvas e voltou. — Aqui. Tome.
Em uma mão, Kurt viu uma caneta. Na outra, a que estava estendida em sua direção, havia uma nota de cem dólares. Ele quase caiu para trás.
— Eu não tinha pensado em custar tanto assim, você não tem que... — Kurt começou.
— Pega logo — o rapaz retrucou sério.
Kurt estava inclinado a debater. Mas ele pensou no Taurus sozinho no acostamento, no guincho que teria que pagar, na noite de sono salva que teria, e aceitou. Esticou-se timidamente até a nota estendida e a pegou sem graça.
Foi quando o rapaz tatuado puxou a mão dele pelo punho, um movimento rápido e inesperado. Kurt sentiu o coração pular uma batida com o susto e tentou se livrar do aperto. Mas o rapaz era mais resistente e o manteve no lugar.
— Calma, garoto. O que acha que vou fazer? Morder? — Ele deu um sorriso afiado, fazendo a tatuagem de uma pequena rosa morta na bochecha se esticar com o movimento.
Ele virou a palma de Kurt para cima, tirou a nota e enxugou o suor da pele com a manga do blazer. Com a caneta, começou a escrever na mão aberta. Não demorou para que ele terminasse e o soltasse depois de devolver o dinheiro.
A palma da mão continuava formigando pela pressão da ponta da caneta quando Kurt viu o rapaz dar as costas e ir para a porta do motorista.
— Você já acabou? — O tatuado perguntou e bateu a porta ao entrar no Porsche.
Tudo que Kurt pode fazer foi acenar que sim. Enquanto ao fundo a ignição dava a partida e o motor ganhava nova vida, Kurt olhou para baixo e leu as letras corridas e tortas rabiscadas em sua mão: "Rota 66, Deserto Mojave, a 2km de Calico. Encontre um trailer". E, em baixo das coordenadas, um nome: "MACKENZIE".
Kurt ergueu o rosto, a tempo de olhar pelo para-brisa e ver um vestígio de sorriso no rosto do rapaz, satisfeito pelo carro recuperado.
— Aparece lá amanhã que eu te descolo um trabalho de mecânico — o tatuado falou pela janela.
Kurt olhou mais duas vezes entre ele e os rabiscos em sua mão.
— Isso é sério?
O rapaz levantou uma sobrancelha e pisou no acelerador, provocando o Porsche a rosnar, o que funcionou para acordar Kurt do torpor.
— Não. Esse é o endereço de uma boca de fumo onde vão te fuzilar quando você chegar lá — o cara respondeu. Kurt ficou paralisado como um cervo assustado na frente do carro, o que causou uma gargalhada no rapaz dentro do Porsche. — Aparece lá, porra! Tenho outros carros que precisam de conserto.
— Certo, certo — Kurt repetiu, mais para se convencer do que qualquer outra coisa. — Tudo bem então... Mackenzie. — O nome soou singular e diferente para Kurt, que não estava acostumado a chamar ninguém pelo sobrenome. — Meu nome é Kurt. Kurt Young.
Pareceu mais educado ser ele mesmo a se apresentar, não as letras mecânicas impressas ao lado de sua foto na carteira de identidade.
Ele ouviu a marcha engatar suave, o modo manual acionado, e percebeu o volante de couro girar os pneus de volta para a estrada. Dentro do Porsche, Mackenzie encaixou um par de óculos escuros no rosto.
— É, tanto faz — ele respondeu esnobe antes de partir.
Depois de uma derrapada, o Porsche disparou quase como uma flecha, a toda velocidade. Kurt assistiu à máquina branca desaparecer no horizonte em poucos segundos, para além de onde seus olhos alcançavam a rodovia.
Os cem dólares ainda pesavam entre seus dedos, junto com as letras rabiscadas de caneta. O que mais excitava era a pulsação nova de seu coração, que parecia sintonizada com o ronco daquele Porsche branco. Kurt se sentia inteiro como uma corda vibrando estimulada.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top