Capítulo Único - Cara homônima,

Final do último trimestre do penúltimo ano,

Cara Simone,

Homônima, ou seja, com um nome que ao ser colocado frente ao espelho, reflete o meu. Ou talvez, ao contrário. Sim, certamente seria. Creio que estudei algo semelhante em física, embora isso não seja de real importância para nossa comunicação.

De toda forma, frente ao espelho, igual a mim.

A história que narro agora é uma tentativa falha de livramento, na qual busco desesperadamente arremessar todas as palavras presas na garganta para fora — ao lixo. Antes que imagine que é minha primeira forma de comunicação, receio que não, nos comunicamos diversas vezes no passado, embora esta seja a primeira carta definitivamente enviada a vossa pessoa, não como filósofa, muito menos como existencialista. Direciono a Simone de Beauvoir, mulher.

Bem, talvez, para nos diferenciar, devesse me referir a ti como Beauvoir, visto que apesar dos nomes iguais, permanecemos em épocas diferentes. Apesar de que, por dentro, sinto que ainda enfrentamos problemas — ou conflitos — semelhantes. Ainda enfrentamos medos semelhantes. Pressões semelhante.

Falando nelas, você sentia a mesma pressão que sinto agora quando estava prestes a cursar matemática? Quando seus pais falaram que nunca se casaria — por não ter dote — sentiu-se triste? Conhecendo-a, como bem (não) a conheço, acredito que não. Posso te ver abrindo os livros e indo aprender, nunca decorar, cada linha.

Se me inspiro em ti para tantas coisas, por que não sou capaz de fazer o mesmo para mais uma? Por que quando penso que não irei casar por não possuir um dote — hoje, já não mais dinheiro. Apenas beleza, carisma, recato, a capacidade de ser definida como do lar — sinto-me tão vazia? Irei estudar depois, mais a fundo.

A verdade é que sou vazia, Beauvoir. Sinto que não sou igual as outras mulheres que cruzo por minha vida, mas encontro-me nos teus livros e no de outras que já passaram por esses céus, temo dizer que isso me assusta — temo, pois dizer abertamente significa admitir e todos sabemos que, como humanos, detestamos admitir nossas fraquezas.

Uma vez contaste que não nascemos mulheres, nos tornam. Receio concordar que não existem fatores biológicos que me façam ser o ideal de feminilidade que todos esperam e se não existem, provável que nunca irei me encaixar neles, não posso afirmar se é ou não uma pena, não posso afirmar o futuro — no passado, digo que talvez não seja nada além de um fardo. Você estava certa, sabia? Tudo aquilo que eu deveria pensar, viver e fazer, tudo aquilo que dizem que devo ser, são apenas frutos de valores culturais impostos desde o meu nascimento.

Porém, não me encaixo, nunca me encaixei. Não apenas como pessoa, não apenas nas ações, mas em como sinto e amo. Meu amor não veio da minha criação, Beauvoir — o seu veio? Rezo para que não —, porque isto é, ou deveria ser, algo tão pessoal e íntimo que nenhum conceito ou pessoa, deveria tocar ou modificar.

Não me encaixo no que usam para definir o ser mulher, Beauvoir. Não cozinho bem, não sei cuidar da casa, não consigo fazer um pliê, não sou ao menos capaz de usar um salto e manter a postura. Porém, o real motivo para que eu não seja capaz de me adequar ao que definiram é mais assustador que todas essas coisas, visto que não sei se pode ser modificado. Ou melhor, sei. Não pode.

Eu não amo homens, Beauvoir.

Mesmo assim, sinto-me mulher. Sei que sou uma mulher.

Então, se consigo dizer tais palavras com tanta certeza nesta carta mal escrita destinada a uma pessoa que já se foi, por que não consigo repeti-las àqueles que me cercam?

Se tenho tanta certeza do que afirmo, por que continuo sem entender a mim mesma?

Querida Beauvoir, estou caindo. Não sei em quem confiar, para quem contar e me tranco no pequeno mundo que é a carta que vós escrevo, na expectativa de que um dia a coragem que imponho para manusear essa caneta, seja imposta em minha voz, para que eu possa manusear meu destino.

Receio-me em dizer que tuas palavras, embora nunca tenham sidos dirigidas a mim, acariciam a alma de uma garota (ou todos os atributos acima já me tornam uma mulher?) em conflito.

Temo, querida Beauvoir. Temo. Temo que sua luta tenha sido em vão, que seus textos sejam perdidos no meio de mentes vazias que apenas repetem bordões de massa, uma vez que acredito que em um mundo de ignorância, sempre alguém ousará alterar vossas palavras para me manipular. Pois creio, assim como você, que nos segregamos. Dividimos. Estamos em constantes lutas por coisas que beneficiam aos outros, nunca a nós.

Uma vez, escutei, acho que de sua boca, que seremos as primeiras a perder nossos direitos diante de uma situação de instabilidade política.

Vivemos uma, por isso o meu medo. Instabilidade no Congresso, no lar, no coração.

Deveríamos lutar por nós, deveríamos ser como mosqueteiros.

Mas não somos.

Eles por eles, e nós também. Veja que digo nós.

Em determinado momento, canso de nadar contra a correnteza e deixo que me leve. Perdoe-me, Beauvoir. Caso isso soe ridículo ou alheio, imploro que lembre-se de que estou tão alheia quanto meus textos. Que estou cansada.

Mas isso não é desculpa, eu sei. Só que sei que você também sabe como me sinto, porque sei que em determinado ponto, é normal cansarmos e pararmos para descansar. Sei de seus erros, suas falhas, só não viso apontá-las agora porque sei, e como sei, que os meus também estão amontoados ao meu lado, prontos para serem engolidos pela tinta azul da caneta.

Lutar é uma atividade cansativa e não reconhecida, não no nosso caso, não no caso de quem luta por algo que não é visto como um motivo para lutar, algo que não é visto como motivo algum — algo que temo nem ao menos ser visto. Algo que, na verdade, não vejo.

Apenas sinto.

Para as (ou seria às?) mulheres que me cercam, meu singelo pedido de desculpas — sinto, sinto muito —pela fraqueza que me domina em momentos importunos.

Para ti, deixo um igualmente singelo agradecimento pelas palavras que nunca me foram dedicadas — todavia soam tão pessoais e são tão íntimas que poderiam ter sido, o que é bom e ruim ao mesmo tempo.

Bom, porque encontro em ti um porto.

Ruim, porque encontro também um reflexo — e ele não se específica apenas no meu nome. Nossas lutas ainda são as mesmas, embora permaneçam diferentes a primeira vista.

Tal qual um nome refletido no espelho.

Oh, querida Beauvoir, quanto tempo demorou para perceber que amor essencial não era nada além do essencial e que o ser humano é egoísta demais para viver apenas do bastante? Queremos mais. Sempre queremos mais. Creio que não entenda meu ponto — tudo bem, eu também não entendo muito —, sigo o modelo monogâmico, discordo de sua teoria de amores liberais e, ainda sim, recuso o casamento? Bem, é complicado, talvez tudo seja fruto de uma ilusão da minha mente — hoje acostumada a devanear —, porém acredito que o preço da liberdade e fidelidade não existe.

Veja bem, conciliar é impossível, temos sempre que abrir mão de algo para segurarmos outra coisa. Digo e repito com tanta veracidade quanto digo que existo e vivo, com tanta certeza quanto digo que o céu é azul e que ainda respiro.

Que ainda respiro...

Digo isso com o desejo de que seja irreal, assim como o de respirar, porque creio que desejei parar em alguns momentos.

Respondo aqui sua pergunta de décadas: "É possível ter amor e liberdade?". Sei que você já chegou a mesma conclusão, mas ainda a enfatizo: não se é possível ter os dois e sim, era uma ilusão acreditar que eram um só, quando na verdade, eram diversos, vários, fragmentos de pessoas que foram quebradas e tentavam se unir. Eram vocês mesmos.

Sei que um dia se perguntou sobre a terceira pessoa, digo que já fui uma dessas. Só que nesta carta, não quero pensar nas dores de ter um coração quebrado, quero apenas jogar fora meu ódio pelas minhas escolhas, pelas minhas correntes, quero jogar fora minha ganância por ser contingente, essencial, por ser mais do que sou ou do que fui.

Meu ódio por pessoas como Sartre.

Como você.

Explico-te, antes que mal me entenda. Beauvoir, fui tantas vezes contingente que invejava a essencial, invejava quem foi, e ao te ver tratando outras pessoas como Sartre tratava... eu sinto ódio por você. Porque temo que meu coração tenha sido entregue a uma Beauvoir que eu tanto pintei de Sartre, ou que vocês dois sejam reflexos no espelho tal qual nosso nome é.

De toda forma, ambos me quebraram. Ambos me quebraram e me fizeram pensar que, talvez, apaixonar seja tão inútil quanto respirar e, por isso, todas as vezes que a olho, sinto que ela é meu começo, meio e fim. Sinto que ela é aquela que pode me reconstruir e me quebrar, com um simples toque ou simples palavras. Eu, Simone, prometi tantas vezes nesses curtos 17 anos que não olharia, não me apegaria, que me trancaria e que viveria lutando para ser o que posso, o que me pertence.

Eu me conheço. Uma luta basta.

Ser mulher é difícil.

Ser mulher LGBT é impossível — talvez, não saiba, estava ocupada quebrando os corações de outras como eu, ou talvez, saiba e sentisse a dor delas todas as vezes que os quebrasse. Não sei bem em que face sua me apegar enquanto escrevo essa carta —, exige uma força que não possuo, tenho certeza que não possuo, não é um temor ou uma possibilidade, é uma queda livre e constante.

Temo o casamento pois sei que ele é uma prisão social.

Temo a solidão pois sei que é uma prisão imaginária.

O que mais temo? Liberdade ou solidão?

Sabe qual o pior, Beauvoir?

Quando a olho... ah, quando a olho...

Quando a olho sinto que jogaria todos esses temores fora e navegaria no oceano de suas palavras, dormiria na cama que é seu olhar e morreria no ventre que é seus braços. Quando a olho sinto que não sou eu, não sou a menina que reclama de suas ações, que não sabe se é contingente, essencial, que não sabe o que é e se é alguma coisa.

Quando a olho, não acho que sou o seu reflexo, fruto de suas ideias e de outras mulheres.

Quando a olho, penso que sou apenas uma estudante do terceiro ano apaixonada por palavras, olhares, sorrisos e outras mulheres — sendo ela uma delas.

Então, lembro de você. Com todo o estudo, com todos os acordos, com todo o essencial... e ainda dessa forma cercada de dores, ainda dessa forma não se sentindo especial e querendo quebrar tudo, ainda querendo jogar tudo fora e ainda querendo desistir. Ainda querendo pedir alguém, que talvez não a amasse da forma como a amava e nós sabemos que existia essa diferença, em casamento.

Ainda focada nos dotes que não possuía e em ser a segurança de alguém quando não era a sua.

Penso em você sendo amiga e cumprindo sua palavra, por mais que quisesse ser outra coisa e cumprir os seus desejos, penso em você e sinto que meu coração se apertar, meu ar se perder e tenho medo de ser esse meu destino. Tenho medo de que por mais que me prenda a outros mares, meu oceano permaneça sendo dela.

E, quando seu coração for quebrado, volte.

O pavor de quebrar outras pessoas como um dia fui quebrada pede para que eu me afaste.

O pavor de viver do passado e nunca fechar as feridas pede para que eu me aproxime.

No final, o que eu quero fazer?

Além de, obviamente, deixar de temer.

Não responderá essa carta, ou nenhuma outra, mas fico feliz de ao menos poder conversar e reclamar dos privilégios que tenho e não admito.

Ainda espero um dia que eu consiga me livrar das minhas recusas internas e saber o preço de cada coisa, renunciando o que menos faça falta — por mais que ambos pareçam fazer muita falta nesse momento.

Liberdade.

Amor.

Amizade.

Qual desses estarei disposta a renunciar? Qual desses termos estarei disposta a cumprir? Qual pilares escolherei? Poderei viver em pé quando dispensar um deles? Para obter o amor dos filmes, renuncio a liberdade.

A amizade, renuncio o amor.

E para obter a liberdade.... não sei qual renunciar, os dois, talvez? Por que, por mais que a renúncia seja maior, permaneço achando uma troca inválida? Por que, por mais que eu tenha mais chances de cair, permaneço crendo que ficarei em pé?

Parto agora, enquanto ainda estou inteira — enquanto ainda não me partir — contudo já desejo voltar... me quebrar.

Espero que, um dia, possa escrever até breve.

Homônima.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top