Vida na Morte
Em algum momento na sua vida você aguarda a chance de poder viver sozinho, ou formar a sua própria família. Sabe? Se cuidar, sem precisar dar satisfação de todos os seus passos. Espera ter um bom trabalho, uma família aceitável e, quem sabe um cachorro. Ou um gato, se for seu estilo. Quem sabe até mesmo um rato ou uma cobra.
Não estou aqui para julgar suas escolhas, estou aqui para te dizer que nada disso vai rolar comigo, por que adivinha? Fui sorteado de nascer na última geração viva da Terra, e aos 14 anos, sobreviver em um surto de uma espécie mais avançada de raiva, ou seja lá o que essa coisa for – o que foi? Eu não sei o que rolou, não sou cientista e todos os que tinham para pesquisar isso estão mortos – até onde eu sei –, então sinto muito por não atender suas expectativas de explicar o que aconteceu.
O que eu sei é apenas o resultado de toda a destruição e em resumo é: muito sangue, fogo para todos os lados e, infelizmente, muito do sangue que eu vi foram de pessoas que eu amava. Desde então estou sozinho, atravessando o país para tentar achar alguma colônia de sobreviventes, como eu.
CAOS
Eu sou o Dylan. Quando todo o surto começou, eu era magro demais, fraco e bem esquisito. Acredito que não fui devorado por falta de carne naquele meu corpo mixuruca de grilo frito. E isso era uma humilhação grande, afinal, logo eu tive que ser responsável por matar toda a minha família que tinha sido infectada. É, foram tempos difíceis pro grilo aqui.
Desde que o surto começou, eu tive que sair por lugares que eu jamais pensei que passaria, e cada esforço físico para me manter vivo sozinho foi responsável por mudar completamente quem eu era. De um garoto desnutrido eu comecei a parecer um cara mais saudável, mesmo que essa aparência tenha vindo depois de muita briga e muita correria.
Nesse momento estou sentado na varanda da "minha casa", com a minha besta do lado, observando o movimento nas ruas – que estava igual ao movimento de ontem, e antes de ontem... muita gente "morta" andando na rua fazendo uns estalos estranhos, porque eles podem produzir barulho, eu não. Desde que eu tinha chegado naquela cidade, eu pensava em como sair dali sem chamar atenção deles, o que era muito difícil – e é por isso que eu ainda estou aqui.
O problema maior de todos os meus pensamentos atuais é que, quando eu imaginava que queria morar sozinho, ou viajar sozinho, eu não pensava que todo o resto do planeta estaria morto. E isso era péssimo, porque se todo mundo estava morto, a única experiência sexual que eu teria antes de virar adubo seria com a minha mão. Nada animador.
Sabe o que mais me deixa chateado nisso tudo? É que eu tenho a memória fresca demais para lembrar como era poder ter acesso a uma internet boa e jogar videogame com o holograma do meu melhor amigo – que morava na Austrália – e agora eu não podia fazer isso. É isso que mais me deixa puto: estar entediado lembrando como era poder me divertir.
Felizmente, estar em meio a um verdadeiro apocalipse zumbi não era como nenhum dos filmes antigos que meu pai gostava de assistir ou séries cult que a minha irmã pagava pau. Eles não eram rápidos como os zumbis de Guerra Mundial Z e muito menos organizados como os do filme Eu Sou a Lenda. O único problema, é que a audição sim era ótima. E é por isso que armas de fogo não servem. Um tiro, mesmo silenciado, atrai e muito essas criaturas, então não adianta muito ter uma metralhadora quando se tem centenas de milhares de alvos andando em passos largos até você. Anota essa, vai ser importante.
Já vi muita gente ser atacada e morta por ser burra. Não se anda por aí com armas que não sejam silenciosas, e é por isso que eu ando com uma besta que encontrei em uma das casas que invadi procurando comida, e com garrafas contendo coctel molotov.
E eu sei que você vai me dizer para não besta, porque bestas são difíceis de recarregar e pesadas para levar como uma bolsa de verão. E eu te respondo: é, meu velho amigo, você está certo. A questão é que eu não levo a besta para atravessar uma horda de zumbis, porque quando você vê uma horda você não atravessa, você dá a volta. Se quiser me chamar de covarde, pode chamar, pelo menos eu continuo vivo, ao contrário da maioria dos corajosos que eu conheço.
Mas voltando ao assunto de dar a volta, você não leu errado. Se você vê mais de dois vindo na sua direção, você arrodeia – ou seja lá como você chama na sua região. O conselho é pra nunca passar por eles, ou, se estiverem sozinhos, você limpa. E como faz isso? Bom, com meus 4 anos de academia sozinho, treinando tiros de besta, eu consigo acertar até três com uma flecha só. O lado engraçado de dizer sobre a cultura de filmes/séries/jogos sobre esse tema é que eles acertaram: é melhor acertar na cabeça.
Isso, porque se você não acertar na cabeça, ele consegue mapear de onde veio a flecha pelo som que ela faz cortando o ar – e eu descobri isso da pior forma possível. E se o tiro não for certeiro em todos que estiverem por perto – caso seja mais de 1 – eles conseguem rastrear de onde a fecha saiu pelo som da trava da besta. Pra quem tá pensando em faca ou espada a resposta é: não. Melhor você conseguir atingi-los de longe, vai por mim. Por mais que eles não corram, na hora de lanchar eles são bem rápidos.
Fora que, quando se dá uma facada ou se tenta fatiar um desses com uma espada, você esquece de 2 coisas: 1 – crânio é difícil de se perfurar com a faca – e o mesmo acontece com a espada. E 2 – eles gritam quando são atingidos, porque os filhos da puta sabem que fazendo barulho atraem mais deles. Então é, eles não são organizados quando o assunto é ataque, mas a mãe natureza faz questão de garantir que eles consigam te matar se você tomar o passo errado.
Para muitas pessoas, lidar com a solidão seria péssimo e a cabeça acaba criando coisas para se entreter – é por isso que eu dei um nome pra minha besta. Não somos acostumados a ficarmos o tempo inteiro em contato com a solidão, e isso acaba pesando. E pra mim também pesa.
– Olha só o tanto... – digo em baixo tom, assim que percebo que vários zumbis estavam começando a vagar em direção a casa que eu estava.
Desde que tudo tinha começado, eu tinha virado um belo incendiário. Acho que eu taquei fogo em tanto carro, caminhão e prédio, que metade da poluição atual do mundo tinha sido causada por mim. Mas espero que entendam que quando um zumbi se queima, é menos um desgraçado pra comer minha carne sem meu consentimento – e consentimento é bem importante.
E sinceramente? Não tem ninguém pra reclamar que eu estou tacando fogo em tudo para me manter vivo e graças ao fogo eu permaneço vivo. Se você pensar que ele consome com ódio tudo o que ele toca, te deixa apavorado, mas no meu caso ele me conforta. Porque pensar que ninguém pode chegar perto é uma dádiva – até eu ouvir um gemido de dor baixo.
Fechei, então, meus olhos e pedi para tudo que fosse um delírio de tanto ficar sozinho, ou que fosse apenas um zumbi aleatório é muito mais humanizado que a média. Essa minha reflexão estava até que funcionando, até eu ouvir mais uma vez e respirar fundo, pegando meu binóculo para observar a rua com mais detalhes.
De primeira só vejo o de sempre: gente morta andando, mais gente morta andando... uma garotinha viva. Tiro o binóculo do olho, pensando quando foi a última vez que eu comi, talvez eu estivesse delirando. Quando coloco de volta, vejo que era realmente uma garotinha viva, que estava presa na grade de uma das casas da rua.
– Merda, merda, merda... – fico pensando se deveria ir lá.
No meu protocolo de sobrevivência não cabe ser herói. Eu vi muita gente morrer porque não iria me arriscar, mas a cada passo daquelas coisas em direção a ela, eu ficava me perguntando qual era o preço da sobrevivência. E foi por isso que peguei a Cecil (minha besta) e atirei com uma flecha só os dois zumbis que estavam se aproximando dela.
Não demorou muitos minutos até começar a vir aquele mutirão de zumbis na direção de onde eu estava. Eu, então, desci pela varanda da casa onde estava, para a rua e peguei alguns estalos, jogando-os para o mais longe que consegui, vendo aquele bando de otário seguindo os sons.
Me aproximei da garota e peguei meu alicate, cortando a grade que estava prendendo-a. Faço sinal de silêncio e peço para que ela me siga, assim que a solto, levando ela até uma outra casa – onde estava minha mochila com comida e mais materiais para criação de molotov.
– Não pode andar pela rua desse jeito. – digo em baixo tom, assim que fecho as barricadas da porta de casa.
– Eu estava correndo de um deles e fiquei presa. – ela passa a mão no rosto, que estava sujo por causa das cinzas. – Me desculpe. – ela responde, tímida. Deveria ter entre seus 9 e 11 anos de idade. Eu, então, respiro fundo e penso um pouco.
Só de imaginar tudo que poderia ter acontecido com ela eu me sinto mal. Mais que ser devorada, se ela tivesse esbarrado com um cara de má índole, provavelmente não sobraria muita coisa também. Seus olhos grandes e verdes, cabelo fino e braços magrinhos entregavam que ela não se alimentava bem – não sei nem como estava viva.
– Se eu não estivesse te vendo, estaria morta. É o que eu quero dizer.
– Eu sei. Obrigada. – ela me responde e eu penso um pouco, tirando minha máscara. Geralmente eu usava ela, porque era difícil de respirar com a quantidade de fogo que tinha ao redor.
– Está sozinha? – pergunto e ela nega com a cabeça. Por alguns segundos, então, minha espinha gela totalmente de medo.
– Estou procurando meus irmãos. – ela verbaliza e eu não consigo esconder minha surpresa em ouvir aquilo.
É claro que ela não tinha sobrevivido sozinha. Que belo animal eu tinha sido levando uma pessoa desconhecida pro meu esconderijo atual. É, Dylan, não respeitar seu código de sobrevivência custaria caro.
– Tem mais de você? – questiono impaciente e ela concorda com a cabeça. – Merda. – digo a mim mesmo, sabendo que tinha acabado de me ferrar.
Isso, porque quando estamos em momentos extremos, pessoas ficam desesperadas. No começo foi difícil sobreviver, mas não foi nem por causa dos zumbis e sim por causa dos sobreviventes. Passei por lugares em que dezenas de pessoas vivas e saudáveis tinham sido executadas por causa dos recursos que levavam, e viver no silêncio me fez desviar dos zumbis e me esconder desses criminosos.
Acredite no que eu digo quando falo que quando a polícia não está funcionando, até mesmo uma pessoa "justa" pode se corromper. Vi um homem matar com um tiro de 12 uma mulher por um feijão enlatado, e uma moça atirar em um idoso com uma pistola por uma sopa. A ponto de curiosidade, essas pessoas foram devoradas, porque é como eu disse: você não usa armas de fogo nessa realidade se não quiser atrair centenas de zumbis até você.
– O que foi? Eles não vão roubar suas coisas. – ela comenta e eu sorrio, achando ela fofa.
– Quem me garante? – pergunto.
– Eu.
– É? – sorrio ainda mais.
– Você salvou a minha vida. Meus irmãos não vão fazer nada com você. Eles nem vão querer e nem precisam. – ela explica e eu respiro fundo, tentando me confortar com o que ela disse.
Eu não sei quantos irmãos essa menina tem, mas se está no plural, está em vantagem, porque eu continuo no singular.
– E o que vocês estão procurando por aqui? É um lugar difícil de passar. Me arrependi de não ter dado a volta na cidade. Passar por metrópole nunca é uma boa escolha.
– A resistência. – ela responde e eu a encaro.
– O que?
– É uma colônia de pessoas sobreviventes, tá depois dessa cidade. Mas segundo o meu irmão mais velho a cidade é grande demais e seria difícil de passar, como você tá falando. – ela explica. Essa menina tinha uma ótima noção de localização.
– E cadê seus irmãos?
– Não sei. Nos separamos. Cada um foi para um lado. – ela explica.
– E aí você ficou presa...
– É. – ela responde, olhando ao redor. – Você mora aqui?
– Por enquanto sim. Vi que tinha uma horda grande se aproximando, estão migrando com quem está viajando, então preferi ficar aqui e esperar que ela passe e vá caçar quem tiver pra caçar. Não vou atrapalhar eles. – explico e ela sorri.
– Foi a que você atraiu para o outro lado da rua? – sorrio, negando com a cabeça.
– Não, aquele era um grupo apenas. Na horda contei uns 60, 70 talvez com uma margem e erro de 100 zumbis pra mais. – explico e ela parece entender.
– Tá brincando. – ela comenta e eu nego com a cabeça.
– Não. Eu não sei o número exato porque não tem como contar se eles não param de se mexer. – ela sorri, gargalhando um pouco. – Mas e aí, o que quer comigo?
– Basicamente? Que você me ajude a encontrar meus irmãos. Mas só se puder. Eu sei que o seu maior foco é sobreviver. – ela pede.
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