Um Aliado Importante

Bruce começou a me usar como boneco de instrução para curso de enfermagem para Amélia, que estava extremamente interessada em aprender a costurar pessoas e limpar feridas – e é claro que eu queria ajudar, mas espero que entendam que quando se tem alguém costurando sua carne, não é algo agradável, saudável e confortável de assistir. O fato, é que todas as vezes que parávamos, para que ele ou para que Kat limpasse meus machucados, ela estava ali, aprendendo.

Com isso continuamos nossa viagem e o tempo foi passando, até que chegou o ponto de que eu voltei a andar, porque a minha perna tinha desinchado – embora meu braço continuasse quebrado e se recuperando. Estávamos constantemente em um ambiente tranquilo, então eu pensei, ingenuamente, que a vida tinha dado uma trégua depois das nossas últimas perdas, o que acabou subitamente quando chegamos em mais uma cidade, pouco antes da entrada do Alabama.

Era uma cidade 20x menor do que a última que tínhamos passado, mais afastada de tudo – e isso me levou a acreditar que a concentração de pessoas ali era mínima – e com quase nenhum som de estalador intimidando nosso grupo. Continuamos andando por ela, tomando cuidado com qualquer movimentação que víssemos – e percebemos, inclusive, que por aí tinha até movimentação de alguns animais e aves, o que era raro no nosso cenário atual. Na divisão, Bruce e eu ficávamos mais para trás, para colocar fogo em tudo – já que eu tinha duas máscaras – e Kat, junto com Harry iam acompanhando o resto do grupo e fazendo a segurança deles com a besta.

Dessa vez, antes de entrarmos naquela cidade, Kat perguntou educadamente a Bruce se eles poderiam não se separar, pela proximidade que estavam do Alabama. Ela não tinha medo que algum tuberculum a atacasse, ela tinha medo que algum grupo de sobrevivente esbarrasse com eles ali – e acabasse roubando todo mundo. A realidade é simples: ninguém queria ficar longe de Bruce, porque ele era a melhor chance de todo mundo.

Ele atendeu o pedido dela, e a cada passo que dávamos o som ensurdecedor do silêncio nos acompanhava. Isso me incomodava, porque os piores ataques eram aqueles que você não podia prever, e quando um zumbi não produzia o som dos dentes batendo, ele não nos dava dimensão que ele estava perto. Acredito que entrar naquele lugar foi um dos momentos mais tensos que já passamos durante nossa viagem. A atmosfera era pesada, como se aquele lugar tivesse parado no tempo. Não existiam muitos prédios e os mais altos eram de hotéis, com no máximo 7 andares.

A atmosfera era pesada com casas desgastadas pelo tempo, como se tivessem sido devastadas por um furacão ou algo do tipo. Os prédios estavam caindo aos pedaços – literalmente – as janelas não tinham vidro, fazendo com que as cortinas saíssem para fora por conta do vento forte que assolava aquele lugar. Mais do que a aparência da cidade, o cheiro também era péssimo. Aposto que muitas pessoas tinham morrido e necrosado por ali, mas eu admito que não queria esbarrar com ninguém – nem vivo, muito menos morto – naquele lugar, porque eu não tinha dimensão de como iria reagir, já que estava totalmente coagido pelo frio na espinha que insistia em me acompanhar a cada passo por ali.

Como nossos enlatados estavam acabando, Harry deu a ideia de passarmos em um mercado da cidade – que estava com as portas estouradas, muito sangue espalhado por ali e uma aparência nada aconchegante – para tentarmos alguma coisa. Vale a pena dizer a vocês que eu nunca me importei com luxo. Não preciso de uma cama imensa, de um condomínio fechado ou de um lugar claramente luxuoso... mas não quer dizer que eu me sinta a vontade de entrar em um mercado claramente abandonado, com portas de vidro estouradas e muito sangue. Se ele pelo menos estivesse limpinho, sabe? Já seria ótimo, mas era incrível como tudo no mundo, de repente, parecia ser um péssimo lugar para entrar, porque parece um ótimo lugar para morrer. Resumindo: fui com eles, mas fui contrariado. Não queria ir ali.

Outra coisa eu tenho que atentar vocês é que: não é porque eu não falo sempre do sangue, que ele não estava por ali. Geralmente, quando eu ainda era um incendiário solitário, eu sempre andava de máscara por aí, e por causa da claridade do fogo eu mal conseguia me concentrar na quantidade de sangue que existiam pelas ruas, mas ele existia. E ele era tanto, que muitas vezes eu vi poças imensas de sangue seco pelo chão de alguns lugares, principalmente em lugares que antes, tinham uma concentração imensa de pessoas.

E naquele mercado tinha uma poça imensa, bem na porta – o que me fez ficar ainda mais preocupado. Ao lado da entrada, alguns urubus devoravam o que parecia ser um cara – então eu tratei logo de tampar o rosto de Amélia para que ela não visse aquilo, já que eu não queria que ela passasse mal ou sonhasse com aquela cena. Ela já tinha passado por coisa demais para permitir que ela visse mais uma chocante.

Como era perigoso deixar alguns na rua, Bruce pediu para que todos entrassem e esperassem na parte de frente do supermercado, enquanto ele, Harry e eu fazíamos uma ronda básica pelo local, para termos certeza que não tinha ninguém ali – por mim, no entanto, eu teria ficado na frente com as meninas, porque eu não me importava de ser considerado café com leite no grupo. Bom, até aí tudo bem. Fomos andando de passo em passo, cada um por um corredor do estabelecimento – eu fui pelo canto esquerdo, Bruce pelo meio e Harry pelo canto direito, na lateral dos freezers – com muito cuidado para que os cacos de vidro da porta estourada não cravassem nas nossas botas e fizessem ainda mais barulho, até que eu cheguei na parte de trás, onde tinha um banheiro e dei um empurrão leve na porta com o pé, vendo, ali, uma garotinha de cabelos escuros sentada, toda encolhida.

– B... – antes que eu chamasse Bruce, uma pancada na minha cabeça fez com que eu caísse no chão e não visse mais nada.

Acordei algum tempo depois, com umas pessoas conversando e abri os olhos rapidamente, tentando me localizar do local onde eu estava. Levei um susto ao perceber que a garotinha estava sentada do meu lado, e Bruce veio até mim, fazendo com que eu me distanciasse dele, com medo – porque eu estava totalmente confuso. Na minha cabeça, estar naquele lugar era uma loucura, principalmente porque eu tinha levado uma porrada na cabeça – era como se eles tivessem se aliado a quem me agrediu.

– Como você tá? – Bruce pergunta, passando o dorso da mão na minha testa, e eu tiro a mão dele de mim, olhando ao redor e percebendo que estávamos em algum prédio.

– Com dor. – reclamo, olhando nos olhos de Bruce em seguida. – Que lugar é esse? – ele sorri.

– Me desculpe pela porrada. – um rapaz se aproxima e eu o encaro, ainda mais assustado.

O cara era imenso, como Bruce. Tinha cabelos escuros cacheados, olhos imensos e azuis, com um tom de pele médio. Não era tão claro como Bruce, mas também não era preto, como eu. Ele vestia uma calça parecida com a de Bruce, e na parte de cima tinha apenas uma blusa de mangas curtas preta.

– Foi você? – pergunto a ele, que respira fundo.

– Calma, Dylan. – Bruce pede.

– Ele me desmaiou. – rebato pra ele, que concorda com a cabeça.

– Eu sei.

– E estão aqui batendo papo de mãos dadas como se eu fosse uma oferenda? – eles começam a rir.

– Ele é uma figura, entendo porque gosta dele. – o rapaz fala para Bruce, que concorda com a cabeça.

– Espera... – encaro Bruce, olhando pro cara ao lado dele em seguida. – Vocês se conhecem?

– É. Esse aqui é o Jean Smith, trabalhou na minha equipe em uma missão de 2070. Eu tinha 18 anos, e estava começando uma guerra meio fria entre Itália e Estados unidos dentro da Alemanha, que era onde ele e eu estávamos fazendo treinamento com a GSG9. Fomos enviados em uma missão extremamente importante e discreta, para impedirmos oficiais italianos de retornarem à Itália com informações que conseguiram na Alemanha. – Bruce começa a me explicar.

– Foi aí que você aprendeu a atirar tão bem? – Kat pergunta, se aproximando de nós e ele sorri.

– Não podíamos ser vistos com armas, então tivemos que nos passar por civis. – Bruce continua.

– Bruce, eu sei que você odeia essa história... – Jean tenta impedi-lo de continuar falando, mas ele não liga muito.

– Eu matei um homem com as minhas próprias mãos, enquanto eles andavam por uma da vielas de Berlim. – o rapaz fecha os olhos, como se ele se lembrasse do que Bruce estava falando e se senta com a gente. – O outro, eu empalei com um vergalhão que estava meio solto de um dos prédios. Não tem como esquecer essas cenas. – seguro a mão de Bruce, enquanto ele fala. – Foi a partir dessa missão que eu entendi que, quanto menos eu sentir amor pela vida humana, menos iria doer ser quem eu era. É por isso que hoje, quando alguém morre, eu não choro. Não é por medo de ser fraco, Dylan, é porque eu não sinto nada.

– Essa missão provou muita coisa pra mim, Bruce. – Jean comenta e Bruce o observa.

– Tipo? – ele pergunta.

– Que você, mesmo com todas as questões que já passamos em campo, jamais deixou algum dos seus companheiros morrer. É por isso que você é padrinho da Beatriz. Eu a confiaria a você de olhos fechados. – ele explica e eu entendo, naquele momento, que era um reencontro deles. Aparentemente a amizade desses dois era muito forte antes de tudo o que tinha acontecido.

– Não faria isso se fosse você, tive três baixas no meu grupo essa semana. – Bruce comenta.

– Eles estavam com você? – Jean questiona.

– Estavam. – Bruce responde.

– Não estavam. – Kat corrige Bruce, que olha pra ela. – Você avisou que não era uma boa ideia terminarmos de atravessar uma cidade grande juntos, mas Mattew não te ouviu. Desde a confusão no rio, ele estava com o ego inflamado e não quis te ouvir, e acabou pagando por isso, Bruce, mas a culpa não é sua. Se ele tivesse te ouvido, ele não teria morrido e Amélia não teria chorado. O ponto que catástrofe foi um, mas não foi sua liderança.

– Kat... – Bruce tenta se justificar, mas ela não para de falar.

– E várias pessoas que poderiam estar aqui hoje e estavam lá, apoiaram ele, como a Suzana, que disse que não tinha necessidade se separar sempre. E até mesmo o Harry, que está aqui hoje, mas aprendeu na marra que o soldado de campo é você, então você entende melhor as probabilidades de chances de sobreviver. Eu sei que você sentiu a morte do Mattew, mas a culpa não foi sua.

– Eu também tive baixa. As vezes as coisas saem de controle de uma forma que você não espera. – Jean explica, e Bruce segura a mão dele, apertando brevemente.

– Sinto muito pela Claire. – ele presta solidariedade ao amigo.

– Ao contrário do que aconteceu com você, a morte dela sim foi minha culpa. Se eu não tivesse jurado que nossa filha estaria bem, ela não teria morrido.

– Eu sinto que a morte do Mattew e deles é minha também, mesmo que eu não tivesse sido diretamente responsável. Eles eram a minha equipe, e eu deveria cuidar deles, como deveria ter cuidado dos outros que se foram antes deles. Cada morte que acontece pesa mais na minha liderança. – Bruce explica e eu penso um pouco, observando-o.

– É, mas isso aqui não é uma missão, Bruce. – Jean chama a minha atenção para ele, rebatendo o que Bruce tinha dito. – Aqui é vida real. E não são nossas equipes, são nossas famílias. A Amélia não nadou em um lago congelado, não levou um choque em banheira e não ficou 2 dias no deserto, em pé, sem comer, em nome do seu país para ser treinada para situações extremas. Eles não são a gente, não são soldados como nós... e os seus primos e familiares não são pessoas que foram treinadas para uma resistência. Eles levam as coisas com o sangue quente, pensamentos estarrecidos e choques constantes. Antes de toda essa catástrofe chegar, Bruce, sua irmã nunca tinha visto uma pessoa morrer. Seu primo nunca soube o que é e como fazer uma boa varredura de área e seus amigos aqui não sabem o que é manter concentração, sem aliviar a tensão. Eles não cresceram criados dentro de campo, não tem como exigir que eles se comportem como tal.

– Sua mulher trabalhava com o que? – pergunto a Jean, que sorri, provavelmente ao se lembrar.

– Ela era cantora. – ele me responde, olhando nos meus olhos com um olhar de saudade. – Tínhamos uma casa grande, uma vida confortável, mas eu não gostava.

– Da voz dela? – ele sorri.

– Não. Eu não gostava de ficar parado... acho que Bruce e eu sempre nos demos bem, desde o início porque entramos jovens e não queríamos ser como as pessoas da nossa família. Ele entrou com 16, eu entrei com 18, no mesmo ano e mesmo que a nossa maior aproximação tenha acontecido na Alemanha, antes disso os nossos nomes corriam juntos em qualquer equipe que estava sendo formada. Mas veja bem, os pais dele eram fazendeiros, não eram milionários, mas tinham uma boa condição e comida na mesa e a minha mulher já era riquíssima quando eu a conheci. Acontece que eu prezo muito o desconforto, a adrenalina, desde muito novo sempre fui apaixonado pelo mar... então eu a amava, mas o lado pacato da vida que ele queria nunca me chamou atenção.

– E aí vocês viam uma desgraça e iam de mãos dadas colocar mais lenha na fogueira? – eles começam a rir sem parar.

– É tipo isso. – ele me responde. – Bruce não podia ver um treinamento que provavelmente iria nos matar que ele olhava pra mim e me mandava um sinal de beleza rindo, como se dissesse "a gente vai, né?" – Bruce nega com a mão.

– Jamais. – ele responde, sorrindo e me olha nos olhos rapidamente, mordendo a boca, enquanto Jean não parava de falar. Era como se Bruce gostasse de me ver tão interessado nele, e por causa disso, ele não tirou mais seus olhos de mim.

– E aí, quando eu casei, ele me levou simplesmente pra pular de paraquedas, e me fez uma trolagem. Ele mandou o instrutor fingir que tinha quebrado a corda de puxar o paraquedas, assim que eu pulei do avião com ele. Eu vim de 4 mil metros de altura, até próximo do chão gritando. Eu pensava "esse filho da puta vai me matar um dia antes de eu me casar". – Bruce continua rindo, enquanto Jean conta, mas não tira os olhos de mim.

– Você que me deu essa intimidade. – ele responde a Jean, que confirma com a cabeça.

– É, eu que dei. – ele confirma, claramente fingindo estar com raiva. – Essa é a pior parte, porque é culpa minha mesmo e não tem o que fazer.

– Você me deu uma pancada boa. – sinto um pico de dor na cabeça, e coloco a mão nela, o que faz com que Bruce se aproxime mais de mim e se sente do meu lado.

– Eu tenho um analgésico, quer tomar? – ele me pergunta e eu nego.

– Foi mal por isso. Eu vi que você ia pra lá e pedi pra Beatriz ficar no banheiro, pra te derrubar. Não reconheci o Bruce, e os ladrões nessa área estão demais, então eu tive que defender ela. – ele me explica.

– Eles provavelmente estão tentando ir para o Alabama. – eles respiram fundo, coçando um pouco a cabeça. – O que foi?

– O que? – Bruce se faz de desentendido.

– Mudaram de comportamento quando falei do Alabama.

– É que eu estava vindo de lá quando vi vocês chegando na cidade. Mas eu não vi o Bruce, ele depois me explicou que estava mais atrás com você e tal...

– E por que não ficou com o grupo de sobreviventes e lá? – pergunto a Jean, já que aquela afirmativa dele não fazia sentido.

– Porque não tem.

– O que?

– Eles foram para Louisiana. Pelo menos é o que diz o aviso que eles deixaram no ex-acampamento.

– Pra quê?

– Eu consegui falar com o Hale, um dos nossos outros colegas, pelo rádio que eu guardei, e aparentemente Nova Orleans foi a primeira e única cidade que o governo fez uma limpeza lá no começo, porque era muito fechada.

– Ela tinha um fluxo menor de pessoas. – Bruce melhora um pouco a explicação.

– Isso. Pra eles foi mais fácil limpar Nova Orleans do que Nova Iorque, por exemplo. – Jean termina e eu penso um pouco.

– É só continuar descendo então. Não me agradava muito ir para o Alabama, de qualquer forma. – respondo e Bruce estranha.

– Mas você sempre ficou falando de ir pra lá...

– É, mas eu sou negro, né, Bruce. Acha mesmo que me agrada estado com histórico de confederado?

– Só mudou o endereço, porque Louisiana também é um estado ex-confederado. – Jean observa e eu dou de ombros.

– É. E nova Orleans é assombrada, mas mesmo assim me agrada mais ir pra lá.

– Desse tamanho tá preocupado com assombração? – Bruce questiona, com uma vozinha de sarcasmo que me incomoda.

– Tiveram muitas mortes lá. – explico a ele, que continua sem entender meu ponto.

– O mundo todo teve muitas mortes, mais de 90% da população mundial tá morta, Dylan. – ele explica e eu o encaro.

– É, mas lá tem vodu. – continuo explicando meus pontos e todo mundo começa a rir da minha discussão totalmente idiota com Bruce.

– Não acredito que você tá com medinho de fantasma.

– Fala sério, olha o cara não me levando a sério, Jean, vê se pode. – Bruce continua rindo, junto com todos que estavam ali.

– Vai se juntar a nós, não é? – Bruce pergunta a Jean, que o encara.

– Bruce, seu grupo já é grande demais.

– Jean... eu, com você, consigo chegar a qualquer lugar. E não é só isso. A Kat é uma ótima enfermeira, o Dylan tem uma mira excelente com a besta e o Harry... é o Harry. – Harry encara Bruce, sem acreditar naquilo, e todo mundo começa a rir da cara que ele fez. – Eu preciso de você.

– Se eu morrer, eu vou devorar você e enfiar a sua perna no seu cu. – Jean se levanta e Bruce sorri, vendo-o pegar o mapa do país que estava sobre uma mesa meio distante de nós. Eu não conseguia acreditar que íamos continuar andando.

Quando parece que eu finalmente vou poder deitar em um sofá e colocar minhas pernoca de senhor pra descansar, mais trabalho aparece pra fazer. No fim das contas eu só queria saber quando ia poder colocar minhas varizes imaginárias pra descansar.

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