VINTE E SEIS

“Quero trazer a memória o que me pode dar esperança” (Lamentações 3: 21).

Era noite de lua cheia e não tinha cânticos tradicionais animados, nem chocolate quente a beira da lareira ou mesmo uma mesa repleta de comidas gostosas e abraços de “feliz natal!”. Angelina relembrava o passado infantil sentada sobre uma tora de madeira em frente a uma pequena fogueira naquela noite natalina gélida e sombria. Ela ainda não havia acreditado que Gabriel Floyd havia falecido, apesar dele ter agido de modo indecoroso com ela, no tempo em que passara no vilarejo Scarborough Fair, nunca desejou-lhe a morte. Aquela semana havia sido dolorida e os dias passados de modo angustiante, principalmente, não se poderia deixar de compreender sua aflição aumentada acerca de Scott. Não teria ele também partido junto com os outros de seu pelotão? Por certo, não tinha a resposta se ele era de fato ou não do 24º pelotão. Oh, céus! A agonia lhe afligia noite e dia.

Feride chegou-se até onde a Srta. Jones estava. Com uma expressão curiosa, ela se aproximou e sentou-se, colocando os seus braços finos ao redor dos ombros de Angelina, e com um sorriso gentil, proclamou:

— Feliz natal!

Os olhos verdes da Srta. Jones ganharam uma luz de humor, diante da felicitação amorosa da cara colega de serviço.

— Feliz natal para você também. — Ela também abraçou a menina, e não deixou de pensar nos pais, ambos mortos; na Sra. Olivia Nagael, agora tão distante e, certamente, no noivo desaparecido, pois até mesmo o general Donald ainda não lhe havia dado as informações que prometera. Este que, desde o dia em que o encontrou, se afeiçoou a ela. Angelina acabou lhe servindo de enfermeira particular.

— Este dia deveria ser mais feliz, não acha? — indagou Feride dando um riso amargurado. — Que falta faz uma árvore enfeitada e comidas variadas para todos esses que estão aqui acamados. Cores, canto e histórias fazem bem, no entanto, o que temos é uma sopa rala de repolho e batata, e somente o som do vento. 

— Seria bom, de fato. — Angelina riu. — Mas o natal serve para renovar nossa esperança de que haverá um futuro realmente feliz, em Cristo. — Ela olhou para aquele céu negro e sem estrelas e proferiu: — Esperança de dias sem trevas.

Feride olhou para o firmamento e compreendeu Angelina. Nora, a terceira entre elas, também se juntou e acabou puxando uma canção com seu sotaque sulista, levando as outras duas também cantarem e o que era vazio e sem alegria, tornou-se em um belo ecoar de melodia. As três cantando seguiram para alimentar os doentes, aquece-los do frio, limpar as feridas e procurar aliviar a dor de uns. Alguns ouvindo a canção se animaram, outros choraram com saudades de casa, e outros de tão endurecidos pela rigidez da vida desprezaram a música. Aquelas três mulheres procuravam sempre incentivá-los a uma boa autoestima, relembrando-os dos dias alegres a fim de terem forças para enfrentarem os tempos difíceis. Essa fora a estratégia da Srta, Jones para a si mesma ajudar e prosseguir em dias de tribulações e aplicar aos seus enfermos para não sucumbirem a tristeza e exaustão da vida.

— Srta. Angelina Jones — uma voz grave ressoou pela tenda e as três mulheres viraram-se para ver quem chamava.

Angelina reconheceu o homem, Ed Clarke, o major, amigo do general Donald Foster. Este logo no início não obteve boa opinião acerca dela, não podia negar que a viu com maus olhos desde que a encontrou a sós com o general, porém, observou que a amizade entre os dois era verdadeira e a senhorita nada desejava além da saúde de seu velho amigo, atribuindo desde então um bom parecer a pessoa e comportamento da Srta. Jones.

— Major Clarke, o que deseja? O general teve uma piora no seu estado de saúde? — ela demonstrou-se aflita de repente.

— É certo que não, senhorita. Mas ele deseja vê-la esta noite — disse ele, e em seguida olhou para Feride, levando-a desviar o olhar, envergonhada. — Eu irei acompanhá-la.

— Feride e Nora, cuidem de tudo para mim, logo voltarei.

Ambas assentiram enquanto observavam Angelina afastar-se junto com o Major, que não deixou de mirar a jovem Feride mais uma vez.

A Srta. Jones seguiu para a tenda do general, encontrando-o deitado e devidamente agasalhado. Perto dele tinha uma pequena mesa com as iguarias: presunto, ovos, cenouras cozidas, uma jarra de leite quente, geleia de mirtilo, torradas e até um bolo de fruta. Naquelas condições, alimentos como aqueles eram considerados luxos que poucos podiam usufruir.

— Angelina, minha jovem, a chamei aqui para desfrutar com você dessa refeição. — Os olhos do general brilharam ao vê-la, naturalmente, ele criara um sentimento paternal em relação a ela. 

— Ele se recusou a comer até traze-la — Ed Clarke exprimiu com sua voz totalmente firme, o que representava perfeitamente bem seu comportamento estoico.

— Ora, senhor, sinto-me honrada com isso. Porém, não me é de total apreço está aqui enquanto minhas duas colegas comem nesta noite apenas um caldo de repolho e batata.

— Oh, é claro que não! Não se preocupe que um dos soldados levará comida para elas duas. — o general disse, enfaticamente. — Você sempre com seu coração generoso, Srta. Jones!

— Eu posso levar, senhor. — Intrometeu-se o major, tornando-se totalmente favorável em andar uns metros naquela noite terrivelmente gélida somente para carregar um prato de comida para duas voluntárias, o que certamente gerou curiosidade no general, pois conhecia bem o amigo para saber que algo teria acontecido.

— Diga-me, Angelina, suas colegas são belas?

Angelina sentiu o rosto inundado por um rubor quente, naturalmente, não esperava uma indagação daquela relevância. Tossiu um pouco a fim de desprender as palavras da garganta.

— Considero as duas bonitas, general — ela respondeu e viu um sorriso no canto dos lábios do velho homem.

— Elas são solteiras? — Angelina buscou na face do major algum traço de vergonha pelas perguntas nada polidas do general Foster, mas tudo que logrou fora vê-lo realmente atento a sua resposta.

— Somente Feride que tem 18 anos, pois Nora é noiva de um estudante de medicina na Capital. — Ela entendeu perfeitamente as intenções do major assim que constatou um sorriso bem sutil nos lábios do homem rústico.

— Srta. Jones, será que sua amiga aceitaria um oficial de 35 anos e tão honrado quanto meu caro amigo, Ed Clarke — o general sorriu amigavelmente. — Ele precisa de uma esposa cuidadosa e doce, e ela teria em troca um homem corajoso, firme e leal sempre ao seu lado.

Angelina tornou-se incrédula por um momento acerca daquele assunto. De fato, nunca percebera qualquer inclinação do major em relação à Feride, notavelmente, sua mente iluminou-se reconhecendo que ele não precisava sempre buscá-la, outro era perfeitamente capaz de fazer tal serviço, contudo, as intenções do major de sempre ir a sua tenda estavam realmente claras agora: Era por Feride esse tempo todo. Ela riu reconhecendo que seu poder de percepção era fraquíssimo.

— Não sei, senhor Foster — ela disse com sinceridade. — Mas o major não perde em tentar conquistá-la, se me permitem dizer: ela será uma excelente companheira a qualquer homem. — Fitou o Sr. Clarke e declarou: — Acredito que ela teria sorte em tê-lo por esposo.

— Não perca mais tempo, homem, e vá! — O general quase expulsou o amigo para fora da tenda, incentivando-o a conquistar a mulher que enfim lhe chamara atenção.

O coração de Angelina regozijou-se por saber que Feride poderia ter encontrado o amor. E quem diria que seria em meio aos destroços de uma guerra? Ela e o general viram o homem partir apressadamente, e tendo conhecimento de que Ed Clarke nunca se casou. A desculpa era dada por motivos do trabalho, porém, Feride o chamou tanto a atenção que ele estava disposto a deixar mais os militares de lado e investir em uma relação marital. Angelina ouvira a exposição dos fatos aproveitando daquela preciosa refeição. Há horas atrás nem esperança de comida melhor e agora desfrutara de uma boa comida, realmente Deus realiza seus milagres em qualquer lugar.

— Agradeço imensamente por isso, Sr. Foster.

— Tenho um presente para você, querida Angelina. — Ela crispou os olhos, e ele tirou de dentro do casaco um papel, entregando-a em seguida.

Ela o tomou na mão, abriu e leu: “Nathan Scott do 25º pelotão está na fronteira.” Nem se poderia descrever os mistos de sentimentos e emoções vívidos por Angelina naquele precioso momento. Oh, céus! Ela queria gritar aos quatro vento a graça e fidelidade do Deus Vivo. Certamente nenhum outro presente era melhor ou maior do que aquelas poucas palavras que calaram a aflição de sua alma. Sim, o natal era de fato um dia para se ter esperança.

— Sr. Foster, sua vida é uma benção de Cristo para mim. — Ela, sem esperar ser indelicada, o abraçou fortemente como uma filha abraça o pai e chorou nos ombros do caro senhor, que não se importou em tê-la ali. Sendo que aquela ação serviu para gerar sentimentos, uma vez esquecidos, no coração de Donald Foster.

— Cristo esqueceu-se de mim há tempos, Srta. Jones, mas alegro-me em ser um portador de boas notícias para você.
Ela levantou a cabeça do ombro dele e apertou os olhos vermelhos, querendo compreender melhor as palavras ditas pelo general.

— Por que pensa que Cristo o abandonou, senhor? Ele nunca desampara nenhum dos seus filhos.

Ele sorriu de leve.

— Então eu não era um de seus filhos — declarou sem emoção.

— Não entendo, perdoe-me.

Donald Foster não gostaria de remexer no passado, era doloroso demais. No entanto, sentia como Angelina lhe fosse um presente e poderia se abrir como há anos não o fez.

— Eu tinha uma esposa, minha querida Elisabeth; e uma filha, a esperta Jessie. Elas eram o amor da minha vida inteira. Porém, as duas adoeceram quase que juntas e morreram em diferença de poucos dias de tuberculose.

Angelina abaixou a cabeça sentindo o pesar nas palavras do general.

— Eu estava longe e quando cheguei nem pude me despedir, pois os criados precisaram enterrá-las às pressas por causa da contaminação. Eu tinha orado e pedido de Deus ajuda, mas ele não me auxiliou no momento em que mais precisei. — Donald expressava o ressentimento e a ofensa que tinha para com Deus. — Assim como Ele me abandonou, eu também o fiz.

— O senhor acha que a vontade de Deus não era boa?

— Qual era a necessidade de levar minha esposa e filha embora? Somente me fazer sofrer?

Há muito tempo Angelina questionou a Deus sobre o porquê ela precisava passar por aquelas tribulações com sua mãe, certamente, carregou por um bom tempo ressentimentos com relação ao ser Divino, pois não achava que precisava viver aquilo. Não era justo! Mas de tanto meditar obteve sua resposta.

— Perdoe-me, general, mas permita-me perguntar: o senhor é melhor que o Apostolo Paulo, Pedro ou qualquer um dos outros? — Ela sentou-se mais perto dele e mirou-o profundamente.

— É certo que não! — o velho homem franziu o cenho com aquela pergunta.

— Deus os poupou de tribulação?

— Não.

— Há muito tempo aprendi que não sou uma filha “especial” de Deus para receber um tratamento diferenciado. Se todos sofreram, até os mais santos e muitas vezes de modo pior, por que eu não? Como disse Jó: “Receberíamos o bem de Deus, e não receberíamos o mal?” — Angelina respirou fundo, relembrando o dia em que aprendera aquela preciosa lição. — Somos pecadores e há muito em nós para ser purificado, e as tribulações servem para esse propósito: testar o valor da minha fé. Ela é forte e vigorosa, ou fraca e doente?

O general sentia no âmago aquelas palavras, como se fossem um martelo.

— Se Deus me faz sofrer e passar por terríveis aflições é porque ele quer trabalhar no meu caráter. Quer me ensinar lições que eu nunca aprenderia no conforto da minha cama e sem as tempestades da vida. — Ela esfregou uma mão na outra e suspirou: — Minha jornada nesta terra é para ser mais parecida com Jesus, e o Pai fará isso através das dores. Elas são dadas a nós para nos santificar e nos tornar mais parecidos com os cidadãos do Céu.

Houve uma grande comoção dentro do general. De repente, como se uma luz profunda brilhasse no seu interior, trazendo-lhe entendimento do quanto perdeu por não aceitar as lições daquela aflição. Ele precisava mudar? Como necessitava. Quantas vezes partiu deixando sua família para trás em favor do exército? Quantas vezes não teve compaixão pelo bem-estar de sua família? Talvez aquela fornalha fosse realmente o que precisava para olhar para dentro de si e perceber que não era o homem tão bom e moralista quanto achava que era. Sua fé era falha, um cristão medíocre e só de palavras; um marido que não compartilhava das coisas comum do lar e nem se importava muito com as necessidades da esposa; um pai ausente, que pouco conversou com a filha; contudo, não aceitaria perder sua aparência de homem honrado. Ele se recusava a enxergar o estado podre de sua alma, e não achou justo Deus se “intrometer” assim, mostrando o que ele de fato era: um pecador miserável. Aquela era uma oportunidade para se arrepender e realmente ser um homem novo, contudo, se ofendeu com o Senhor. Mas ali estava ele de novo e, dessa vez, tendo a verdade bem estampada em sua face.

“Meu filho, não desprezes a correção do Senhor, nem te espantes de que ele te repreenda porque o Senhor castiga aquele a quem, e pune o filho a quem muito estima”. (Pv 3: 11.12).

Angelina recitou aquele versículo, desprendendo as correntes de arrependimento da alma de Donald Foster. Aquele senso de ser um condenado caminhando a largos passos para o inferno o encheu de desespero, porém lembrou que Cristo era o remédio para sua terrível aflição, dizendo por seus lábios: “Oh, pai, perdoe-me por tão grandes pecados!” Ela segurou a mão dele e orou. 

*

O sol brilhou como há muitos dias não se via, Angelina respirou fundo ao senti-lo e deixou seu rosto ser banhado pela luz solar. Ela entrou na tenda para preparar o líquido fumegante que daria aos doentes daqui a pouco tempo, no entanto, foi abordada pelo major Ed Clarke, o homem carregava uma fisionomia fria e sem emoção.

— Srta. Jones, tenho duas notícias para lhe entregar. — Ela sentiu o tratamento inóspito dele.

— O que seria, Major? — Seu coração fechou-se diante do que poderia ouvir.

Ele não era um ser sem sentimentos, então foi tomado por uma angústia ao pronunciar tal informação:

— O general Donald Foster faleceu enquanto dormia na noite passada; e o 25º pelotão fora tomado pelos inimigos há dois dias, e a notícia só nos chegou nesta madrugada. Eu sinto muito. — Ed escolheu o conjunto de palavras mais simples e objetivas.

As mãos de Angelina caíram ao redor do corpo e as pernas fraquejaram. Sua memória a fez reviver novamente um dia com sua mãe, ela lhe dissera:

“Há dias em que parece que as trevas vieram para ficar e não há esperança de luz”.

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