BANSHEE

Sabemos que o mundo se encontra em constante ebulição, mudanças e globalização. Se analisarmos, apenas nos últimos seis meses, as mudanças tecnológicas que aconteceram, são maiores das que ocorreram em todo ano anterior.

Se formos levantar essas mudanças, comparando-as com as do século passado, passaríamos uma semana, vinte e quatro horas por dia, sem intervalos para descansos, e mesmo assim não chegaríamos a listar todos os avanços ocorridos.

         Porém, nadando contra a natureza... o que se achava que diminuiria, mas não aconteceu, foi a crença no sobrenatural.

         Muitos especialistas acreditaram que com os avanços das modernidades tecnológicas na sociedade, as crenças nas supostas superstições deixariam de fazer parte do imaginário popular, e que acabariam sendo totalmente enterradas.

         Mas, o que eles esqueceram é que quase todas as supostas superstições, vieram do chão e já haviam sido enterradas, não somente em baixo do solo, mas, nas almas das pessoas. Verdades passadas entre gerações.

         Outra coisa que não se contava, era que a maioria dos espíritos gostavam e gostam de serem filmados. Ou mesmo de fazerem uma entrada triunfal, num recinto incrédulo.

         Nos últimos vinte anos, aumentou consideravelmente aparições legítimas do sobrenatural. Em toda internet, pessoas de todo o mundo viram ou veem o mundo espiritual. Algumas vezes sonham. Outras vezes escutam... talvez, em nenhuma outra época, nunca os cinco sentidos dos seres humanos foram tão estimulados pelo sobrenatural, quanto nos tempos atuais.

         Em outros casos, os espíritos bons ou maus entram nas pessoas, as fazendo de seus receptáculos ou moradia, como nos casos das possessões. Você acredita mesmo que pessoas leigas, muitas vezes analfabetas, possam falar no latim medieval por autossugestão?

         Eu sei que você já foi para um funeral. Eu sei também que em determinado momento, nesse funeral, você percebeu que havia alguém que não era parente do finado que chorava copiosamente, para logo em seguida sumir após o término da cerimônia.

         Sei inclusive, que você só percebeu a tal fulana no local, porque o choro dela era lamurioso, constante e convincente no pranto.

         Porém, como aconteceu na maioria dos casos, as pessoas disseram para você que não a conhecia, mas, a verdade é que elas não estavam vendo a Banshee, um espírito familiar. Falaram isso para não parecerem estranhas ou desatentas ao funeral.

         Mas, se você a viu... das duas uma, ou é um consagrado ou será o próximo a morrer. O conselho que dou é contar as vezes que ela começou o choro com a voz alta.

         Por que? Simples, para cada início desse choro, conte um dia a menos de vida. Se você tem vinte e cinco anos, e contou vinte e cinco... foi bom ter te conhecido. Mas, se não bateu com a sua idade não comemore ainda.

         A Banshee vai aparecer para você, dando o nome da pessoa que precisará ser avisada da sua morte... caso não faça isso, não preciso dizer quem vai no lugar da pessoa.

         Bem, meu nome é Carlos Henrique Loreto de Menezes, e não acreditava em nada disso, até o dia que aconteceu comigo.

Monte Patchow – Aldeia de Niillis – Irlanda

— Você acredita em espíritos familiares? Ou nos espíritos agourentos? Possessão demoníaca, talvez? Eu sei que você já foi a um funeral e viu uma mulher chorando pelo defunto, mesmo que nunca a tenha visto antes, não foi mesmo? — Raphael O'Neills nada diz. O silêncio crava-lhe a língua. Seus pelos dos braços estão em pé... ouriçados... os seus olhos estão cravados nos do velho. — É meu jovem, você é um "Consagrado"... infelizmente não tem o que comemorar. Sinto muito. — O mestre druida Ulmar, e Raphael estão sentados numa imensa rocha, olhando para a aldeia, logo a baixo deles.

— Eu não acreditava em nada disso, até vê-la no funeral de meu tio. — O rapaz comenta olhando para o ancião.

— E como ela era? Jovem ou velha?

— Nem uma coisa nem outra. Aparentava uns quarenta anos. A pele era branca igual a neve que cai em nossos campos. — O ancião sorri para o rapaz e começa a falar abrindo um livro velho, feito de couro, com um símbolo místico que lembra a letra "Pi".

— A sua família é uma das cinco que existem na Irlanda, que recebem a vista de espíritos familiares, que predizem tragédias.

— Então somos cinco famílias. Quais são as outras?

— Famílias? — Ulmar retorna a pergunta apenas para ver o nível de concentração do garoto.

— Sim! Quais são as outras famílias? — O mestre ancião, firmado em seu cajado, levanta-se da rocha e faz um gesto com a mão, ordenando que o rapaz faça o mesmo.

— Isso é um dos segredos que você deve levar para o túmulo!

— Caramba! Quanto exagero mestre Ulmar! — Os dois começam a trilhar o caminho de volta.

— Você acha isso? Um exagero? Então me diga uma coisa, se a Irlanda for invadida pelos cristãos, sua família vai parar aonde?

— Numa fogueira.

— Olha quanta perspicácia... parabéns, neófito. — Raphael O'Neills percebe a ironia na voz do mestre druida. — Vivemos em tempos perigosos. Onde o desconhecido é tratado como aberração, meu caro. — Depois de pararem em baixo de uma árvore, Ulmar continua: — O'Neills, O'Briens, O'Connors e os O'Gradys. São essas as famílias.

— Obrigado.

— Não precisa me agradecer. A minha função é transmitir ensinamentos para você, um Consagrado. Olhe agora para o céu. — O adolescente obedece, olhando para cima — Embora hoje seja de chuva, o dia permanece claro. As nuvens cinzentas continuam lá... mostrando que a chuva pode cair, mas, o dia continua sendo dia. Você tem uma moeda no bolso?

— Sim, tenho. — Raphael caça uma moeda em seu bolso e entrega para Ulmar.

— Temos dois lados para a mesma moeda. A mesma coisa é a vida. — O mestre olha para o neófito — Momentos bons e momentos maus. A noite e o dia. A chuva e o sol. O nascer e o morrer. Tudo pertence a um todo. No reino feérico, temos as Fadas e a sua forma mais obscura... que são as Banshees.

— Então... o que vi no funeral do meu tio foi mesmo uma Banshee?

— Elas sempre aparecem após a morte que predisse... para lamentar... e não me olhe assim, seu tio com certeza recebeu o aviso que morreria. Você se lembra quantas vezes ela lamentou?

— Não sei. Isso era importante?

— Se não deu quinze lamentações, pelo menos não será você o próximo a morrer.

— Então é muito importante! — Raphael, engole seco — Na próxima, não esqueço de contar.

— E como sabe que não foram quinze vezes? O choro? — O adolescente responde com um sorriso meia boca:

— Por que ela chorou os sete dias do funeral. — Ulmar olha surpreso para Raphael — Meu tio era um Lorde.

— Sim. Verdade! Um dos melhores. Homem justo e sábio. Foram cem anos bem vividos. A minha memória está falhando. Mas, lembre-se que o tempo do funeral, não indica que houveram muitos lamentos ou não. — O neófito suspira e diz:

— Ele morreu dormindo.

— O sono dos justos. Neófito Raphael, hoje ficamos por aqui.

— Ela tem nome? — O ancião brinca com os cabelos pretos e lisos do neófito.

— Sim! Todas têm nomes! No momento certo, ela vai aparecer para você e dizer seu nome. — O ancião segue para sua cabana feita de pedra e madeira, que tem um altar druida de um metro de quarenta, bem na frente da casa.

          A estrada que sai do Monte Patchow, sentido a aldeia onde Raphael mora tem árvores de todos os lados. O caminho é de barro e como o período é chuvoso, o lamaçal o segue por todo o caminho.

          No lado esquerdo do rapaz, o verde fica mais alto devido ao morro que se estende por todo local. Porém, do lado direito, alterna entre desfiladeiros e vegetação. A erosão, vem castigando muito o local, somado aos deslizamentos provocados nos períodos de chuva abundante.

          A aldeia é simples, mas, farta. A agricultura e o comercio equino são as principais fontes de renda do local. As casas são de madeiras, com duas estruturas em suas totalidades, que servem para a proteção contra a chuva fria, ou o inverno rigoroso com neve.

         Na Aldeia de Niillis, são quase cinco mil habitantes, tendo os Lordes, que pertencem as cinco famílias citadas por Ulmar, como suas principais lideranças.

         Raphael entra na rua da sua casa. Passa por duas cocheiras, a chuva volta a se intensificar. O adolescente de quinze anos, levanta mais a gola do sobretudo preto para cobrir sua cabeça.

— Cheguei.

— E como foi seu primeiro dia com o mestre Ulmar? — Pergunta Nyrlana, mãe do neófito.

— Foi cansativo. Muita informação. Ele fala demais.

— Comigo foi da mesma forma. — Ela fala sorrindo. — E qual a sensação de sentir-se como o próximo Consagrado?

— Ainda não parei para refletir. Mãe, estou sem fome. Posso ir para meu quarto? — Nyrlana, aproxima-se do filho e beija-lhe a testa.

— Claro meu amor. Vá descansar... sua vida está apenas começando. Falou com Claire O'Gradys? Ela esteve aqui perguntando por você.

— Amanhã falo com ela.

— Eu faço muito gosto do namoro de vocês.

— Eu também faço muito gosto, mãe. — Os dois sorriem.

— Se seu pai, se estivesse vivo, também a aprovaria.

         Raphael, ao entrar no quarto acende a lamparina com óleo de baleia. E devido ao frio castigante, trazido pelas fortes chuvas, ele deita-se com toda a roupa. Deixando apenas os pés calçados fora da cama.

         Olhando para fora da janela, Raphael dorme vendo os raios que cruzam os céus, iluminando a noite. Porém, escuta um forte estrondo. Jogando os pés para o alto, levanta-se rápido da cama e olha para janela em tempo de ver uma árvore pegando fogo.

         Ele coça os olhos. Algo se mexe dentro do fogo que consome a árvore.

— Uma mulher? Ela estava descansando na árvore? — Antes que o adolescente possa sair correndo para ajudar a mulher em chamas, ele escuta uma voz atrás de si.

— Fique. — Raphael, vira-se e não vê ninguém. Assustado, volta a caminhar apressadamente para a porta, quando escuta: — Não vá, fique.

         O adolescente, volta para frente da janela e recua sua cabeça assustado. A mulher começa a sair de dentro do fogo. Ele ainda não sabe se é impressão, por causa do fogo dançando pelo corpo da estranha, ou se de fato a mulher está usando um vestido vermelho.

         Raphael, a percebe sorrindo para ele com seus olhos em chamas. E tem vontade de correr ao vê-la caminhando na direção seu quarto.

         Porém, não sabendo se devido a curiosidade ou pelo medo, não arreda o pé do lugar. A mulher careca começa a subir pela estrutura da casa caminhando.

— Posso entrar? — Ela pergunta parada na frente da janela, com seus olhos vivos perscrutando o quarto.

— S-sim. — A mulher passa pela madeira como se fosse um fantasma. Raphael, arreia seu corpo na cama. Suas pernas foram vencidas pelo medo.

         O rosto da visitante é afilado. Nariz levemente pontiagudo e dentes afiados, embora sejam brancos. Os lábios volumosos e convidativos, pergunta:

— Sabe quem sou eu?

— Você é a minha Banshee?

— Não sou sua, mas sim... sou uma Banshee. Você sabe o que faço?

— Prediz as mortes das pessoas? — Ela gargalha e diz:

— O velho ainda não terminou a catequese. Mas, em parte sim. Na verdade, somos as mensageiras da morte... e quando nossa mensagem é ouvida, a morte vem. Ou, uma tragédia acontece.

— Como você se tornou uma Banshee?

— Eu era contratada para chorar nos enterros, e num certo dia fui assassinada pelo meu amante. O desgraçado era casado, e como estava grávida dele — A Banshee suspira —, matou-nos enquanto dormia.

— Meus sentimentos... não sei se devo falar assim.

— Obrigado. E falando assim, só mostra quão doce é sua alma. E isso me faz pensar, se de fato vai ter colhões para ser meu Consagrado. — Raphael, franze o cenho. — Diferente de você, eu não estou ligada a nenhum mortal, apenas falo a mensagem que precisa ser ouvida.

— Acharam seu... — O adolescente meche as mãos sem saber como terminar.

— Foi a primeira coisa que fiz. Garoto, o dom da visão traz uma maldição, que é o peso da presciência. Saber e avisar às pessoas que você ama, que a vida dela será finda, não é para qualquer um.

— Eu aceito o fardo.

— Não responda antes que termine. Sempre que um ascende a Consagrado, outro descende. Não existem dois nas famílias. — Raphael, pensa um pouco e lembra da honra que traz à família ter um Consagrado.

— Sim, eu aceito.

— Ótimo.

— Qual o seu nome?

— Eu me chamo Magnólia, Raphael O'Neills. — Uma faca sai de dentro da mão direita da Banshee, e com a mão esquerda pede a mão inversa do adolescente. — Vamos firmar nosso trato. — Com uma rapidez impressionante, a Banshee corta a palma da mão de Raphael e diz: — A minha voz será tua até os fins dos meus dias. Não existirão obstáculos, mau tempo ou fadiga que me impeçam de levar a mensagem que precisa ser ouvida, e pagarei com minha vida quando não obedecer ao chamado. Agora repita o que disse. — Raphael repete. Magnólia encurva seu corpo para frente e fala ao ouvido do neófito.

         O menino arregala os olhos acordando. Olhando pela janela, vê a árvore inteira. Suspirando aliviado, entende que foi apenas um pesadelo. Raphael, se levanta e vai até seu guarda-roupa de madeira, ao pegar a toalha sente dores na palma da mão.

— Não foi um sonho. — Como uma enxurrada, tudo volta à lembrança, e novamente sentindo as pernas fraquejarem, cai sentado na cama e leva as mãos na cabeça.

         O cheiro da comida desperta sua fome. Nyrlana, sua mãe, grita chamando-o pelos dois nomes, para almoçar. Ainda sem tomar banho, o adolescente suspira e desce.

— Dormiu bem?

— Sim.

— Não sei porquê... mas tenho a impressão que alguém está mentindo. — Nyrlana coloca na mesa o milho cozido e a carne guisada. — Eu fiz seu prato favorito.

— Obrigado mãe. — Sentando de frente para seu rebento, Nyrlana acaricia o rosto do filho e ele diz — Eu tive um sonho — A mãe vai servindo o filho —, com uma mulher.

— Hum... uma mulher.

— Sonhei com a Banshee. — O filho fala olhando para o milho. A mãe sorri e acaricia o rosto do filho.

— Meu filho, não tenha medo de entregar a mensagem. Eu sei que o fardo é grande... pesado... e sempre a primeira vez é a mais difícil. — O menino joga o prato para o lado e abraça sua mãe perguntando:

— Eu serei feliz? — A mãe entendendo o amago da pergunta e responde:

— Sim! Tenho certeza que sim! — Ela coloca a mão na cabeça dele, e como seu pai fez, ela repete o que lhe foi dito no passado:

— Não importa quantos sejam os seus dias sobre a terra, em todos eles nunca te faltará um sorriso. Bendito serás mesmo sendo um portador de agruras, e da tua descendência sempre sairá um renovo. — Os olhos da mãe marejam de felicidade. Raphael, a baixa sua cabeça, volta para seu lugar, retoma o café e chora de tristeza. — O que Magnólia disse? — O menino ao escutar a pergunta feita pela sua mãe, larga o garfo e a faca, olha para ela, suspira e diz a mensagem que precisa ser ouvida.

FIM

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