Carência de Distância

— Você pode dormir no meu quarto…

Até pensei que fosse brincadeira. Até pensei em elogiá-lo pela sua capacidade de expressar algum senso de humor em meio à tanta exaustão. 

Ainda forçando meus olhos a continuarem abertos e meu cérebro a não apagar de vez, analisei o garoto alto parado à minha frente. Ele segurava uma das alças da mochila que eu havia deixado na sala de espera. Suas pálpebras fundas se descaíam e, assim como eu, lutavam para se reerguerem; sua pele brilhava como se tivesse sido enxaguada com óleo. Mesmo seus cabelos lisos estavam mortos. Não havia sorriso em seus lábios.

— Que ideia… — refutei. Minha voz tão abafada que se não fosse pelo silêncio da madrugada, jamais seria ouvida. Me inclinei para trás sem receios, até minhas costas se chocarem de leve contra o balcão da recepção. — Vou procurar um quarto no hotel mais próximo. Mas preciso que o senhor vá comigo — disse ao manager, que esfregava os olhos com as mãos fechadas, ao mesmo tempo que sua boca se abria até não poder mais, por conta dum bocejo.

Aigoo... Estou tão cansado… Nem quero pensar que vou dormir por menos de três horas... Aigoo… — Bocejou por uma segunda vez.

— Eu disse… — o outro insistiu e teve as palavras interrompidas também por conta do longo bocejo contagioso invadindo-o sem permissão. — É só hoje — falou afadigado, a voz dividindo espaço com o ar que saía de sua garganta, tornando a pronúncia das palavras um tanto que confusas e sonolentas. — Tenho certeza de que amanhã terá um quarto novo, só esperando por você. — Desviou os olhos murchos ao gerente, que logo tratou de concordar com a cabeça.

— Já imaginou a confusão que seria se essa informação vazasse? — Desencostei do balcão, simultaneamente cruzando os braços, encarando-o.

— Não ficaria bem vocês dois… — O manager estendeu seus dedos indicadores, deixando-os próximos, lado a lado. — Juntos, na mesma cama… Ana-ssi, pegue um edredom extra e apenas durma no chão.

Suspirei, desviando o olhar para qualquer lugar longe daquela situação.

— Bem, é isso, ou o senhor ir com ela procurar um quarto disponível em algum outro hotel por aí… — O garoto elevou as duas mãos abertas ao topo da cabeça, esticando os cabelos com certa força para trás. — As horas de sono vão diminuir mais ainda…

Meu corpo estava entorpecido e os pensamentos lentos, mas estava pronta para rebater àquela ideia. Porém, o manager foi bem mais rápido: tomou impulso e se aproximou do balcão. Apoiou firme as duas mãos sobre o mesmo e esticou o rosto para perto do gerente. Inclusive achei que ele o puxaria pelo colarinho da camisa.

— Por causa da sua negligência, esse garoto terá que dividir o quarto com a tradutora da equipe — disse em inglês e seu tom ameaçador assustou até a mim. — É melhor que ninguém fique sabendo disso, afinal, acredito que o senhor não queira sofrer as consequências do seu erro. Ou quer?

⚫⚫⚫

Saí do banheiro. Ao abrir a porta, o vapor congestionado no pequeno cômodo esvaeceu para fora, se chocando com o ambiente fresco do quarto. Minha pele se arrepiou pela mudança repentina de temperatura.

A cama estava pronta, dois travesseiros, dois cobertores. Na sacada à direita, uma porta transparente fazia divisão junto às cortinas abertas que se moviam suavemente por consequência da leve brisa que soprava por ali. Do lado de fora, ele apoiava o braço no parapeito e os olhos nas estrelas.

— Já saiu?

— Você podia fechar a porta, está frio… — Sentei na beirada da cama alta, e uma gota morna escorria pelas costas. — E você, não vai tomar banho? — resolvi perguntar, pois ele estava parado à minha frente sem nada dizer e o vento, ainda com passagem livre pela porta escancarada.

— Ah! — Sorriu fraco e não fixava o olhar, como se me evitasse. Pegou roupas na mala e entrou rápido no banheiro.

Só depois de um tempo entendi o motivo. Agindo no piloto automático, não lembrei de me vestir; saí de qualquer jeito, envolvida numa toalha, como se a situação não estivesse desconfortável o bastante.

Deslizei as portas, fechei as cortinas. Entrei o mais rápido que pude no pijama mais tampado que tinha. Peguei um dos edredons, um dos travesseiros e fui para uma poltrona espaçosa que havia no quarto.

Kim Nam Joon saiu do banheiro um pouco depois, secando o cabelo com uma toalha, vestido em um conjunto moletom escuro.

— Ana-ssi, vai mesmo dormir aí?

— Não, vou obedecer o seu maenijonim e dormir no chão.

— Você foi irônica…? Aish, é sério. Para com isso e vai dormir na cama.

— Claro que não. Você tem uma turnê para fazer. Como acha que as suas costas vão estar amanhã depois de dormir aqui? 

— Quem disse que vou dormir aí?

— Vai pro chão? Seria pior ainda.

Aigoo… — Suspirou. — Ana, quatro pessoas dormiriam ali confortavelmente. — Apontou para a cama.

— Sei… — Arrumei o travesseiro como pude, encolhi as pernas sobre o estofado e logo estava dormindo profundamente.

— Ana… Ana…? — seu sussurro foi tomando força e ganhando volume à medida que eu acordava. — Está dormindo? — Sua mão deslizou pelo meu braço, subiu à partir do pulso e ao alcançar o ombro, contornou minha clavícula, escorregando rumo ao pescoço. — Ana… — Um aperto tomou conta da  boca do estômago quando meu nome foi cochichado, com lábios triscando em minha orelha e o hálito quente causando cócegas.

— O que foi? — virei ao perguntar, me surpreendendo com a carência de distância que havia entre nossos corpos estirados sobre a cama.

— Me beija.

Antes que meu cérebro pudesse processar o significado daquelas palavras, Kim Nam Joon me beijou.

Fechei os olhos como se estivesse adormecendo, tomada pelo sono. E quando tudo ficou escuro, as sensações daquele toque se escureceram junto. Meus lábios se anestesiaram, não mais conseguia senti-lo ser tocado. Não conseguia abrir os olhos para vê-lo. E dentro da escuridão dos meus olhos, comecei a caminhar. Aos poucos se tornava um ambiente. Primeiro a estrada molhada, depois os pinheiros verdes; as árvores alaranjadas pelo outono surgiam, uma a uma, como se nascessem, brotando e tornando-se imensas instantaneamente. Logo mais, à frente, o corpo. Estirado, com uma fratura exposta na clavícula. Seu rosto era irreconhecível pela pele arrancada à força. O olhar vazio e aberto observava o céu.

Onde está a mamãe? — perguntou, forçando a voz falha. 

Não havia reações em mim para que pudesse demonstrá-las. Apenas assisti às suas expressões de tamanho sofrimento.

Não deveria ter voltado. — Sorriu como se, de repente, a angústia tivesse se dissipado. Rajadas de sangue escorreram pela sua boca.

Quando despertei, o suor percorria por todo o corpo e o coração acelerava sem freio. Parecia que meus pulmões haviam  perdido a capacidade de prender ar dentro de si, pois inspirava e expirava freneticamente. Só então me dei conta de que estava no Brasil e lentamente lembrei da viagem, dos garotos, da confusão no hotel…

Movi bem devagar a cabeça para o lado e minha bochecha se apertou em algo aconchegante como um travesseiro, no entanto, estava longe de ser um.

A euforia dentro de mim havia por um pouco se acalmado. Tudo estava tão desconexo em minha cabeça a ponto de eu não conseguir diferenciar a realidade do delírio.

— E então… Essa cama não é grande o bastante?

Abri os olhos. Eu estava na maldita cama, tão próxima de seu rosto a ponto de constatar que, afinal, Kim Nam Joon tinha um ou outro poro dilatado que, até então, me era imperceptível.

— O que está esperando para sair de cima de mim? — esbravejei, após um minuto se passar e o garoto não mover sequer um músculo.

— Foi você quem me agarrou a noite inteira...



💜.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top