Baile de Formatura
Naquele ano de 1989, a escola Roberto Bolaños encerrou as aulas em novembro. Por iniciativa própria, os concludentes do segundo grau decidiram encerrar o ano com um baile de formatura, na segunda quinzena de dezembro. Não era algo comum na época, e por isso mesmo se tornou um acontecimento na então provinciana cidade de Fortaleza, no Estado do Ceará.
Álcool era proibido, devido a acordo dos pais com o buffet. Mas isso não impedia que a bebida entrasse, escondida em mochilas, bolsas femininas e até mesmo em bolsos de calças.
Vejam Rodrigo, que acabou de passar pelo portão gradeado, entre duas colunas de mármore. Alto, rosto suave, olhos verdes - ninguém imaginaria que ele trazia, nos bolsos da calça jeans justa de cintura alta, duas garrafinhas de uísque Natu Nobilis, furtadas do bar do pai.
Ou Mauro, cabelos castanhos em corte mullet, chegando agora na festa, descendo do banco de passageiros de um Chevette. Ninguém imaginaria encontrar em seu bolso uma carteira de cigarros Carlton.
Ou ainda Leonardo, cabelos ondulados castanhos, relógio digital Casio no pulso. Quando o vemos, aproximando-se da roda de amigos no meio do salão coberto, não imaginamos que ele traz dentro da carteira Ocean Pacific, no bolso traseiro da calça jeans, um preservativo. E, mais importante ainda, ele traz na cabeça um nome: Renata.
O baile começara há duas horas, e a bebida clandestina já circulava por todas as mãos e bocas.
E nem só de bebidas se fartavam as bocas. Em cantinhos escuros, já haviam começado os primeiros beijos roubados. À medida que a bebida circulava, e a música soltava os corpos, os beijos iam saindo das sombras, descortinando-se sob as luzes.
Troca de salivas nos beijos. Saliva que ia para a borda dos copos, e que se juntava à bebida que caía no chão, derramada pelo ímpeto dos jovens e pela embriaguez cada vez maior.
No chão, a bebida se deslocava, escorrendo, cedo ou tarde, para os ralos.
No subsolo escuro, a bebida, impregnada da saliva dos desejos que pareciam se impor a qualquer preço, escapava por um furo no cano, acumulando-se em uma poça lamacenta.
No início do salão, impossível não notar a presença de cinco garotas, de pé, em círculo. Usavam vestidos trapézio, sandálias Melissa, chapéus verde e azul de aba virada da Company, tinham os cabelos longos repicados dos ombros para baixo, parecendo, às costas, a letra "V". Nos lábios, batom boka loka. Elas chamavam a si mesmas de O Clube das Cinco Melhores. As cinco mais bonitas, mais glamorosas, mais bem-feitas garotas da escola. Eram o juízo que tinham de si mesmas, e ele era compartilhado pela maior parte do colégio, mesmo pelas invejosas - sendo a inveja, afinal, uma forma invertida de aprovação.
Acostumadas a serem admiradas, e tendo-se posto de pé no início do salão somente para isso, elas estranharam quando, entrando no salão, César - cabelos lisos escuros, tênis All Star de cano longo - passou direto por elas, sem olhar para os lados.
Nenhuma delas trocou palavra sobre isso - para elas, César não valia o esforço -, mas um olhar de soslaio para ele - e um entre elas - dizia tudo: haviam passado cinco horas se arrumando, gastado uma fortuna com vestido, cabelo, sapatos, maquiagem, lingerie, e até mesmo pulado o jantar para afinarem os quadris - e quem aquele César era para lhes negar um olhar guloso? Olhar a que todas já estavam acostumadas?
Mal sabiam elas que naquela noite César só tinha olhos e pensamentos para uma única garota: Renata. Contemplava-a agora: o cabelo ruivo picado, o corpo magro e bronzeado coberto por uma calça fuseau preta e blusa de manga morcego azul, sentada em meio à roda que incluía Leonardo, Rodrigo, Mauro, e à qual César veio se juntar.
As danças, a música, as risadas - tudo isso criava barulho, alto o suficiente para abafar o murmurinho abaixo, no subsolo, onde as bebidas derramadas, no poço que se formava, começavam a borbulhar.
Nas caixas de som, começou a tocar "Together Forever", de Rick Astley. Renata pulou da cadeira e, segurando Leonardo pela mão, disse, apontando com a cabeça para a pista, em uma área aberta ao lado do salão:
- Vamos.
Ele permaneceu imóvel por alguns segundos, olhos na parede. Então, ergueu-se e, entrelaçando a mão na dela, seguiu-a à pista, não sem antes dizer:
- Só uma dança.
César seguiu-os com os olhos. A meio caminho, Renata olhou para trás - e ele podia jurar que via no olhar dela, fitando-o, deboche.
Mauro passou a comentar sobre "De Volta para o Futuro 2", que estreara nas salas no último fim de semana. César só ouvia trechos isolados conversa - "Vocês já pensaram que em 2015 os carros talvez voem?" - enquanto via Renata e Leonardo começarem a dançar, um de frente para o outro.
No início do salão, o Clube das Cinco Melhores tinha sua vingança contra o despeito de César. Ao lado delas, passava Synara, de cabelo com franjinha e vestida em calça baggy e camisa da Pier. Ela terminava o colegial tendo mantido a virgindade e, acreditem-me, isso não fora fácil. Esbelta, de olhos verdes e pernas torneadas, não lhe haviam faltado pretendentes. Elas os rejeitara, um a um. Católica, mantinha-se firme no voto de castidade, guardando-se para um futuro marido.
Isso, claro, só a tornava ainda mais cobiçada pelos garotos. E, na mesma medida, invejada pelas garotas - em especial as que, tendo cedido a mais de uma investida, haviam pouco a pouco perdido seu valor no mercado de carne viva. Era o caso das garotas do Clube das Cinco Melhores.
Agora, enquanto Synara lhes passava ao lado, uma delas comentou, em voz alta o suficiente para que a outra ouvisse:
- Promoção de calças baggy no centro da cidade?
Synara tentou ignorar. Esforçou-se para aparentar confiança enquanto cruzava o salão rumo à roda onde estavam César e outros.
Ao chegar, ela sentou-se e, olhando para os lados, perguntou por Renata.
Rodrigo apontou para a pista de dança. Renata e Leonardo dançavam em ritmo lento, um junto do outro, ao som de "I'll Be Over You", de Toto.
Synara estranhou aquilo. Afinal, Renata e César paqueravam há semanas.
Ela só percebeu o que ocorrera ao captar, por cima do ombro direito de Leonardo, de costas, um olhar de Renata para César. Ela conhecia aquele olhar: Renata o usava quando dispensava garotos abaixo de seu padrão de exigência.
Renata brincara com César. Dera-lhe ilusões. Agora Synara percebia que a amiga usara César só para se valorizar perante Leonardo.
Na pista, a música parou. Após se separaram, Renata e Leonardo fitaram-se por alguns segundos, os braços de um sobre os do outro. "Cherish", de Kool n& Gang, começou a tocar. Os demais casais começaram a dançar. Renata e Leonardo continuaram parados, fitando-se. Então, ele a envolveu pela cintura e beijou-lhe os lábios.
Num ímpeto, César ergueu-se da cadeira e cruzou o salão, no sentido inverso ao da pista de dança. Synara seguiu-o.
Estivesse menos preocupado, César teria percebido, à sua direita, no chão, uma substância gosmenta escura que começava a sair pelo ralo. Substância que também saía pelos demais ralos e pelas portas dos banheiros...
Synara encontrou César encostado ao muro que dava para a rua.
Ao redor, casais se agarravam. Um deles, ao lado de César e Synara.
- César...
Ao lado, o casal que se agarrava não viu a substância gosmenta acercar-se deles, arrodeando-os...
- ...ela está sendo uma sacana. Não ligue...
Um berro perto deles. O casal se separara. Fitavam o chão sob os próprios pés.
- Que nojo - disse o rapaz, ao perceber que pisavam sobre a substância gosmenta.
- Eu senti algo morder minha perna - disse a garota, a voz trêmula.
Por alguns segundos, os quatro só observaram, enquanto, a olhos vistos, a substância gosmenta aumentava de extensão.
Então, aconteceu. A substância projetou-se em direção ao rapaz, grudando-se no calcanhar dele - e a pele dele ressecou-se, como se ele tivesse chegado aos 120 anos em segundos. Um grunhido saiu de sua boca, antes que ele caísse ao chão - a pele do rosto chupada, os olhos afundados em covas proeminentes, as roupas folgadas no corpo agora esquelético.
A garota gritou. Os que estavam próximos ouviram. Mas já era tarde demais.
Saindo dos ralos, das cavidades, das calhas, das pias e dos sanitários dos banheiros, a substância gosmenta espalhava-se pelo buffet. E cada um que ela tocava envelhecia até a morte, em segundos.
César percebeu de imediato o que acontecia. De algum modo, ele sabia reconhecer a punição que caía sobre os pecadores. Abarcando Synara pelos ombros, forçou ambos a se ajoelharem.
- Não abra os olhos! - ele disse. - Não interessa o que acontecer, não abra os olhos!
Assim, de olhos fechados, eles apenas podiam ouvir os sons difusos, misturados, de gritos e corre-corre.
Não viram quando seu grupo, ao tentar fugir rumo ao portão, foi cercado pela substância, que lhes envolveu as pernas. Em segundos, eles caíam ao solo, cadáveres esqueléticos, os ossos quebrando-se sob a pele.
Também não viram quando as garotas do Clube das Cinco Melhores, sem reação, foram cercadas pela substância - e então, num único movimento, cobertas por ela. De dentro da bolha que se formou, ouviram-se gritos. Quando a substância retrocedeu, só restavam das garotas pó de ossos, que o vento espalhou.
Tampouco César e Synara viram quando os demais, ao perceberam o que ocorria, correram rumo ao portão que levava à rua - sua única esperança de vida. No caminho, alguns caíram, sendo então pisoteados pela massa em fuga. Os que chegaram lá deram com um portão fechado. Da janela da guarita, pendia o dorso do cadáver envelhecido do porteiro. Alguns tentaram pular o muro - apenas para descobriram que a substância gosmenta já ocupara o topo, os escaladores então caindo ao solo, mortos.
E assim a substância gosmenta começou a dar conta de todos. Alguns, pela putrefação acelerada. Outros, pela corrosão, até os ossos virarem pó. A cada vítima, a substância crescia, alargando-se, engrossando - até que parecia ocupar todo o buffet, os jovens e garotas engolidos por ela como que por um mar turbulento.
Até que não restava mais nenhum.
Então, a substância começou a se diluir. Tornou-se menos sólida. Logo se desfez em pequenas poças de água que escoaram pelos ralos. Em alguns segundos, o chão estava seco.
Mesmo após os gritos terem cessado, César e Synara continuaram de olhos fechados, agarrados um ao outro. Só tiveram coragem de abrir os olhos quando a polícia chegou.
FIM
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top