Capítulo Onze (A garota que amava o poeta)

So much for summer love and saying us

'Cause you weren't mine to lose.

— August, Taylor Swift.


🍒


Roseville, 1996.


"Você acredita no Paraíso?"

Sharon Marie poderia descrever a imagem com a mesma exatidão necessária das cores, evocada de um lugar sagrado onde a mantinha como um negativo revelando um instantâneo guardado no fundo da memória.

Jeon Jungkook havia cochichado contra a sua orelha, os lábios raspando nos seus fios de cabelo, guiando-a até as escadas que o sacristão escalava durante as manhãs, tocando o sino para anunciar o início da missa; um corredor minúsculo que a fizera pensar em como Roy, o coroinha abusado que ajudava Padre Stane e vivia tentando espiar por baixo de sua saia, cabia ali. Olhou para baixo, por entre as frestas da madeira, vendo as teias de aranha penduradas de maneira laboriosa sustentando a leveza do ar e observou os bancos abaixo dos seus pés, os rostos piedosos das imagens divinas voltados para as almas que horas antes estavam presentes, ocupando os lugares, agora, vazios.

Jungkook continuava desviando sua atenção, com as mãos furtivamente enfiadas em sua blusa enquanto ela mal conseguia piscar os olhos. A claridade externa que invadia a janela minúscula coberta por um vitral de anjos mergulhando em um infinito azul e com uma grande estrela central, era refletida neles; como se sob os olhos curiosos do Céu, tudo estivesse sendo observado.

Nunca tinha ido tão longe, nem mesmo com os garotos da Califórnia; com suas mãos atrevidas e experientes nos bancos de trás do ônibus escolar, nenhum deles jamais havia tocado seu corpo daquela maneira. 

Ainda lembrava dos movimentos espontâneos, oscilatórios, sem muita reflexão, que espreitava pela fenda segura das poltronas de couro preto, enquanto os rostos das meninas, as vítimas das mãos dissimuladas, pareciam nublados de um prazer egóico que anulava as presenças intrusas ao redor.

O suspense teatral de cortinas invisíveis erguidas somente em uma fresta miúda para apreciar uma esfera secreta, cujo plano principal era o espetáculo de olhos atenciosos voltados para as sensações lancinantes, que faziam Sharon apenas imaginar.

Durante o caminho até a classe, ouvia os comentários dos rapazes quando estavam em bando, como abutres, "e aí? ela liberou?", perguntava um deles,"saca só o cheiro disso aqui!", esfregando os dedos nos narizes um do outro.

Mas naquela tarde, lembrava que o Céu estava trancafiado e enraivecido, uma chuva despencara criando poças no jardim da escola e molhando seus sapatos no caminho. O cheiro agradável se misturava à brisa marítima. Se espremesse bem os olhos em duas fendas, era capaz de ver o oceano, ao longe, apreciando o momento de sua descoberta juvenil, ansiosa e imoderada.

Arreganhou as pernas quando Jungkook tocou a base do seu joelho, os olhos petrificados nos dele em um ritual de confiança mútua. Era engraçado como quase nunca conseguia ler suas intenções, mas, inevitavelmente, confiava. Poderia dizer que naquele dia ele ainda tinha cheiro de lubrificante de motor, — quando sua cabeça pendeu para frente, buscando apoio em seus ombros —, uma mistura que ela sabia que só se desprenderia de sua pele, amada pela luz solar, após um longo banho, na ocasião, ele aparecia perfumado e bonito na porta dos fundos de sua casa, as batidas sequenciadas e secreta na ferrugem que corroía a grade do quintal soavam como um coração desritmado, depois que sua mãe adormecia assistindo as novelas do canal 6 e o garoto surgia invocado das profundezas de um desejo silencioso e ardente que Sharon sabia, só era capaz de chamar por ele.

Jeon Jungkook era experiente.

A primeira, ele disse, havia sido Pattie Benevittes, a mesma garota que motivou a partida dele para o reformatório após aquele Verão, depois do breve Agosto de doçuras e calor excessivo aliviado pelos banhos noturnos de mar e as fugas que eles tiveram.

Mas ali ainda era o início de todas as boas lembranças que Sharon manteria a salvo consigo para sempre. Até o momento que olharia para trás, em sua versão que, agora, encarava o espelho e encontrava as rugas surgindo ao redor da boca, dos olhos e das mãos delicadas, levemente afetadas pela dureza do tempo e pelas exaustões da vida e saberia que aquele rapaz de olhar triste, cujo coração era um mistério, permaneceria intacto por baixo das cicatrizes bem curadas e das camadas seguras de pele renovada. Dos títulos que alguém lhe atribuía, de esposa e mãe. Depois de ter o dedo selado por uma aliança dourada e as entranhas rasgadas por duas adoráveis criaturas que carregavam seu sangue e sobrenome. Antes de todas as bênçãos de sua vida feliz, ou o melhor que esperava dela, ela foi a Sharon apaixonada pelo poeta. E a cada vez que alguém incitasse o seu nome proibido, com o mesmo gosto infernal de pecado, — o pacto fáustico restabelecido das profundezas do seu tormento, retornaria —, e ela saberia que ele estaria lá outra vez, embotando suas certezas até mesmo no presente.

Contudo, há trinta anos, suas convicções eram outras. Quando já havia se dado conta de que apaixonar-se por um garoto como Jungkook era condenar o próprio coração a um castigo cruel e eterno; amava um rapaz que nunca fora seu. Todavia, naquela época, ainda tinha a fé de boa menina que seu amor, e somente ele, seriam responsáveis pela interrupção de um padrão comportamental de um menino fadado aos latíbulos proibidos que ela experimentava, vez ou outra, quando os dedos dele, carinhosos, suaves e ritmados, tocavam-na na tentativa de cessar o desejo. Levando-os até a boca e diante de seus olhos de menina, atentos e excitados, experimentando o seu gosto. No carro, em Salt Heirs e uma vez na montanha-russa, enquanto deslizavam para baixo e então, outra vez, para o alto, até o infinito.

Sharon gostava de fingir que aquela era sua versão do amor.

Jungkook nunca lhe prometeu nada além de lábios e mãos curiosas. Consolo. Alento que era vago e sucinto. Era o acordo mútuo entre os dois: não envolver as questões do coração. E Sharon bem sabia que ele não a amava. Os olhos mostravam desejo, nunca a palavra proibida. E não era do tipo que esperava por algo tão patético em troca, não era tola. Sabia que o amor era uma maldição, cujo único fruto, de um ventre condenado, era o gosto amargo da mágoa.

A mãe, Shelly, havia lhe ensinado bem.

As duas vinham escapando de cidade em cidade há anos desde que seu pai havia sumido no mundo. Antes de morrer como um desconhecido em um motel barato agarrado a imagem de um Jesus de braços erguidos.

A última cidade havia sido Nantucket, no vilarejo com docas e cheiro de peixe onde se enfiaram para fugir do padrasto asqueroso, Gladys, que costumava espiá-la no banho. Já tinha tentado forçar a maçaneta de seu quarto pelo menos duas vezes antes de sua mãe colocar um ponto final na história. As madrugadas silenciosas tornavam-se um pesadelo às claras com a iminência de sua vinda, esgueirando-se pelos corredores, sempre à espreita. Seria outro nome e rosto esquecido no jardim frontal de um subúrbio de Cape Code. Sem corpo, sem provas.

Todavia, Sharon odiava a ilha, assim como odiava o marasmo, os dias consumidos em uma frieza mórbida e os habitantes apáticos do lugarzinho. Ela era a cor de uma cidade cinza. A Sharon Marie californiana, de pele bronzeada e lábios vermelhos, enlouquecendo os caipiras da escola. A mãe costumava lembrá-la que seu rosto era uma arma engatilhada em direção a cabeça de qualquer um que se atrevesse a confrontar, com o próprio coração de escudo, os seus atributos valiosos. Levaria cerca de dez segundos para a bala com seu nome cravado penetrar no crânio na curta distância de um primeiro olhar fatal, deslizando pelo cabelo, pele e músculos da vítima e estraçalhando a camada de ossos que recobriam o cérebro antes mesmo da criatura perceber o som agudo do disparo, tarde demais para um último pedido. Cairia de joelhos, perante ela. Trocas que nunca deveriam envolver sentimentalismo barato.

Podia conseguir tudo que quisesse se usasse o que tinha a seu favor. Sem parecer uma boboca chorona apaixonada. Shelly repetia em voz alta quando a vodca atingia os seus sistemas.

O atestado de sortilégio de Sharon era dado a cada título que carregava. As faixas e troféus decorando o quarto eram só provas concretas de uma beleza herdada e de uma genética forte que prevaleceria sendo o motivo das cabeças viradas em corredores lotados e dos rostos iluminados de paixão a cada vez que ela surgia, radiante, usando coroa e faixa em uma passarela.

Sharon Marie sempre foi a garota bonita, antes de qualquer outra qualidade igualmente notável, como sua habilidade em destrinchar cálculos matemáticos complexos, seu dom para o canto, sua paixão por biologia marinha e seu boletim ornado somente com letras que encabeçavam o alfabeto. Primeiro na Califórnia, depois em Cape Code, Nantucket e então, Roseville.

Herdara o nome de uma estrela de cinema morta, a atriz vítima da trupe de hippies malucos, em algum lugar do passado, quando sua mãe ainda era uma adolescente obcecada por bandas de rock nos confins de Rohnert Park e seu pai, o homem charmoso na foto pendurada acima do móvel provençal que decorava sala, a quem todos chamavam, com orgulho e nostalgia, de Mr. Hollywood, no seu Karmann-Ghia, descobria novos talentos na Califórnia.

Jurava ter conhecido a atriz em pessoa e contava uma história patética sobre tê-la visto uma última vez, em sonho, envolta em um vestido de veludo azul, antes do nascimento de Sharon.

Seu nome era só um maldito elogio fúnebre, como costumava pensar.

Mas Sharon Marie olhava para si mesma como se visse o passado e ansiasse o futuro, onde a pequena menina sonhadora, deitada sobre o banco traseiro do velho carro do pai, observava as árvores passarem pela janela como uma tela gigante em movimento e imaginava-se crescida, em um futuro escolhido e feliz, sem fugas, de mãos dadas com um garoto lindo cujo rosto teria um pouco de cada ídolo que habitava em suas fantasias na época: Depp, DiCaprio, Phoenix e Presley.

Fechava os olhos e então estava lá de novo, com os pés descansando no painel de um conversível novo, a luz do Sol banhando a estrada, enquanto a criatura quimérica dirigia para longe, rumo ao litoral.

Contudo, ali, na primeira tarde de calor e lábios pálidos de prazer, — quando o sonho derreteu-se em cores vivas de uma realidade invocada —, deixou que Jungkook tocasse-a até saciar a vontade estridente dentro dela, dando rumo a sua primeira incursão aos poemas declamados contra a orelha e das súbitas inspirações florescendo e explodindo, multicoloridas, como feridas abertas ainda pulsantes, quando as pupilas dilatadas dele, embebidas no apogeu da ode, eram portais do declive de uma atmosfera modificada, onde ela, deliberadamente ingênua e apaixonada, lançava-se, por vontade própria, no abismo.

Sharon nunca se esqueceu da sensação.

Na noite da partida, tinha as unhas longas e esmaltadas de vermelho mesmerizante, — exatamente como estava escrito no pequeno frasco do apoiado na penteadeira —, que brilhavam à medida que o pincel deslizava cobrindo novamente a superfície, o cheiro ébrio do produto lhe causava uma sensação estranha de dèja-vu.

Tinha o cabelo escuro e longo, como uma dama medieval, amarrado num rabo de cavalo alto, e checava as horas no relógio ao lado do rádio a cada segundo.

Eram quase vinte e duas; sopraria as unhas por mais cinco minutos antes do banho e teria menos de meia hora para se preparar, sabia que ele viria com um intuito definitivo, mas ainda assim, esperaria.

Ficou de pé outra vez e firmou o olhar no espelho ao lado da faixa de Miss Summer Flower 1996 e a foto de Elvis Presley que sempre parecia encará-la com um olhar sedutor, como quem imaginava o que se passaria em sua cabecinha bonita.

As marcas de batom no pôster antigo eram um lembrete do quanto havia treinado seus beijos mais apaixonados contra a boca do homem na foto; estava acostumada com a indiferença aos seus sentimentos, não importava o quanto se esforçasse para amá-lo.

Não era de hoje que gastava seus batons de sabor frutado com os garotos de corações frios: primeiro Elvis e então, Jeon Jungkook.

A inflexão injusta à promessa que fora quebrada antes mesmo de ser jurada, retornava como carma: não conseguia listar em uma ordem cronológica todas as coisas que tinham-na feito se apaixonar pelo garoto proibido, muito menos entender porque naquela tarde quente e sufocante, no verão do amor, deixou que ele tocasse-a por debaixo dos tecidos quentes do uniforme quando lhe pediu para fechar os olhos.

Lembrava de quando tudo tinha o efeito caleidoscópico de uma distorção satisfatória; era o início de Julho de 1995, o carro de mudanças passava lentamente pela avenida principal da cidade minúscula onde viveria o resto de seus dias a partir daquele e Jungkook consertava o seu velho carro no pátio da igreja; estava vestido em uma camiseta de banda grunge de vocalista morto, com as mangas rasgadas, tinha um cigarro pendurado na orelha enfeitada de piercings e lhe fazia pensar no refrão chiclete de uma das canções do Elvis: "Se está procurando problema, veio ao lugar certo."

Se apaixonou quando ele apareceu nos portões da Saint Mary's High School, — durante a sua remissão das aulas perdidas no período letivo —, assustadoramente bonito naquela jaqueta de couro, e a convidou para sair. Quando beijou-a pela primeira vez e fez as luzes néon do parque de diversões parecerem constelações tatuadas na pele dele.

Quando a desfez na sua cama pequena, no meio dos posters de ídolos adolescentes colados às paredes, a foto de Presley e o crucifixo preso acima de suas cabeças, através do dossel cor-de-rosa que recobria a madeira.

"Você tem certeza?" ele perguntou, o dorso desnudo tocava o seu corpo recém-descoberto, a pele aveludada e firme propiciando calor, uma sensação trêmula e assustadora que ela nunca havia experimentado. "Eu nunca fiz isso antes."

Questionou se Deus a perdoaria naquele momento, mas a ideia absoluta de condenação pecaminosa só durou uma fração de segundos contados em um suspiro ardente até Jungkook estar dentro dela; o crucifixo que ele carregava atado ao pescoço queimou contra a pele quente em uma prece de resignação do corpo. Uma homilia sagrada que descobriria desvendando-o.

Foi seu primeiro e queria que fosse o único, assim como as canções nos discos favoritos de seu pai que marcaram a época mais feliz de sua vida; Harrison Blossom tocando Presley no violão, parado diante da porta do seu quarto no dia de seu aniversário, como aquelas memórias que não poderiam ser substituídas dos seus dias na Califórnia e dos sonhos que ainda guardava dentro dela no momento em que ele apareceu pela primeira vez, e desejou que também ficasse para sempre, mesmo que soubesse que para as garotas Blossom, o esconjuro da partida era uma certeza.

As facetas da noite pareciam diferentes naquele dia. No momento em que as luzes dos faróis do carro de Jungkook banharam o quarto de Sharon, enquanto ela, de pé, diante da janela, observava com uma certeza silenciosa e um sentimento cruel que preenchia o peito, como se escapasse pelas beiradas do coração e corresse por sua espinha dorsal, que aquela seria a última vez.

O prelúdio de um adeus que havia começado no primeiro olá.

Tudo havia mudado desde o retorno do reformatório, alguma peça quebrada havia danificado a comunicação, os sentidos e o comportamento de Jungkook. As palavras eram dispositivos inúteis incapazes de uni-los outra vez. Ele já não era mais o mesmo.

Os olhares, as palavras e a saudade que havia ansiado na distância, o elo dos dias de amor que aqueceriam o início daquele verão, ficaram só nas fantasias. Percebera no primeiro segundo, na entonação diferente que seu nome ganhou nos lábios dele, na percepção aguçada que só um coração apaixonado era capaz de ler. A versão nova, desconhecida e fria que ele trouxe consigo, moldava um plano onde ela não estava inserida.

Algo havia sido modificado até mesmo no modo como costumava desejá-la, o que começava com seus sussurros sujos, palavras indecentes e proibidas de serem repetidas em voz alta, mas que faziam Sharon ferver por dentro, morreram na ponta de sua língua amarga. No seu contentamento de somente assisti-la livrando-se do vestido vermelho, sem as mãos curiosas tateando pela pele em um processo de papiloscopia a cada centímetro exposto do seu corpo febril.

Eram duas pessoas completamente distintas e desconhecidas: O Jungkook da partida e o do retorno. Sentia a fatalidade pairar diante das suas palavras na tarde da ligação, quando o identificador de chamadas revelou o número da oficina dos Kent, o som abafado do telefone que segurava contra a orelha não fora capaz de esconder a preocupação na voz de Jungkook: "Acho que precisamos conversar!"

Sharon saiu do quarto com cautela, dando um passo de cada vez nas escadas, na ponta dos dedos, observando pelo corrimão zebrado a quietude da casa. Seu ritual noturno habitual, quando tudo estava seguro outra vez e seu estômago borbulhava em uma ansiedade familiar. Cruzou a sala com os pés descalços, e como previsto, a mãe encontrava-se adormecida no sofá, a taça vazia pendia em sua mão enquanto a luz azulada da televisão projetava sombras na parede. Um episódio de 7th Heaven estava sendo exibido no canal WB.

A réstia de Jungkook cobriu a porta da cozinha, fazendo com que Sharon hesitasse antes de tocar a maçaneta fria, a mão pendeu para frente, apoiada sobre a cortina aveludada, até ouvir as batidas secretas contra a madeira. Toc-toc, e então de novo, toc-toc-toc.

Sua adoração tácita de cada detalhe dele disparava uma voltagem particular a cada encontro, sempre como se fosse o primeiro. Observou Jungkook por um segundo, a perversidade de sua indumentária escolhida cautelosamente para que a cena perdurasse em sua mente; a camiseta branca perfeitamente alinhada em seu corpo, como se tivesse sido costurada a partir de suas medidas exatas, a jaqueta de couro, que em outros momentos, acolheram-na como portal para os braços dele, parecia ter sido vestida às pressas, — a gola invertida e os zípers do punho ainda abertos denunciavam o ritmo de sua agilidade —, esmiúces que o tempo substituiria por novos detalhes quando os originais fossem, de fato, apagados. Enquanto eles, protagonistas de uma cena romântica com fim predestinado; hiperbólico, dramático, como uma ode grega trágica, entoariam, desesperados, com adagas e espadas erguidas, seus coros finais.

Sharon fitou Jungkook parado diante do chiaroscuro da sua pequena cozinha, como se por um segundo, ele fosse um pedaço de algo que também lhe pertencia, entre as flores, os prismas de cristal tintilando na janela, as fotos, os jogos de chá colecionáveis de Shelly e a prataria falsa; tudo que ainda remetia ao lar. O pensamento quase atravessou seu corpo com uma dor aguda. Se dar conta de uma verdade inteligível também iria doer.

Ao contrário da mobília precária e dos itens parcos de decoração da pequena casa na rua Dolley Madison, e tudo mais que ainda poderia carregar consigo para onde fosse sem perder a essência de quem e do que, por direito, lhe pertencia, Sharon se dera conta conta que Jeon Jungkook nunca foi seu.

O sonho se desfazia conforme o tempo passava.

Ninguém parecia tão imune e distante quanto ele. A frieza de seu coração era capaz de gelar os ossos. O arrepio que sentia quando era tocada parecia um sinal de alerta, não mais da quentura febril do delírio amoroso: dessa vez Jungkook beijou-a com os olhos abertos.

Os corações são como pássaros livres, Sharon. Não podem ser engaiolados, não devem ter donos. A voz do pai soava em sua cabeça, os calafrios percorrendo a pele, na imagem que mantivera de seu cadáver, frio e desfigurado, mas de coração livre. Liberdade esta que lhe custou muito caro. E que, ali, não parecia justa ou fazia sentido. Seu pai jamais saberia o que era amar alguém. Nunca foi capaz de amar nada além de dinheiro.

Sharon queria o que havia aprendido que não era lícito, e aprisionar um coração não parecia uma atitude egoísta e cruel, mas nada nunca parece tão errado quando os autores das perversidades somos nós.

A origem clara das dúvidas fazia com que ela sempre recuasse. Jungkook tinha suas razões, Sharon sabia, mas na maioria das vezes nunca era capaz de entendê-las.

O sentimento servido a conta-gotas, em uma infusão de palavras anestésicas e contidas seriam inúteis em seu corpo, prolongariam ainda mais a dor da partida. As conspirações que continuava criando, como se pudesse interromper as ações do outro, tentando dar sentido a cada pequeno gesto e confidência, ao movimento mínimo do corpo para obter as respostas secretas de uma verdade absoluta, nunca deixavam que ela visse o óbvio, bem diante dos seus olhos.

— Podemos conversar no seu quarto? — perguntou ele, a nicotina residual em seu hálito podia ser sentida na curta distância entre os dois, Sharon amava aquilo.

— Você pode dizer aqui o que tiver para me dizer. — Sharon queria oferecer sua outra face, um gesto de civilidade que evocava seus talentos de carisma, mesmo ali, enquanto seu coração explodia, expelindo sangue e carne viva como uma pintura abstrata e sombria nas telas vazias de sua mente. Manteve-se firme. Ao menos, teve essa sorte. A ideia que passou pela sua cabeça teria sido humilhante, feito-a se sentir patética, porque embora o fim não tivesse sido vocalizado, sua presença era incontestável.

Sua fragilidade exposta, feito pele rasgada, em um ritual de carnificina, revelando toda a verdade: "Você também me amaria, Jungkook?" As palavras morreram fechando a glote, sua munição era inútil, ali, eram somente balas de festim, que nunca perfurariam o amante.

As mãos quentes de Jungkook tocaram sua nuca, tinha a testa colada a de Sharon, a respiração ofegante, buscando as palavras certas que ainda assim, seriam cortantes com a mesma equivalência da lâmina de um punhal.

— Não quero que fique triste, eu odiaria te ver assim. — Os pêlos do corpo de Sharon se eriçaram. Se sentia mentirosa e desonesta. Traída por si mesma. Fechou os olhos quando os lábios dele tocaram a superfície de sua boca, sem beijá-la. — Você sempre será especial para mim.

— Você quer terminar comigo? — Não queria que ele visse a fraqueza através dela, como se seu corpo fosse um recipiente de vidro atravessado pela luz artificial de um microscópio, observando as emoções, ainda embrionárias, prestes a eclodirem e dominá-la. Tinha a vaga ideia de que Jungkook possuía algum dom místico de leitura mental, um pensamento que lhe ocorria de forma recorrente até a vida adulta, quando se dera conta de que ele também era só um garoto fadado a saber tão pouco sobre a vida quanto ela na época.

— Eu só não posso mentir para você, nem deixar que se sinta enganada. — Os dedos dele, cuidadosos, infernalmente gentis, afastaram uma mecha de cabelo para trás, depositando um beijo suave em seu pescoço.

— Então isso significa que você só se cansou de mim, não é? — Queria estar equivocada. O velho costume de agarrar-se às próprias mentiras quando tudo era ridiculamente óbvio, escancarado. — Não diga! Melhor não dizer. Acho que não quero saber a resposta. — Se afastou minimamente de Jungkook, um único passo atrás.

— Sharon, escute... — Ele fez uma pausa, umedecendo os lábios, antes de tocar as mãos da menina de uma maneira amigável. — Prometi que seria honesto com você caso isso acontecesse um dia. — Beijou ambos os dorsos das mãos de Sharon, descobrindo o perfume frutado que adorava, um gesto que ela considerou quase fleumático, odiável, imputando a sua falsa coragem. Era só um covarde.

— Existe uma outra pessoa, é isso que quer dizer. — A facilidade da resposta teria a capacidade destrutiva que ela esperava, não só partiria seu coração em milhões de pedaços indistinguíveis que se espalhariam para sempre pelo chão da casa, mas também seria consumida pela gangrena de uma mágoa que há muito estava a corroê-la. — Não é?

O silêncio de Jungkook foi equivalente às respostas gritadas em uníssono. Milhares de vozes de um coro celestial responderam o que ela mais temia. Sem indulgência. Logo ele, que dominava as palavras com uma habilidade inigualável e tinha-as como seu superpoder secreto, não sabia o que dizer. No fundo Sharon sabia, assim como todo amor que cruzava a porta da casa, já deveria se preparar para a partida sem desfazer as malas.

— Eu sinto muito, não estou tentando machucar você.— As lágrimas inundaram seu rosto, as águas mais profundas prestes a afogá-la. — Eu queria que as coisas fossem de outro jeito para nós. Falo sério.

A selva densa do medo, do sangue frio e paralisado nas veias, do ímpeto do susto chacoalharam a menina, clamando a direção do destino que parecia designada a ter: amar sempre os que se vão.

— Quem é ela? — Não manteria as trivialidades idiotas do orgulho, ansiando por esclarecimentos que julgava serem seus por direito. A penitência de autoflagelo seria atribuída por vontade própria. Só precisaria de um nome.

— Isso não importa, Cherry-pie. — Uma mecha do cabelo negro de Jungkook pendia diante dos olhos, o brilho inigualável da sua íris despida de sentimentos arrepiava o corpo. Era incapaz de lê-lo, encontrar as respostas que procurava. Todavia, elas estavam ali. Ardendo, queimando de amor, em vermelho.

— Então ela existe. — crispou os lábios, sentindo a camada generosa de batom incrustada na boca. O gosto da boca dele ainda resistia em sua saliva. — E se ela existe, significa que eu nunca tive sequer uma chance. — riu. O ruído parecia um soluço entrecortado de um choro contido.

— Não diga essas coisas! — Suas tentativas de alcançar Sharon iam além de tocar-lhe o corpo e ampará-la, mas compreendê-la, amenizar a dor de um band-aid arrancado de um joelho ainda ferido.

Jungkook fitou o chão, a face odiosa dos seus trejeitos de diabo, que um dia também foram um anjo, ainda lutavam contra o maniqueísmo das personas coexistindo em seu corpo.

Sharon desviou até a porta, na tentativa de abri-la para mandá-lo embora, queria ter essa coragem, ser essa garota, mas não conseguiu sequer mover as mãos até a maçaneta.

— Se dependesse da minha vontade, daria meu coração a você sem pensar. — Jungkook cochichou. Algum diálogo entre Ruthie e Lucy Camden soava ao fundo, na televisão. Sharon memorizou todo o cenário e cada palavra.

Jeon aproximou-se com cautela, erguendo o rosto de Sharon diante dos seus olhos. Os lábios, firmes, marcaram um beijo em sua bochecha, e então, no ombro nu.

— Fui muito feliz fazendo parte da sua vida, e levarei isso comigo para sempre. — sussurrou — Espero que leve um pouco de mim com você também. — Sua mão amparou o queixo da menina com a ponta dos dedos.

Os detritos do quase-amor ficaram em Sharon, pairando ao redor de sua órbita, inacessíveis e enclausurados. Teve medo de ser persuadida pelas palavras exageradamente doces.

— Eu não quero sua piedade. — respondeu Sharon Marie, ainda de olhos fechados. — Se não pode ficar, então vá embora de uma vez, por favor.

Escutou o rangido da porta sendo aberta, o calor se dissipando para muito longe, o barulho das botas pesadas contra o piso desaparecendo, o som do carro de Jungkook se distanciando na rua vazia, e então, chorou. A dor precisava ser expurgada do corpo.

Jungkook se foi. E partiria para sempre de sua vida algum tempo depois.

Mas naquela noite, Sharon ouviu as músicas mais tristes do seu disco favorito de Elvis Presley e gritou contra o seu travesseiro todas as coisas que queria ter dito ao garoto e sabia que nunca teria coragem; odiá-lo talvez fosse um privilégio do qual meninas como ela jamais teriam acesso.

Continuaria esperando seu amor por muito tempo depois daquilo. Vivendo pela esperança de uma incerteza. Se alimentando de todos os "E se?"

Queria reaver o sentimento que existiu no verão passado, ressuscitá-lo dentre os mortos. Dedilhar o nome dela outra vez em suas costas lambuzadas de água salgada, sob o Sol escaldante dos dias felizes.

A cada iminência de retorno e a cada ligação perdida, a cada mensagem gravada na secretária eletrônica, ansiava para que fosse ele, arrependido e quebrado, condenado, infeliz e somente ela fosse o antídoto para a cura de sua doença funesta do amor dilacerado.

Contudo, na vida e na morte, o coração de Jungkook seria agora e para sempre daquela outra menina que Sharon observaria em silêncio, incapaz de desejar qualquer mal.

Ele ocuparia o seu posto por direito, tão subitamente amado e merecedor de tanta felicidade, que Sharon assistiria em alguma zona distante e segura, como uma espectadora de um espetáculo televisionado.

Condenaria o destino, seu sobrenome e suas incertezas, nunca o poeta. 

E seguiria batendo nas paredes de um coração oco, como prisioneira, em uma valsa endemoniada que controlava seus pés e passos. Rodopiando nos braços do diabo, na dança macabra de um amor maldito; cuja música, a doce voz guiando-a na escuridão do abismo em que caiu, jamais cessaria.


.・ ゜゜・ 🍒 ・゜゜・.


TAG: #garotosmiths

N/A:  Feliz ano novo!

Eu estava com uma expectativa altíssima para compartilhar esse capítulo e para apresentar a Sharon Marie para vocês há, pelo menos, uns dois anos. Essa personagem é muito significativa para mim de muitas formas, principalmente quando penso na razão pela qual ela nasceu. 

A Sharon não é uma vilãzinha disposta a destruir um parzinho romântico ou qualquer clichê do tipo, não, não é sobre isto. Vejo a Sharon como o outro lado da história: da menina que também amava, e só queria ser feliz, mas não foi correspondida, porque nem sempre o amor atende as nossas expectativas e nem sempre funciona da maneira que pensamos. As vezes alguém vai ser machucado enquanto o outro escolher ser feliz. 

Eu amo a Sharon, e por esse motivo, especificamente, escolhi esta data para publicar o primeiro capítulo dela. 

Hoje é meu aniversário e queria me dar esse presente em 2022, de olhar para essa personagem que nasceu da minha dor e ver que ela transformou-se em algo lindo, que me orgulho muito de compartilhar com vocês. (Sou suspeita, mas acho que este é o meu capítulo favorito!)

Sem mais delongas, desejo a vocês um ano espetacular, inspirador, feliz, saudável, mágico e com muitas expectativas atendidas. 

Eu amo vocês!

Até qualquer hora.

— Com amor, uma Sô de 26 anos. 🥳



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