09. Argila do Sri Lanka

MINHA FACE FOI ATINGIDA PELO TERROR COM A FORÇA DE UM MÍSSIL.

Pensei que ainda estivesse sonhando no instante em que atravessei a porta da casa, mas depois do beliscão no braço constatei que era só impressão. Depois cogitei que meu cérebro alcoolizado estava fazendo conjecturas fora da realidade, mas não, aquilo que estava acontecendo realmente estava acontecendo, era real.

Elevei a mão direita ao coração e escancarei a boca.

— Me amarrota que eu tô passada!

Permaneci estática por um tempo, como uma estátua de cera, enquanto uma pancadaria desenfreada rolava solta diante dos meus olhos.

A princípio, desejei regressar de volta ao interior da casa e me esconder embaixo da cama ou atrás de uma cortina, porém uma curiosidade mórbida e incontrolável me manteve do lado de fora.

Vou tentar ser breve e objetiva.

Bem se sabe que uma festa do pijama só está completa se nela houver uma guerra de travesseiro anti-estressante. Claro que estou me referindo àquela guerra de travesseiro que acontece no tapete da sala em um dia chuvoso de outono quando se é criança e está descontente presa dentro de casa, ou, àquela que acontece de repente em plena madrugada, quando a família toda está sem sono e entediada.

Foi um choque e tanto testemunhar a guerra de travesseiro das millernáticas que acontecia naquele instante no gramado. Era tanta troca de socos e pontapés num espaço tão curto de tempo que se golpear a adversária usando unicamente o travesseiro fosse a principal regra a ser seguida, todas as millernáticas seriam advertidas e desclassificadas. Sem contar os arranhões, as dentadas, os puxões de cabelo, entre outros atos violentos ocorrendo livremente.

Aquilo me assustou um bocado. Era tanta selvageria diante de mim que fiquei me perguntando quais razões levariam uma brincadeira tão saudável descer a níveis tão baixos. Onde foi parar a integração e o companheirismo das millernáticas? Onde foi parar o empoderamento coletivo que vi nelas durante o derradeiro fim do meu Ato do Desapego?

We will, we will rock you...

Enquanto a metade do fandom digladiava-se, a outra metade se aglomerava ao redor das lutadoras, incitando o embate generalizado por meio de uma versão sertaneja pink teen de um clássico do rock britânico interpretada originalmente por uma banda incrivelmente irreverente fundada na década de 70.

Arrebanhadas nas pequenas clareiras e vielas que existiam entre as barracas do acampamento, centenas de garotas soltavam a voz a plenos pulmões, giravam travesseiros no ar e sacolejavam o corpo enquanto assistiam a luta. Consigo até imaginar o que Carlito diria se estivesse aqui. A propósito, cadê ele? E o Guto, cadê? E por que meu coração estava tão apertado? Será que aconteceu alguma coisa de ruim com eles no trajeto de volta para festa?

We will, we will rock you...

Ergui a cabeça, desnorteada, fitando a escuridão do céu da madrugada mais insana da minha vida. Sabe o que vi? Bolhas. Uma infinidade de bolhas de sabão caindo sobre o gramado como uma tempestade.

We will, we will rock you...

Vislumbrei Francine Mestrinner com Pesadelo em seu colo. Ela observava a algarraza do alto de uma plataforma improvisada, empoleirada em sua poltrona preferida e nada convencional, confeccionada com bichos de pelúcia de todo tipo, de valor inestimável, projetada pela famosa dupla de designers brasileiros. Era limitado o número de pessoas que possuíam uma peça igual. Portanto, somente a própria dona tinha autorização de ocupá-la. Seu figurino havia mudado outra vez. Ela irradiava dentro de um look absurdamente escandaloso. A lingerie nude que vestia agora escondia, unicamente, suas intimidades. E estava tão colada nela que parecia que havia sido pintada em seu corpo. Um robe refinado, confeccionado em modelagem reta, com fechamento transpassado por amarração, babados de tule e muita, muita transparência, dava um toque de requinte e mistério, fazendo da líder das millernáticas a figura mais poderosa e sexy daquele gramado. Destaque para o número inacreditável de joias que ela ostentava como se fosse norma de vida, definitivamente um privilégio para poucos. A única coisa esquisita era a máscara hidratante pantanosa cor de argila que cobria a superfície do rosto. Em contrapartida, o turbante de estampa de serpente que escondia seus cabelos loiros e o salto alto scarpin meia pata, confeccionado em camurça cor bege e couro de cobra, configuravam verdadeiro luxo.

We will, we will rock you...

A alcateia inteira estava em torno de Fran. Os capoeiristas e os narguileiros, posicionados lado a lado, observando a guerra de um jeito meio pateta. O que esses imprestáveis estavam esperando para apartar as briguentas? Eu não sei. Só sei que os agentes catalisadores estavam em posição de destaque em cima da plataforma, demonstrando um suposto elo de paz entre eles.

Observei Alê primeiramente, postado atrás de Fran. Ele havia trocado de roupa e usava agora uma vestimenta despojada de cor clara, perfeitamente asseada e alinhada. Seus músculos cor de ébano perfeitamente definidos estavam untados pelo suor e refletiam a luminosidade ao redor de si. Fui tomada por um pensamento bobo. Como Fumão teve coragem de meter-se numa briga contra um homão daquele tamanho? Tem que ter coragem.

Falando no asiático, concentrei nele minhas atenções por alguns segundos. Ele estava sentado na beira da plataforma com cara de enfezado, coladinho na poltrona de ursos de pelúcia. A cena a seguir foi engraçada. Depois de soprar um anel de fumaça, ele reclinou o tronco nu para trás, encostou a cabeça na coxa esquerda de Fran e então fez dela seu travesseiro. Eu tenho a impressão que os pequenos olhos de Fumão recaíram sobre mim no instante em que Fran concedeu a ele um carinhoso cafuné, despenteando seu estilizado cabelo preto.

We will, we will rock you...

Desci amendrontada dois degraus da escada da entrada principal e sentei-me nela. Enquanto as millernáticas contagiadas pelo espírito de guerra caiam como peças de dominó, eu tentava localizar rostos conhecidos observando a batalha a uma distância segura. Localizei vários sem esforço. Joice Polizel — seguida de perto pelo enérgico e inseparável time de fanfiqueiras — atirava os travesseiros no ar num ataque tão brutal que fazia a fronha voar. Betânia Salmeirão, com seu engenhoso esquadrão de hackers, provava ser tão ágil e perigosa no campo de batalha quanto um pacote de vírus. Alzubra, Ghaniyah e Kalila lutavam com determinação e garra ao lado de outras estrangeiras de diversos países diferentes, dentre elas, uma garota que se destacava pelos movimentos acrobáticos dignos de ginasta olímpica. Olé, gritavam a cada desvio dela, olé!

Nesse momento, uma voz grave explodiu em meio ao caos.

— Quanta flexibilidade temos aqui!

Era Menina Brenda, que borbulhava cintilante, montada em cima do touro mecânico, no meio do fogo cruzado. Sua voz amplificada por um megafone inteiramente rosa com adesivos em seu entorno fazia dela a figura mais ressoante do gramado.

Um fato curioso; Enquanto Brenda orquestrava a balburdia, duas mascotes faziam coreografias inacreditáveis de street dance como se estivessem num jogo de basquete. O que será que significava aquela fantasia de boi com uma argola decorativa no septo? E aquela fantasia de jacaré, com aquela peruca lilás esquisita, parecida com uma crina de unicórnio?

Fiquei matutando um montão de doidices até a ficha cair. Vai parecer piração minha, eu sei, mas se não estivesse louca, as personagens eram outra metáfora viva diante dos meus olhos. Afinal, quem nunca cantou a cantiga da Bruxa Cuca ou a cantiga do Boi da Cara Preta para forçar um bebê dormir?

We will, we will rock you...

Ao longe, avistei uma cabeça surgir de dentro de uma barraca de camping e retornar para o interior dela bem depressa. As bolhas e as plumagens que se misturavam no ar causavam um ruído visual intenso. No entanto, reconheci aquele rosto de delicada beleza.

— Irene! — gritei seu nome escandalosamente, na esperança de ser escutada.

Segundos depois a cabeça da filha do senador ressurgiu no corte da barraca, meneando de um lado para o outro, procurando quem a havia chamado.

— Irene, aqui! Aqui! — o tom da minha voz tornou-se tão tênue diante da euforia generalizada que precisei gritar mais alto que da primeira vez, levantar do degrau da escada e acenar.

— Vick! — ela saudou-me de volta quando me viu, acenando uma mão.

— Fica aí! — gesticulei com os braços. — Eu vou tentar chegar aí, tá.

Em resposta ela acenou um joinha maroto e enfiou-se de volta para dentro da barraca.

— Ótimo! — eu murmurei.

Percorri meus olhos por todo o gramado para ver se havia algum cantinho seguro que me levasse até lá. Depois de concluir que não existia cantinho seguro nem aqui nem na china, me revesti de coragem e avancei depressa em direção à barraca, me desviando dos travesseiros, um olé seguido do outro.

— Não é que sou boa nisso! — me precipitei.

Obviamente a minha alegria durou pouco, muito pouco. Meu corpo franzino logo foi atingido por um golpe de travesseiro certeiro. Penas esvoaçaram ao redor de mim. Tentei sair de fininho, entretanto, vapt, outra travesseirada chicoteou bem no centro da minha barriga. Após o baque, perdi o equilíbrio e rolei pela grama.

— Fim de jogo pra você, meu anjo! — disse a minha adversária, afastando-se.

Fiquei por um tempo atirada ali, de qualquer jeito. Avistei Fran em seu trono de pelúcia rindo de mim, a expressão delineada em seu rosto era um misto de orgulho, satisfação e indiferença. Ela está chateada comigo, conclui diante do descaso. Se não estivéssemos brigadas, ela certamente escorraçaria da festa qualquer uma que ousasse relar um dedo em mim. Será que fiz certo vomitar aquelas palavras tão duras nela?

Senti o coração acelerar de pânico no instante em que a voz amplificada de Brenda martelou em meus ouvidos.

— Atenção, bebês, muita atenção! — ela vociferou. — Só lembrando que o objetivo principal da nossa guerra de travesseiro é nocautear todas as oponentes que estiverem no campo de batalha. Vence a última que aguentar ficar em pé. Sem moleza, queridinhas. E força na peruca.

Uma tenebrosa sequência de surra de travesseiro se seguiu após eu me levantar. As millernáticas lutaram umas contra as outras sem nenhum critério aparente, de sete a dez pancadas em cada uma delas antes de beijarem a grama. Uma vintena tentou finalizar comigo. Por um segundo pensei em arredar o pé, mas permaneci firme e forte na luta. Fui esperta durante uma briga apelando para o truque da convulsão. Depois fui pra cima da minha adversária derrubando-a na água de um chafariz ornamentado com uma cascata luminosa.

Depois lutar muito, eu alcancei barraca, totalmente sem fôlego.

— Vick, que bom te ver! — Irene disse alegremente. — Pensei que não conseguiria.

Fiz uma expressão de espanto quando vi que as irmãs Trepiche também estavam aconchegadas no cubículo.

— O quê vocês fazem aqui?

Foi Sasha quem respondeu.

— Francine pediu para a gente preservar a integridade física da Irene até a guerra de travesseiro terminar. Se não fosse por causa dessa ordem, a gente estaria lá guerreando também. Né não, Maitê?

— Pode crer. Essa festa tá cheia de vacilona que eu adoraria socar até afundar a cabeça na terra. 

Irene virou-se para mim e prosseguiu atenciosa.

— Disseram-me que você foi vista chorando no meio da festa. Fiquei preocupada contigo. Procurei você em tudo quanto é canto e não achei em lugar nenhum. Pensei que tivesse ido embora sozinha da festa. Onde você estava?

— Nem te conto! Acho que passei dos limites.

— Como assim? — Sasha interveio. Ela estava abraçada a um urso de pelúcia cor caramelo quase da metade do tamanho dela. — Pode se abrir com a gente! O que aconteceu?

Elevei uma mão até a testa e a outra ao coração num gesto de desapontamento total.

— Eu dei PT. Apaguei dentro da banheira da Fran e perdi totalmente a noção de tempo e espaço. Acho que entrei em coma alcoólico, não sei. Foi horrível. Nunca tinha enterrado o pé na jaca numa festa antes. Estou tão decepcionada e ofendida comigo mesma. Minha tia vai querer morrer quando descobrir que criou uma raiz encardida dentro do próprio lar.

— Consigo imaginar o remorso que você está sentido. Minha irmã e eu já passamos por isso com nosso pai algumas vezes. Mas fica fria. Todos os segredos revelados na festa do pijama permanecem na festa do pijama. Sua tia não vai saber de nada.

— Eu não tenho tanta certeza disso.

— Por que diz isso? Continua não confiando em nós?

Tirei da cabeça o gorro de tricô e revelei o estrago que fizeram em meu cabelo.

— Como vou explicar isso a ela, Sasha? Me diz? Como?

Maitê arregalou a boca, tamanho foi o espanto.

— Misericórdia!

Irene me encarava com o mesmo horror.

— Vick, o que você fez?

Meu coração acelerou.

— Eu? Eu não fiz nada! É bem verdade que bebi pra caramba, mas não a ponto de passar a tesoura no meu próprio cabelo... Eu sempre gostei dele comprido.

— Se não foi você a autora do picote quem foi?

Ao vestir o gorro de volta notei que minhas mãos estavam trêmulas.

— Não faço a menor ideia. Quando acordei do coma alcoólico meu cabelo estava desse jeito. Acho que fui vítima de uma tremenda sabotagem, só pode. Não consigo pensar em outra explicação possível. Mas por quê? Por que alguém faria isso comigo?

— Você precisa se acalmar, Vick! — Sasha falou.

Irene me ofereceu um copo dourado com canudo.

— Quer beber um pouco do meu chá gelado? É medicinal. Ele me ajuda a relaxar e ameniza os espasmos ocasionais em meu corpo, provocados pela síndrome de Tourette. Beba um gole. Eu tenho certeza que você vai se sentir melhor.

Tomei o copo da mão dela.

— Obrigada. Você é tão gentil!

Foi impossível evitar uma careta após provar do chá.

— Oh, perdão — Irene falou. — Eu me esqueci de avisar. O sabor desse chá é um pouquinho... Amargo.

— Sem problemas. Agora alguém me explica que loucura é essa lá fora? Tô perdidaça.

Foi Irene quem começou a responder.

— Era para ser só uma guerra de travesseiro, mas, de repente, tudo saiu do controle.

— Isso não faz o menor sentido!

— Todas querem o prêmio! — Maitê continuou. — Quer um sentido maior do que esse?

— De que prêmio você está falando?

— A campeã da guerra de travesseiro, a última a fica em pé, vai ser premiada com uma viagem para Brotas com tudo pago. E será recepcionada pelo Felippe Miller na fazenda dele. E não sei vocês. Mas pra mim isso é tão inacreditável que até parece mentira.

— Então é por isso que todas estão se descabelando lá fora, lutando como se estivessem na terceira guerra mundial.

— Pois é — Sasha falou. — Sorte a nossa que aquela equipe de TV já foi embora. Demos um jeito de expulsá-los daqui antes da guerra de travesseiro começar. Já pensou que vexame seria se eles filmassem esse quebra pau?

— De que forma vocês expulsaram eles?

— Tacos de beisebol! — Maitê disparou. — Danificamos os retrovisores do carro da emissora com tacos de beisebol.

— Vocês o quê?

— Foi necessário, Vick — Sasha explicou. — Eles estavam se recusando a irem embora, alegando que estávamos impedindo o direito de liberdade de impressa.

Uma pontada no peito me pegou de jeito. Agarrei o copo de chá gelado e tomei outro gole para relaxar. Dessa vez não fiz careta quando o gosto amargo bateu na língua.

Nossa conversa foi interrompida por uma explosão de gritos externos. Mergulhadas na penumbra, vislumbramos silhuetas externas bruxulearem sobre o revestimento da barraca como um caótico teatro de sombras. Ali, dentro do reduto da filha do senador, estávamos metaforicamente em paz, entretanto, lá fora, acontecia aquilo que fermentava de maneira ininterrupta o caos no mundo. É como nos livros que abarrotam a estante do ogro-literatus.

Duas silhuetas postadas defronte à barraca fizeram-se ouvir. Era um sinal. Um sinal de alerta vermelho máximo.

— Arrancar sangue é contra as regras! — aconselhou a sombra com contornos perfeitamente delineados. — Você pode ser punida e ter o nome riscado da salada mista hot.

— Tô nem aí! — a outra sombra disparou em tom agressivo. — Aquela fanfiqueira pervertida me plagiou. Eu vou comer a orelha dela e vai ser agora!

Nossos olhos quase saltaram para fora das órbitas.

— Eu acho que estão falando da Joice — Maitê sussurrou.

— Eu também acho! — a irmã concordou.

— Gente, chega! — falei. — Essa festa rompeu todos os limites possíveis da insanidade com essa guerra de travesseiros. Era pra ser uma competição, okay, legal, mas pelo visto tem millernática se aproveitando da ocasião para fazer acerto de contas. Isso é perigoso. Alguém precisa intervir e pôr um ponto final nessa bagaça!

Irene me apoiou.

— A Vick tem razão. Chega de poça de sangue por hoje. Já basta o Carlito, pobrezinho, que voltou todo arrebentado da farmácia.

— Como é que é?

Eu não estava preparada para essa notícia. Tanto que cuspi o chá gelado num gesto involuntário, encharcando Maitê inteirinha.

— Carlito e Guto estão na cozinha — Irene respondeu. — Tem meia hora que eles chegaram.

Não era por acaso que meu coração estava me sufocando tamanho era o aperto em meu peito. As razões para isso ficaram claras depois que me desloquei depressa de volta ao interior da residência da família e me reencontrar com Carlito e Guto na cozinha.

Fui devastada por um misto de agonia e revolta diante da cena. Carlito tinha um galo enorme na testa, um olho roxo e um corte no supercílio direito. Ele ocupava uma cadeira e segurava com uma das mãos um saco de batata palito congelada para estancar o sangue dos lábios e nariz.

Depois de abraçá-lo encarei Guto. Ele estava recostado com o tronco nu no balcão principal da cozinha sem danos físicos graves. Palavras não foram necessárias até então. Eu simplesmente fui até ele e o abracei também. Um abraço mais demorado e sentimental, sobretudo porque sentir o calor da energia jovial dele e tatear a textura macia de sua pele parda bem bronzeada ainda mexia muito comigo. Sobre seus ombros, vi sua t-shirt escura suja de sangue em cima do balcão. Sangue do Carlito será?

Imediatamente coisas horríveis passaram pela minha cabeça. Meu estômago embrulhou, meu cérebro deu um nó, uma intuição ruim arrepiou meus ossos. O que será que aconteceu com eles?

Consuelo entrou na cozinha segurando um kit de emergência.

— Encontrei o kit!

De dentro da caixa branca Consuelo retirou o soro fisiológico, usando-o para limpar e lavar o ferimento de Carlito. Depois fez um ponto falso no local atingido usando gaze e esparadrapo.

— Corte superficial, menos mal — ela revelou plenamente sã, outra mulher. — Farei um curativo oclusivo, mas vocês deveriam ter ido ao Pronto Socorro — pontuou categórica.

Fiquei tão impressionada com o profissionalismo dos primeiros socorros prestados pela Consuelo, que cogitei a possibilidade dela ser formada em enfermagem.

— Que feio! Dois brotinhos tão bonitos metendo-se em briga de rua.

Olhei de relance para Guto.

— Calma, tá — tentou amenizar. — Amanhã estaremos todos rindo disso.

— Rindo? — virei meu rosto de modo a encarar Carlito. — Por favor, digam-me que existe uma boa explicação para esse incidente.

Os dois mantiveram-se estranhamente silenciosos.

Puxei uma cadeira e me sentei nela.

— Anda, tô esperando. Isso aconteceu na casa do Vlad ou depois de vocês saírem de lá?

À medida que eu falava Guto ia perdendo a cor.

— Depois — ele respondeu notavelmente desconfortável.

— Depois?

— Nós passamos numa choperia no trajeto de volta para cá.

Arqueei uma sobrancelha.

— Choperia? Desde quando você passou a consumir bebidas alcoólicas? Pensei que fosse evangélico.

Carlito saiu em defesa de Guto.

— Desencana, guria. Ele topou meu convite por educação. Foi um gesto de gentileza, só isso.

— Não me vem com essa, tá! Até onde sei vocês nunca foram amigos.

Carlito deu de ombros, sorrindo de lado.

— Agora somos!

Revirei os olhos, tentando me manter calma.

— Certo! E aconteceu alguma coisa nessa chopperia, eu suponho.

— Uma saudável troca de ideias brindada por uma cena de assédio moral, piadas escrotas e atos violentos e homofóbicos.

— Eu agradeceria muito se você fosse mais especifico.

— Aconteceu que um bando de playboyzinhos héteros intolerantes e retardados que tava lá se sentiu no direito de nos agredir gratuitamente. Foi isso que aconteceu. Tá bom pra você? Ou precisa ser mais específico?

— Precisa. É lógico que precisa. Tem muito buraco ainda nessa história.

Guto retomou a palavra.

— O que aconteceu na choperia foi o seguinte. A gente já estava prestes a ir embora. Mas antes resolvi levantar da nossa mesa para usar o banheiro do estabelecimento. Quando retornei do banheiro Carlito não estava mais na mesa. Depressa fui lá fora e vi que ele estava no centro de uma roda de gente, sendo empurrado pra lá e pra cá por um bando de otários, assustado, com o nariz e a boca sangrando. Eram dez contra um. E ninguém fez nada, ninguém o defendeu. Meu sangue subiu pra cabeça quando vi o gorro do Carlito voar depois de ser atingido por um sopapo. Comecei me aproximar da confusão toda e ouvi um cara lá gritar, "Não proteja esse saco de merda, camarada. O cheiro pode pegar em você". Foi então que parti pra cima dos agressores. Eu sei que isso foge de todos os princípios nos quais acredito, mas não consegui controlar minha raiva. É bem provável que daqui a pouco estará na internet, um monte de gente me filmou quebrando a cara de um maluco lá.

Juntei as sobrancelhas, advertindo-o.

— Você endoidou de vez é? Como você pôde agir assim, Guto?

— Eu...

— Não era mais fácil tirar o Carlito de lá e chamar a polícia? Santo Deus, eu sempre admirei seu autocontrole. Sinceramente, não estou te reconhecendo mais.

— Foi uma prestação de contas. Um momento atípico que não vai se repetir. Eu juro.

— Por que atípico?

— Porque o babaca que fez o gorro do Carlito voar era o mesmo babaca que filmou a gente ano passado no portão do ENEM. Compreendeu agora os motivos do meu descontrole? Consegue imaginar o que senti vendo Carlito ser vítima do mesmo acéfalo que um dia humilhou a garota que mais admiro no mundo?

É inacreditável o número de indivíduos que se estrepam retribuindo más ações por causa desse desejo mórbido de vingança. Bem lá no fundo eu compreendi Guto. Sua dedicação total com os treinos de capoeira sempre foi anormal. Não me surpreenderia se todos esses meses se dedicando ao esporte fosse uma maneira dele se preparar para uma revanche contra o babaca do ENEM, muito embora agir com crueldade de acordo com as emoções não aliviaria as próprias magoas, disso tenho certeza. Depois de tantos anos preso dentro do armário da negação, acredito que ele encontrou em Carlito um reflexo para espelhar-se. Estou testemunhando uma amizade surgir, e acho que estou feliz por eles. Foi por isso que sorri simplesmente e pedi a Guto outro abraço apertado. E ali fiquei agarrada nele, enquanto riamos das caras e bocas de dor que Carlito fazia devido aos ferimentos, entre outras amenidades.

Até que subitamente fui arrebatada por uma sensação de afogamento, de facada nas costas. Um detalhe no pescoço de Guto tão sutil que passou quase despercebido por meus olhos, mas ao mesmo tempo tão gritante que fez com que meu cérebro fizesse centenas de associações lógicas.

Grilada, soltei-me imediatamente dele e depois encarei Carlito, controlando as emoções.

— Posso fazer mais uma perguntinha apenas para desencargo de consciência?

Eles assentiram em silêncio, entreolhando-se com olhos carregados de culpa e cumplicidade.

— Por favor, eu quero que mandem a real. Vocês transaram?

Um silêncio comprometedor se seguiu.

— Foi o que eu pensei!

Andei em direção à porta da cozinha, mas Guto me puxou de volta pelo braço.

— Vick, vamos conversar...

Fiquei totalmente fora de mim.

— Você não tem vergonha de mentir de novo depois de receber meu perdão, seu lazarento?

— Tente entender o meu lado. A carne é fraca.

— Você é um cachorro mentiroso, isso sim!

Carlito interveio.

— Segura a onda aê, guria. Ninguém mentiu. Nós apenas... Omitimos um detalhe desinteressante.

— Ah, sim, claro, um detalhe desinteressantíssimo. Pra vocês, né. Porque pra mim não.

— Não fizemos nada de errado.

— Não fizeram? Quer dizer que você acha isso certo? Ir pra cama com o Guto? Vem cá, você pensou em mim em algum momento?

Carlito se aproximou de mim.

— Vick! Você está exagerando.

— Não toque em mim, Carlito. Não toque em mim!

— Vick...

— Fique ciente que hoje você me decepcionou demais. Eu não esperava essa trairagem vinda de você. Não esperava!

Coitada da Consuelo. Ela assistia a briga sem saber o que fazer.

— Trairagem? — Carlito riu de nervoso. — É totalmente tragicômico ver você tratando o Guto como se fosse propriedade sua. Vocês terminaram, esqueceu? Ele é livre.

Em resposta, meu semblante se fechou.

— Como você teve coragem, Carlito? Esse embuste é meu ex!

— Disse bem. Ex! EX, Vick. Ex! Portanto, por favor, pare de drama.

Não me dignei a tréplica. Não me dignei, pois é necessário entender que, de todos os laços que criamos na vida, os mais difíceis de desmanchar são os amigos. Eu, por exemplo, sempre compartilhei abertamente minhas fragilidades com meus amigos, sem medo de ser julgada ou moralizada, de perder o jogo, de sair sem nada, de desperdiçar meu tempo com alguém que não merecia, e principalmente, sem medo de ser traída. Isso porque acredito que melhores amigos são uma extensão da gente, pois eles sabem e conhecem o íntimo dos nossos pensamentos de uma maneira que muitas vezes só de nos olharmos nada mais precisa ser dito. Mas hoje estou vendo o quanto fui estúpida por não enxergar o tipo de pessoa que estava esse tempo todo ao meu lado.

No íntimo, sei que não posso me sentir traída por Carlito ter ficado com alguém que não é mais meu. Além disso, sei que nem ele e nem Guto tiveram a intenção de me prejudicar ou de me humilhar. Eu sei também que deveria ser mais madura e entender que eles gostam de meninos e que eu jamais teria como competir com isso. Contudo, qual foi a real necessidade deles tentarem esconder aquele fato de mim, sendo que, inconscientemente, a culpa de boa parte do que aconteceu de deplorável comigo naquela noite é unicamente dos dois? Se ao menos um deles tivesse retornado minhas ligações talvez eu não tivesse surtado de tanta preocupação. Se eles estivessem aqui do meu lado talvez eu não ficaria tão chapada e entrado em coma alcoólico. E meu cabelo não teria sido repicado e não precisaria usar agora um gorro de tricô ridiculamente cafona na cabeça por não estar me sentindo bem com a minha aparência. Dois marmanjões sabem se cuidar perfeitamente bem sozinhos, lembrei Fran dizer. Eu não sei o dia de amanhã, entretanto, por hora, a única coisa que eu desejava de Carlito e Guto era distanciamento.

— Vocês querem um exemplo verdadeiro de algo totalmente tragicômico?

Procurei no interior dos armários da cozinha o liquidificador até encontrá-lo. Depois peguei uma coca-cola aberta na geladeira e o sorvete de floresta negra no refrigerador. Bati os dois ingredientes juntos e despejei a combinação obtida no copo de vidro mais bonito que encontrei.

— Bem, eu vou contar. Ter magoado injustamente minha melhor amiga para defender vocês dois.

Fiz uma pose com o copo na mão, fingindo uma estabilidade psíquica perfeitamente equilibrada.

— Vou me retirar agora e não quero ninguém me seguindo.

Carlito tocou meu braço.

— Vick, não faz isso. A gente é amigo...

Virei-me, parando.

— Amigo não faz o que você fez. Porque amigo é amigo. E você não é amigo. Só finge ser. Você é vacilão. E vacilão é vacilão. Com licença.

Eu li uma revista teen que exorcizar os demônios é uma ação positiva para nós garotas, pois leva a uma interação muito agradável e positiva entre a gente, fortalecendo e tornando profunda a nossa relação em longo prazo. Longe da cozinha, parei de andar e dei uma olhada geral nos ambientes conjugados da casa. Bem ali, me deparei com três finais felizes que de alguma maneira confirmava que tal teoria era altamente verdade.

O primeiro deles foi descobrir que a guerra de travesseiro lá fora havia sido interrompida por força maior. O que nos leva ao final feliz de número dois: Os clones de Francine Mestrinner haviam regressado para o interior da residência e inacreditavelmente interagiam na mais perfeita harmonia como se nada houvesse acontecido, sem concussões, músculos rasgados ou ferimentos internos. E por fim, o final feliz de número três: As orelhas de Joice Polizel estavam intactas.

Joice me deu tchauzinho no instante em que passou por mim enrolada em uma toalha de banho.

— Oi, devoradora!

Espera um instante! Por que todo mundo estava ensopado dos pés a cabeça se lá fora não havia caído um chuvisco sequer?

Encostei-me ao corrimão da escada que dava acesso ao piso superior e observei todas aquelas garotas despindo-se de seus pijamas molhados e vestindo peças secas. Alguns minutos depois, Fran surgiu na porta de entrada com o look enxuto e caminhou na direção da escada com menina Brenda ao seu lado. Fui ao seu encontro, surpreendendo-a com um demorado abraço. Como eu estava com um gorro que cobria toda a minha cabeça, ela não percebeu meu cabelo cortado.

— Tá doida, criatura? — Fran indagou. — O quê deu em você? Pensei que estivéssemos brigadas. Ou essa é sua forma de ficar de bem?

Verdade seja dita: Eu e Fran podemos discordar de muitas coisas, desde valores até filosofia de vida. Eu posso me irritar às vezes com seus "eu mereço", "eu quero", "como ousa me contrariar", mas preciso reconhecer que desde o dia em que nos conhecemos, minha vida cinzenta e monótona tornou-se divertida e multicolorida.

Dei a ela a vaca preta que pediu.

— Aqui, pegue! Fiz especialmente pra você. Usei sorvete de floresta negra, conforme você me pediu. Espero que tenha ficado bom.

— Hmmmmm, que deliciaaaaaa!

Fran alongou a sílaba final da palavra delícia com uma expressão tão alegre e sincera que a máscara pantanosa ressecada em seu rosto chegou a criar rachaduras.

Pensei nos dois ordinários que deixei para trás, na cozinha.

— Eu ainda estou um pouco chateada com você. Mas acontece que descobri da pior forma possível que você estava coberta de razão.

— Do que você está falando?

Dei de ombros, sorrindo misteriosamente.

— Aah, deixa pra lá. Não vale a pena dar importância para detalhes desinteressantes. Sem ressentimentos?

— Sem ressentimentos!

— Ótimo. Vem cá, por que tá todo mundo encharcado? O que houve lá fora?

— O que houve? Menina! Nem eu sei o que houve.

— Como assim, Fran?

Menina Brenda se pôs na conversa, encarando-me com olhos sorrateiros.

— Ninguém sabe explicar. É um caso que terá que ser apurado. Até agora a única certeza que temos é que alguma pestinha acionou os chuveiros hidráulicos do jardim durante a nossa guerra de travesseiro. Com qual finalidade? Não sabemos. Mas haverá punições severas para todas que estiverem envolvidas nesse ato de vandalismo que interrompeu o andamento da nossa competição.

A maçã não cai longe da árvore! Enquanto Brenda explicava superficialmente as punições que seriam aplicadas para as culpadas da ação, meus pensamentos divagaram para bem longe da conversa. Isso aconteceu porque minha atenção foi fisgada, à distância, por um contente trio de garotas que entrou no recinto. A explosão de gargalhadas e toques entre elas me fez lembrar, vagamente, Carlito e eu durante nossas crises de riso.

O trio acenou disfarçadamente para mim. Irene, Sasha e Maitê. Foi então que saquei tudo. Água! Foi dessa forma que o gerente do supermercado conteve a euforia das millernáticas durante o Ato do Desapego. E foi dessa forma também, que suas filhas, junto da filha do senador, transformaram a guerra de travesseiros em um lamaçal de galinhas depenadas. Claro que nunca contarei isso para ninguém. Afinal fui ensinada que todos segredos revelados na festa do pijama devem permanecer na festa do pijama.

Fran agarrou-se no meu braço e subimos a escada em direção ao quarto dela.

— Vem com a gente, Vick!

— Pra onde?

— Pro quarto. Quero que você seja a primeira a ver o look libidinoso que reservei para a salada mista hot.

E lá fomos nós.

No quarto, enquanto Fran estava no banheiro com menina Brenda removendo a argila pantanosa do rosto, analisei a lingerie que Fran usaria logo mais estendida sobre a cama, um conjunto tipo corpete na cor vinho, com busto estruturado com aro e bojo. Uma máscara de renda de mesma cor que estava ao lado da roupa íntima me chamou a atenção. Coloquei o adereço no rosto e fui até o espelho da porta do closet para encarar minha imagem refletida, só para ter certeza o quanto eu era antissensual.

Eis o que eu disse para a Vick refletida no espelho:

— Parabéns garota! Se você não tivesse se preocupado tanto com essa brincadeira provavelmente não teria sido atingida pela avalanche de insanidades que te arrastou para dentro da banheira do vexame, das desilusões e dos segredos.

Após eu retirar máscara do rosto, um grito ensurdecedor e extenso, emitido do banheiro do quarto, se fez ouvir.

Depressa, parei na batente da porta do banheiro.

— O que aconteceu?

Menina Brenda reclinou-se para trás para que eu visualizasse a cena. Então, o susto. Fran estava jogada no piso úmido, chorando e esperneando como uma criança assustada, sua expressão facial, antes majoritariamente bela, havia sido erradicada pela máscara de argila. Mantive-me travada após o impacto da cena. Como foi possível acontecer aquilo sem que ela tenha sentido algum tipo de formigamento enquanto estava com aquele troço fedido em seu rosto?

Não encontrei, diante do verde hediondo que se transformou sua pele branca e das inúmeras lesões cutâneas espalhadas, uma resposta para tal pergunta ou até mesmo palavras eficazes que pudessem acalentar sua dor.

Fran pirou totalmente.

— Menina Brenda, o que você fez comigo? Você me garantiu que o produto era excelente e que me deixaria linda como uma princesa e agora eu tô parecendo a filha do Shrek.

A expressão de Brenda era de desapontamento.

— Estou tão devastada quanto você, Francine! Não faço ideia como isso foi acontecer logo com você.

Tentei conduzir a situação com sabedoria.

— Brenda, por acaso você pesquisou relatos sobre reações alérgicas de pessoas que usaram esse produto?

Brenda ficou ofendida.

— Que tipo de pergunta é essa? Você acha que por eu ser loira sou intelectualmente inferior? Fique sabendo você, que-ri-di-nha, que a argila do Sri Lanka é um produto de embelezamento natural extremamente conceituado no mundo todo.

Revirei os olhos.

— Quem te disse isso?

— O tio do camelô. Comprei essa argila hoje de manhã. Na feira de rua.

Fran esbugalhou os olhos e um grito tão agudo e ensurdecedor quanto o primeiro se fez ouvir outra vez. Um grito tão estridente que foi capaz de estraçalhar todos os espelhos do banheiro e do quarto em centenas de cacos. Mas também pudera. Fran era do tipo que preferia encarar a morte a ter que usar um cosmético de feira de rua.

Certeza que esse grito reverberou pela casa toda, porque segundo depois Alê e Fumão surgiram na porta do banheiro e com a ajuda deles retiramos Fran dali de dentro. Sentei com ela na cama e comecei a distribuir funções para todo mundo que estava presente no aposento.

— Brenda, por favor, desce lá e busca um copo d'água. Precisamos acalmar a Fran.

— Okay!

— Alê, por gentileza, localize o Carlito e pede pra ele ligar para o pai da Fran. O pai dela é médico. Certamente vai saber orientar a gente como proceder.

— Tudo bem, já tô indo.

— Fumão, por favor, você poderia descer e avisar todo mundo que a salada mista hot está cancelada?

— Aham!

— Valeu!

Fiquei a sós com Fran no quarto.

— O que faremos agora, Fran? Me diz, o que faremos?

De repente, uma voz soprosa e trêmula ressoou no silêncio como um conselho sábio. Era Consuelo, que nos observa com seus olhos de coruja, encolhida na porta do quarto.

— Ela precisa ser levada urgentemente ao hospital, florzinha. Se a alergia dela evoluir para um estado mais grave pode provocar um edema de glote seguido de uma apneia.

— Fale o português claro, Consuelo.

— A garganta dela vai inflar feito um balão de ar, florzinha. Podendo levá-la a óbito por parada respiratória.

O terceiro grito que escapuliu da garganta de Fran quase botou a casa abaixo. Rapidamente, organizamos-nos para levá-la ao hospital da cidade. Vaidosa sem igual, ela vestiu, antes de sair da casa, a cabeça da fantasia da Cuca para que ninguém lhe visse feia.

Chegando lá fui abatida por uma forte agonia. Ficamos duas horas sentados, Carlito, Guto, Alê, Consuelo, Betânia e eu, apreensivos por informações sobre o quadro clínico oficial de Francine. Sem me mexer na longarina em que estava sentada, observei a distância o momento em que Carlito e Guto foram até a máquina automática de café expresso. A marca roxa de chupão no pescoço de Guto estava ainda mais escura agora do que antes.

Guto colocou uma bolachinha na boca de Carlito.

— Tente adivinhar o que eu tô pensando agora?  

— Hum, sexo? — Carlito chutou, mastigando.

— Não! Errou.

— O que é então?

— Poesia.

— Poesia?

— É, estou criando na minha mente um verso pensando em você.

— É sério?

— Sério.

Carlito retribuiu uma bolachinha na boca de Guto e depois cochichou.

— Guarde pra mais tarde.

Betânia, que estava ao meu lado assistindo a cena comigo, disse baixinho só para que eu escutasse.

— E não é que eles são perfeitos juntos. Parecem até casal de filme pornô gay.

Fiquei chocada.

— Eu não creio que você já viu filmes com pornografia gay.

— Foi só uma vez. Só pra matar a curiosidade. E não tem nada de errado nisso. Não vai dizer que você também não fica excitada só de pensar no que dois rapazes bonitos são capazes de fazer durante a intimidade?

— Não quando um deles é meu ex-namorado.

— Foi mal. Quer que eu te conte o que eu fico imaginando quando vejo dois homens gatos juntos?

— Não.

— Um belo de um sanduíche. Comigo no meio deles, claro.

— Você não está tentando me fazer rir, está?

— Qual é, Vick, não fique chateada assim. Rapidinho você arranja um namorado novo. O que mais tem por aí é homem solteiro sedento dando sopa.

— De fato. Mas são poucos os que valem a pena.

Mais tarde, aproveitei o momento em que o medico plantonista passou rapidamente pela recepção para arrancar notícias dele. Porventura, era o mesmo médico que me deu alta após os dois dias intermináveis que fiquei hospitalizada por intoxicação exógena.

— E então doutor, como a minha amiga está?

— Sua amiga está fora de risco. Demos a ela um antialérgico injetável e soro para expelir a substância que foi absorvida pela pele. Foi um acidente grave, não vou mentir, mas totalmente contornável.

— Graças a Deus! Orei tanto.

— Sua amiga teve sorte e não deve ficar com sequelas.

— Onde ela está? Posso vê-la?

— Ela acabou de sair da sala de curativos e foi encaminhada para a sala de observação. Fica no final do corredor, segunda porta, à direita. Pode ir lá. Eu autorizo a sua entrada.

— Tá. Obrigada. 

Localizei a referida sala e pulei na cama que estava Fran, abraçando-lhe. Um segundo depois o médico plantonista entrou na sala com sua prancheta na mão.

— E então, como se sente? — ele perguntou a Fran.

— Sinto um pouco de ardência, doutor, mas estou bem. O senhor cuidou muito bem de mim. Suas mãos são mágicas.

— Que bom. Vou solicitar mais alguns exames, mas você pode ir se programando. Pois é possível uma alta nas próximas horas, caso mantenha esse curso de recuperação.

— Ótimo!

Durante o tempo em que fiquei na sala, Fran conversou comigo sobre curativos de membrana fibrosa, médicos plantonistas gatos e sabotagens. Isso mesmo, sabotagens.

— Isso é uma acusação bastante séria — Fran rebateu. — O que te faz pensar que alguém sabotou a argila do Sri Lanka só para me prejudicar?

Em resposta, retirei o gorro de tricô da cabeça.

— Pelo abdômen de Miller! Quem será que fez isso com o seu cabelo?

— A mesma pessoa que sabotou a argila do Sri Lanka.

— Minha Mãe do Céu! Quando a sua tia ver isso...

— Né. Vou ter que inventar uma mentira das boas se eu quiser me safar. Se eu disser a verdade ela me mata. Ou talvez morra antes, infartada de tanto desgosto.

— Quem você suspeita que possa ser o sabotador ou a sabotadora?

— Não sei, não gosto de julgar sem ter provas. Mas se eu pudesse acusar alguém, esse alguém seria menina Brenda.

— Menina Brenda?

— É.

— O que você tem contra ela?

— Nada pessoal. Eu só acho ela é um pouco estranha...

— Estranha? Vick... Ninguém nunca te disse que não é legal sair chamando as pessoas de estranhas só porque elas são diferentes?

— Não me entenda mal. Eu só não me sinto confortável de tê-la entre nós. Talvez seja lorota da minha cabeça, mas a maneira que ela fica me encarando, sei lá, é tão desconcertante. Não quero ser injusta com ela, principalmente porque é a primeira vez que conheço de perto uma mulher trans...

— Espera um pouco. Quem te disse que a Brenda é uma mulher trans?

— Você!

— Eu? Quando? Não me recordo de ter falado isso.

— Como não? Quando estávamos no seu quarto, lembra? Você inclusive comentou que a menina Brenda tatuou o rosto de Felippe Miller na região íntima após uma cirurgia. Presumo que seja uma cirurgia de mudança de sexo, certo?

Fran riu.

— Claro que não, sua boba. Ai, Vick Aires, como sua imaginação consegue ser tão fértil? Menina Brenda fez na verdade uma himenoplastia.

— Himeoquê?

— Himenoplastia. Ela foi revirginizada. Se submeteu a um procedimento estético para voltar a ser uma mocinha virgem.

— Cê tá brincando? Eu pensei que ela fosse obra de ficção científica.

— Magina. Eu sei que a Brenda parece um coach de fisiculturismo de saias, ela deve ter algum distúrbio hormonal, com certeza, mas ela é menina, como nós, biológica, por mais incrível que isso pareça ser.

— E como vocês se conheceram?

— Lembra aquele dia que ocorreu aquele corre corre com as millernáticas lá no supermercado?

— É obvio que eu lembro. Jamais vou me esquecer daquele pesadelo vivo.

— Então, nesse dia um trombadinha me assaltou e levou meu celular.

— Onde eu estava que não vi isso?

— Você já tinha ido embora com a sua tia querida, arrastada pelo cabelo...

— Nem me lembre...

— Para a minha sorte estava lá a menina Brenda que viu tudo e correu atrás do assaltante.

Fiquei passada com o ato heroico.

— E ela conseguiu alcançá-lo?

— Não apenas conseguiu alcançá-lo como também repartiu o desgraçado ao meio na porrada! Eu fiquei impressionada. E se não bastasse ter conseguido meu celular de volta, ela também me ofereceu aulas de defesa pessoal gratuitamente. Desde então nós só andamos juntas. 

— Tenho que confessar que isso foi bastante heroico. Mas não esquece que sua cara está toda enfaixada agora por causa de um cosmético que ela te deu.

— Tudo bem, você venceu. Vou seguir a sua sugestão e incluir o nome de Brenda na lista de suspeitos. Embora eu acredite que isso não tenha nada a ver com ela e sim com algum hater infiltrado no fandom das millernáticas. Provavelmente uma troup. É bem a cara delas.

— Então é isso que você acha? Que tem uma troup infiltrada entre a gente?

— Eu não acho. Eu tenho certeza! Meu faro é bom para essas coisas, você sabe. Mas grave bem as minhas palavras. Eu hei de descobrir quem armou essa sabotagem com a gente. Pode demorar dias, meses, anos. Mas eu vou descobrir. E quando eu descobrir vou devorar o fígado dessa peste pedacim por pedacim, com colherzinha de sobremesa. É. Isso não vai ficar barato. Não vai mesmo!

❋ ❋ ❋

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top