Oi
[Dezembro de 2012]
Augustine sempre foi uma menina rebelde. Não por teimosia ou uma tolice intrínseca à adolescência, mas a ideia de poder ser corajosa o suficiente para quebrar algumas regras lhe encantava. Talvez fosse essa razão de ter escolhido uma bicicleta como meio de locomoção em vez de algo motorizado – decisão tomada também graças a não tão satisfatória renda que obtinha de sua pequena floricultura.
Com o cachecol azul dançando junto ao frio da noite parisiense, a jovem mulher pedalava com uma elegância ímpar. A cena seria digna de um filme de romance, pena que nem todos na capital da França estavam dispostos a colaborar.
Quando deu por si, Augustine estava prestes a atropelar o homem a sua frente. Em um movimento rápido e quase miraculoso, o rapaz conseguiu desviar-se da bicicleta e ainda impedir o tombo de sua condutora.
Assustado, ele proferiu algo que parecia uma pergunta, mas ela tinha certeza que aquilo não era francês.
— Você tá bem? – perguntou, com um sotaque que Augustine não pôde discernir.
— Bem, sim. Você meio causou um acidente e me salvou dele ao mesmo tempo.
O desconhecido gargalhou alto, exibindo dentes brancos e levemente tortos. Um charme, pensou ela.
— De onde venho o pedestre sempre tem prioridade. Eu estava no lugar certo, você que quase cometeu um assassinato aqui – rebateu.
Augustine enrubesceu imediatamente. Ele tinha razão, foi ela que causou o quase acidente. A garota se sentiu culpada, quase envergonhada demais para sugerir o que causaria uma bagunça e tanto na vida dos dois.
— Você tem razão. Desculpa. Eu poderia me redimir?
— Como assim?
— É só um chute, mas eu acho que você não é daqui. Eu poderia te mostrar a cidade – sugeriu, internamente se repreendendo por estar praticamente convidando um desconhecido pra sair. Mas o que poderia dar errado? Muitas coisas, Augustine LaRue.
Ignorando os protestos de seu lado mais racional, a menina estendeu a mão.
— Aliás, meu nome é Augustine.
— E eu sou o Jacques – disse, fazendo menção de iniciar uma caminhada. Augustine o acompanhou, direcionando os dois (e sua bicicleta) para um de seus lugares prediletos em toda França.
— Um nome francês!
— Mãe francesa.
— Então você não é tão turista assim – sorriu, voltando sua atenção para Jacques.
Ele era alto e tinha a pele escura. Mesmo com uma expressão neutra, parecia estar sorrindo. Não devia ter mais que 24 anos, mas a barba por fazer parecia acrescentar alguns anos à sua aparência.
— Na verdade, sim. Vim à França algumas vezes, mas é a minha primeira vez em Paris. Primeira noite, na verdade.
Eles seguiram em silêncio. Jacques parando para tirar fotos, Augustine se perguntando o que estava fazendo com um estranho. Estava acostumada a lidar com turistas (a localização da sua floricultura trazia um monte deles até ela), mas nunca havia sido guia turística. Agora, considerava até em começar a ser. Desde pequena se interessava por outras culturas. Sua mente viajou aos diversos destinos que a encantavam, mas logo alguém a trouxe de volta à Cidade Luz.
— Posso saber para onde estamos indo?
— Eu não revelo meu ponto de abate para minhas vítimas, costuma ser surpresa – disse séria, arrancando outra risada espalhafatosa de Jacques. — Com essa risada nem precisa chamar por socorro.
— Uau, mal me conhece e já reclamou da minha risada. Acho que minha mãe tem razão – e continuou rindo.
Augustine estava se divertindo, tinha que assumir. No fim, seus sininhos de aviso contra o perigo se calaram. Afinal, ela tinha um spray de pimenta no bolso do casaco e alguns golpes de jiu-jitsu na mente.
Alguns passos depois, eles finalmente chegaram à Pont Des Arts. Colocando a bicicleta em um lugar perto dali, eles seguiram até um dos banquinhos de madeira no meio da ponte.
— Este é um dos meus lugares preferidos de toda França – Augustine suspirou, ela amava aquela vista.
— Linda! – disse Jacques, mas seus olhos não estavam no rio Sena, mas sim na câmera em suas mãos. Por sorte, ele não falou aquilo em francês, já que o objeto foi arrancado de suas mãos em movimento brusco.
— Uma foto minha? – a menina sorriu travessa, deixando Jacques sem graça. — A Parisiense. Hum, ótimo título. Você é fotógrafo?
— Não, é só um hobby. Sou professor de História, na verdade.
— Então eu suponho que já saiba a história por trás dos cadeados, certo?
Ele negou com a cabeça, fazendo com que Augustine iniciasse uma explicação entusiasmada sobre a lenda por trás de tantas promessas de amor.
— Pelo visto você também gosta de História, a aluna dos meus sonhos! – gracejou, empurrando levemente seu ombro contra o de Augustine.
Augustine riu com ele, apesar de não saber responder ao cumprimento de Jacques. Tanto contato físico devia ser algo relacionado à sua cultura. Já tinha observado que alguns turistas eram assim, especialmente os latinos.
— Mais exatamente a história de Paris. Desde criança sonhava em me mudar para capital. Sair de Saint Emilion foi como viajar no tempo.
Augustine explicou a Jacques sobre como veio parar em Paris. Falou dos anos juntando dinheiro para ter sua própria floricultura na capital francesa e também sobre como amava Cidade Luz. Encantado, o jovem ouviu atenciosamente cada palavra dela.
— Uma história e tanto! A minha não é tão empolgante, só decidi visitar a cidade da minha mãe e daqui a três dias vou para casa dos meus avós, em Cannes. Depois volto pra casa.
— Por falar nisso, de onde você é?
— Brasil – respondeu, o que fez com que Augustine arregalasse os olhos e abrisse o maior dos sorrisos. Levantando-se abruptamente, a menina começou a revirar os enormes bolsos de seu casaco e só sossegou quando tirou um livreto de lá. Voltando a sentar-se, Augustine apontou para uma página. Jacques, ainda sem saber se ria ou ficava assustado, olhou para a página em questão. Tinha uma planta cheia de flores vermelhas.
Jacques olhou para Augustine com uma expressão divertida no rosto. Recuperando o fôlego, a menina entendeu que ele precisava de uma explicação.
— Schlumbergera truncata. Eu literalmente procuro essa planta há anos. Nativa da Mata Atlântica do Sudeste brasileiro. Vocês a chamam de flor-de-maio.
Jacques se surpreendeu com a menina pronunciando o nome da flor em português. Ela deve gostar mesmo dessa flor.
— Você já viu uma? – Augustine o fitou com expectativa, quase como uma criança pequena quando vê algum doce.
— Infelizmente não. São bem bonitas, na verdade. Nossa, eu usou muito isso de "en fait"*.
A menina sorriu, mas seu desapontamento era visível. Jacques ficou um pouco incomodado com aquilo. A planta devia significar muito para ela.
A verdade é que Augustine não era só encantada pela beleza da flor-de-maio, a planta era sinônimo de um buraco dentro da garota. Das poucas lembranças que tinha de sua mãe, a mais viva e fresca envolvia a Schlumbergera truncata. As duas estavam sentadas no chão da sala, lendo um livro sobre flores. Era o ritual delas, enquanto o pai não chegava do trabalho, as duas sonhavam com a floricultura que pretendiam abrir. Entre os planos e anotações, liam livros sobre botânica que, além de sustentar o sonho, as ajudava a cuidar do pequeno jardim no quintal de casa. Ela lembrava claramente quando Amélie, sua mãe, levantou-se e trouxe consigo um livreto. Já sonolenta, a menina ouviu a mãe falar sobre a tal planta brasileira. Era a primeira vez que ouvira falar da flor-de-maio e também a última vez que ouviu qualquer coisa de sua doce mãe. Naquela mesma noite, Amélie deitou em sua cama, logo após dar um beijo de despedida na filha, e deixou que o câncer a vencesse.
Augustine sacudiu a cabeça em uma tentativa de afastar as lembranças tristes.
— Não faz mal. Eu... Bem, acho que já está tarde. Eu preciso acordar cedo pra trabalhar – disse, finalmente quebrando o silêncio.
Jacques assentiu.
— Talvez nos vejamos por aí – como sempre, ele sorriu pra ela que dessa vez devolveu o sorriso.
Depois de um breve aperto de mãos, os dois seguiram caminhos opostos. Jacques observou ela se afastar em pedaladas rápidas e graciosas. Suspirou, desejando que realmente a encontrasse outra vez. Durante o caminho até chegar a sua casa, Augustine se dividia em lembranças tristes e risada escandalosa do quase desconhecido.
Diferente da grandiosidade do ponto turísticos deixado para trás, os quatro cômodos que ela chamava de lar eram simples e o único lugar em todo lado esquerdo do rio Sena pelo qual podia pagar.
Depois de se certificar que havia guardado seu precioso bem de locomoção, Augustine desabou na cama. Mas, antes de adormecer, a imagem de um par de olhos castanhos deslizou sorrateiramente até seus pensamentos. Talvez fosse esse o motivo de ter acordado na manhã seguinte ostentando um sorriso.
*"En fait" é a forma francesa de "na verdade", vício de linguagem do Jacques.
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