01. Seu recado será gravado após o sinal.
Bip.
Oi, sou eu!
Achei seu número em uma agenda antiga e espero que não se incomode por eu ter ligado, é que no meio dessa nostalgia toda acabei vasculhando nesses souvenirs antigos e encontrei aquele leque de papel pintado que você fez pra mim quando eu tive a brilhante ideia de ir como Maria Antonieta na festa à fantasia da faculdade, com aquela peruca pesada e um corselet que quase me matou no processo, foi no segundo ano, lembra disso? Você apareceu de Hemingway (sabe que sempre preferi o Fitzgerald, né?), completamente contrário ao nosso combinado.
Você argumentou que o Luís XVI tinha sido um grande escroto com a Maria e com a França inteira e esse já era um motivo claro e óbvio para não usar calças marcando as bolas. Ri disso por uma semana inteira, e mesmo que nunca tenha dito, eu amei você por isso.
Por alguma razão, em algum ponto da festa, eu te olhei no meio de toda aquela gente feliz dançando como se o mundo fosse acabar amanhã, soterrado de glitter azul que vinha não sei de onde e entendi que éramos opostos demais, de mundos (e séculos) diferentes.
Mas tomamos tanto ponche de pêssego batizado com tequila, olhamos as estrelas do lado de fora do auditório, e você era bom em lê-las, interpretá-las com uma facilidade absurda, explicando os fenômenos da Astrofísica, me indicando as constelações visíveis no Céu e comentando animado sobre as auroras de Júpiter, como se fosse capaz de vê-las a olho nu.
Planejamos nosso futuro como se soubéssemos de alguma coisa, como se a perspectiva de antes pudesse se equiparar ao agora, o que parecia contestável também tinha conserto e por um segundo me permiti esquecer o errado e adorar o certo.
No fundo você sempre pareceu um desses cálculos difíceis que conseguia fazer mentalmente: a resposta exata pra tudo, o número correto e preciso de uma incógnita quase impossível de resolver.
O problema, Taehyung, sempre foi menos superficial do que fantasias que não se encaixam, monarcas filhos da puta ou a Revolução Francesa.
O que me tirava do sério era nossa concordância em discordar de tudo, mas não quero apontar os seus defeitos outra vez, ainda mais esses que sempre foram tão pequenos, a gente já fez isso e você sabe, no fundo isso nunca importou tanto.
É que analisando agora, como uma espectadora de nós dois, nossa história não tinha nada para dar certo. E você acertou de novo. Funcionou por um tempo, mas estava fadada ao fracasso, como esses romances baratos que você adorava e esses filmes clichês de roteiro mal elaborado, e se estivesse aqui, você nos compararia à uma tragédia shakespeariana, com direito a métrica e pentâmetro iâmbico pra rimar, diria que atrai os finais tristes, que prefere a verdade deles. Hiperbólico como sempre foi.
O destino deu os sinais óbvios e a gente ignorou enquanto afastávamos os móveis de lugar pra dançar, as coisas davam errado e fingíamos que era natural e que é assim que o amor funciona, dançando sob a luz artificial oscilando entre rosa, ciano e dourado daquele globo de luz pendurado no teto. Olhando daquele angulo nem sempre víamos as mesmas cores.
Meus sentidos alertavam o risco todas às vezes, mas bastava o som da sua voz colidir contra meu tímpano no meio de um eu te amo para os meus pensamentos serem silenciados de novo.
Pra falar a verdade, eu acho que tudo ainda me lembra você, toda e cada memória que ainda guardo. Ainda lembro do seu cabelo meio verde, meio azul, meio desbotado, como a parte mais quente de uma chama acesa, - a que queima mais fácil -, aquela sua camisa velha do Blink-182, a mesma que você usou no show onde nos beijamos pela primeira vez, com a bandinha punk cover tocando no palco baixo do bar de quinta que Hoseok nos levou.
E eu te amei pra caralho, em todas aquelas vezes.
Fumando seu vaper barato nas escadas de emergência do meu prédio e me falando sobre o seu passado difícil, me deixando mergulhar na parte mais escura e densa de você, me tirando pra dançar ao som de Elton John no Karaokê do vizinho desafinado do andar de baixo, odiando os anjos macabros no papel de parede da minha sala de estar, te encarando enquanto tirava a roupa, julgando seus pecados.
Mas eu me esquecia nos seus olhos, eu te escrevia como os trechos favoritos daquela playlist que nunca mais ouvi, te reconstruía de pedaços que não se encaixavam com os meus e te lia como um poema lindo, quebrado e sem rima.
E te amei do jeito que pude, o tanto que eu consegui e o meu tanto sempre foi muito.
E esse é o maior pleonasmo da história.
E só pra você saber, eu troquei o papel de parede. São só flores agora. Inofensivas e menos críticas. Peônias bonitas no meio de listrinhas amarelas. É brega, eu sei. Esse tipo de coisa é minha cara.
Que droga eu tô dizendo? Desviei completamente do rumo da conversa, me perdoa por isso e por ocupar tua noite de sono.
É que eu preciso pedir desculpas, minha tendência sempre foi me trancar aqui dentro, no meu lugar seguro, à salvo do resto do mundo. E seu amor me exigia um salto arriscado.
Eu sempre fui dessas que dá meia volta quando sente perigo iminente, já você, corre em direção ao risco calculado. Se joga de olhos fechados no abismo, aproveita a sensação do vento no rosto, enquanto eu imagino os danos, mensuro a queda lá embaixo.
De todos os seus cálculos assertivos acho que esse foi o que você nunca conseguiu alcançar o resultado. O nosso fim foi variável, não dava pra prever e me desculpa se eu te causei tanto mal assim, logo você, que me fez tão feliz.
Não queria te incomodar essa hora da madrugada, sei que faz tempo e que tô tentando reparar algo que há muito não tem conserto, mas eu só espero que esse ainda seja seu número e que você esteja aí do outro lado me ouvindo.
e se ainda estiver por aí, me desculpa.
*Maria Antonieta: Rainha consorte da França durante o século XVIII (1755 à 1793).
*Luís XVI: foi Rei da França e Navarra de 1774 até ser deposto em 1792 durante a Revolução Francesa, sendo executado no ano seguinte.
*Ernest Hemingway: Escritor americano, um dos precursores do movimento Beatnik, conhecida como "A geração perdida", em 1950.
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