01 - A visão do outro lado.

ANNA SMITH

Quando tirei minha vida achei que iria abrir os olhos novamente apenas quando pisasse no inferno. Tendo sido criada por ensinamentos religiosos, acreditei que desceria de tobogã quando o momento chegasse. Incrivelmente isso não aconteceu. Na verdade, nada aconteceu, eu simplesmente abri os olhos de novo depois de algum tempo e estava no mesmo lugar de quando cortei meu próprio pescoço, com a diferença de que agora eu estava fora do meu corpo.

Sim, eu havia virado um fantasma.

Eu já havia lido várias coisas sobre fantasmas quando era adolescente, na verdade, li e assisti muitas séries que tinham esse tipo de conteúdo, mas nunca imaginei que isso realmente poderia acontecer. Principalmente comigo. Fiquei naquele banheiro chique encarando meu corpo envolvo na sua própria poça de sangue por um tempo e nem me dignifiquei a tentar falar com meu marido quando ele chegou e encontrou meu corpo. Era óbvio que ele não estava vendo a fantasminha camarada que eu havia me tornado, seus olhos só tinham um foco: a esposa morta no chão.

Respirei fundo quando ele começou a fazer ligações enquanto encarava meu corpo, não havia nada em seus olhos que não pudesse ser facilmente entendido como felicidade. Ele estava feliz, porque a pedra no seu sapato havia sido retirada.

Nunca havia visto Dante Smith tão feliz como estava vendo agora. Escutei enquanto ele ligava para a polícia, depois para a mãe e depois para uma mulher chamada Christine, eu não me lembrava dela, pelo menos não de nome, mas quando o ouvi dizer que finalmente eles poderiam ficar juntos eu soube que deveria ser sua amante.

Não demorou muito para que a polícia levasse meu corpo e ele saísse de casa para começar a preparar meu velório, ou pelo menos para pagar que alguém fizesse isso. Enquanto tudo isso acontecia, eu aproveitei para explorar minhas novas possibilidades e habilidades como fantasma; eu não conseguia voar, mas eu ainda podia pegar as coisas. Podia me sentar numa cama sem atravessá-la e podia dar uma de poltergeist jogando coisas contra as paredes, mas não fiz isso, só verifiquei se era possível porque poderia ser útil.

Lembrei-me dos anos de abuso emocional e físico que suportei nas mãos de Dante. Lembrei-me das noites sem dormir, dos choros silenciosos, das palavras cruéis que ele me dizia e das promessas vazias que ele fazia. A única vez que eu havia conhecido o que era amor em minha vida, fora quando meu pai ainda era vivo. Ele me protegia de tudo e de todos e sempre me dizia que eu seria feliz no futuro porque ele iria me ajudar com isso, o que não ocorreu porque ele havia falecido perto de eu completar cinco anos. Quando isso aconteceu, fiquei por conta da minha mãe que precisou se casar de novo com um magnata, isso aconteceu porque ela não sabia como comandar a empresa onde meu pai trabalhava, uma gravadora extremamente famosa que tinha o contrato de vários artistas famosos, então ela precisou ir atrás de alguém que entendesse de negócios, foi aí que ela achou Patrick Johnson.

Meu padrasto era um velho nojento abusador, perdi a conta de quantas vezes ele ficou atrás de mim em casa quando minha mãe não estava e mesmo que eu fosse muita boa em fugir e dar desculpas, ele conseguiu o que queria quando eu tinha quatorze anos. Daquele dia em diante eram raras as noites em que ele não fazia questão de visitar meu quarto. Minha mãe descobri isso anos depois e me culpou, disse que eu o estava seduzindo. Se eu tivesse mesmo o poder de seduzir alguém, com certeza não teria usado isso nele. Quando completei dezoito anos ao invés de seguir meus planos de ir para uma faculdade fui obrigada a seguir os planos de minha mãe, porque a senhora Tânia Johnson sempre consegue o que quer, então ela me arranjou um pretendente.

Dante Smith era um jovem de 25 anos que estava começando sua carreira nos negócios como advogado, sendo alto, de corpo robusto e com o rosto tão bonito quanto o de um anjo, eu acreditei quando ele disse que tinha se apaixonado por mim à primeira vista. Tudo nele me fascinava, desde a maneira como ele colocava a gravata até a maneira como ele penteava os fios ruivos para trás depois de passar gel e os deixava perfeitamente alinhados.

Então, eu casei. Achei que iria me livrar de minha mãe e do meu padrasto, fui morar do outro lado da cidade em um bairro bonito e elegante, dentro de um condomínio fechado com casas que ornavam com a beleza do lugar. Grande parte da família do meu marido morava lá, sua mãe Antônia Smith e sua irmã Virginia. O pai de meu marido tinha falecido de um problema pulmonar a muitos anos e isso fora algo que ele usou para se aproximar de mim, porque tínhamos perdido nossos pais então tínhamos algo em comum.

Quisera eu que nossa coisa em comum fosse a malandragem que corria nas veias dele.

O primeiro ano do casamento foi incrível, sua mãe e sua irmã diziam que ele nunca estivera tão feliz. Deveria estar mesmo, principalmente porque depois eu descobri que meu pai tinha deixado a gravadora de herança para mim junto com muito dinheiro e agora, meu marido tinha acesso a essas coisas. No nosso primeiro aniversário de casamento, ele me pediu um filho e foi a partir daí que as coisas começaram a desandar.

Eu tentei, nós tentamos, fizemos tratamentos e mais tratamentos até descobrimos que eu era estéril. Isso acabou com a nossa relação em vários níveis. Dante começou a mostrar sua verdadeira face para mim, primeiro com provocações verbais que me ofendiam, depois com sexo forçado que ele dizia que era a minha função, já que eu não podia dar os filhos que ele pudesse ao menos se divertir comigo. Era óbvio que sabíamos que existiam outras opções, tratamentos e adoção, mas ele não queria nada disso, ele queria uma desculpa para mostrar o canalha que era.

Foram anos de estupro, agressões e traições que eu eventualmente descobria, mas eu não era dona do meu dinheiro mais e não podia voltar para a casa de minha mãe, ela havia deixado isso bem claro quando eu tentei. Além do mais, minha sogra e minha cunhada se mostravam bem complacentes quanto ao comportamento do menino de ouro da família.

Então eu fui vivendo assim e um dia, decidi que não queria mais viver.

Mas entre viver e ficar parada num cemitério sob a luz do sol vendo pessoas chorando no meu velório de maneira teatral, o que eu deveria ter desejado mesmo era nunca ter existido.

Quando toda a burocracia foi resolvida e o velório fora marcado eu acompanhei meu próprio corpo até o cemitério e observei enquanto todas aquelas pessoas que tanto haviam me feito mal de repente, começarem a chorar no meu corpo. Eu tinha a impressão que todos eles seriam atores e atrizes famosos caso um olheiro observasse isso.

E mesmo assim, lá estávamos todos nós velando o corpo da branquela loira de rosto doce. Dante havia mandando que me colocassem num vestido florido amarelado que sem dúvidas não foi ele quem escolheu, e no meu pescoço havia um lenço, provavelmente para cobrir o corte profundo que eu havia deixado.

O clima ensolarado e quente me fazia pensar que até o sol estava feliz com a minha morte e sorria para a terra. Sem dúvidas, ter morrido tinha resolvido os problemas de muita gente.

Ainda usando a roupa com a qual eu havia me matado, eu parei ali olhando meu caixão. Quando optei por usar o cutelo fiz questão de vestir um vestido preto que me trouxesse a lembrança de quando a princesa Diana usou o seu próprio vestido da vingança, porque ter me matado havia sido a minha.

Teria sido perfeito se ao mesmo tempo que eu perdi minha vida, todos eles tivessem morrido comigo também.

— Anna Smith. — Virei o corpo ao ouvir uma voz grossa e rouca me chamar.

Aquilo tinha acontecido muito, as pessoas chegavam chamando meu nome e eu sempre olhava na direção da voz, mas não era literalmente comigo, não a minha parte fantasma, era sobre a minha parte morta no caixão.

Mas me surpreendi ao me virar e ver um homem moreno e alto, muito alto, exageradamente alto, mais do que dois metros e ele estava olhando diretamente para mim. Seus olhos eram diferentes, o esquerdo era azul, mas o direito era vermelho e mesmo sabendo que agora que eu estava morta ele não poderia me fazer mal eu dei dois passos para trás sentindo meus saltos afundarem na grama. A mandíbula dele se firmou quando eu fiquei apenas encarando sem dizer nada, mas desde que havia falecido eu não tinha encontrado ninguém para conversar nem que pudesse me ver.

— Você é a moça que está sendo enterrada, não é? — Ele perguntou inclinando a cabeça na minha direção como se soubesse que tínhamos uma diferença enorme de altura e eu podia simplesmente fingir que não o estava estando com essa desculpa.

— Você é um ceifeiro? — Perguntei enquanto analisava suas roupas. Ele parecia um executivo, se não fosse pelos olhos que com certeza chamavam mais atenção do que tudo, no entanto, a gravata preta a camisa branca, o terno, essas coisas normalmente vem com um ceifador dentro, não é?

Eu havia assistido "Sobrenatural", ele não ia me enganar.

— Não. Você não será ceifada. — Pela maneira como ele respondeu pelo menos eu acertei que ele tinha alguma relação com o além. — Sua alma está condenada a não ir para lugar nenhum ainda, negócios inacabados.

Me virei novamente na direção do meu enterro. Só podia ser brincadeira, tinha feito tudo aquilo para me livrar daquele povo, daquela vida, mas por exatamente esse motivo, agora eu teria que ficar na terra. Sem dúvidas a morte ainda tinha muito o que fazer comigo.

— O que eu faço agora? — A pergunta pulou dos meus lábios de maneira rápida mostrando o quanto eu tinha ficado chocada com a revelação. — Estou morta para eles, não sei nem o que estão fazendo no meu velório.

Meus olhos se inundaram com lágrimas. Não de remorso, mas de raiva. Nada do que eu tenha feito podia ser justificava para o que eu havia passado na mão de cada um daqueles ali presentes. Lá estava Dante consolando minha mãe ao lado do meu caixão enquanto usava as abotoaduras que eu havia dado para ele, se eu tivesse que ficar para assombrá-los não iria ser um castigo tão ruim.

— Você pode fazer o que quiser e ir para onde quiser. — A voz do homem soou ao meu lado, agora ele havia parado exatamente do meu lado, mas não olhava para mim e sim para o meu caixão a cerca de dez metros de distância de nós.

— Mas não posso ir para casa. — Retruquei sentindo meu estomago embrulhar com o pensamento do que casa significava para mim. — Você tem nome e vai se apresentar para mim ou não?

Eu costumava ser uma boa filha, educada, boa esposa, submissa, mas isso importava agora?

— Eu sou Azazel. — Senti os pelos do meu corpo se eriçarem quando ele disse seu nome. — Eu sou um demônio. Vim aqui para oferecer um pacto para você.

Concordei com a cabeça. Depois de morrer e ficar vagando por aí, eu achei que encontraria outros fantasmas, mas não, eu tinha que encontrar com um demônio. Tentei não surtar com a informação, porque já tinha sido coisa demais ter morrido e ficado para trás sem lugar para ir, mas ainda era de arrepiar saber que eu estava conversando com um demônio de verdade.

— Eu já estou morta, por que quer me oferecer um pacto?

Virei meu corpo completamente na direção do demônio que dessa vez me encarou de maneira tão profunda que eu jurei que ele estava vendo cada uma das minhas lembranças passando na minha cabeça e me fazendo lembrar porque eu tinha tomado aquela decisão.

— Quando seus negócios inacabados terminarem você vai pro inferno, você cometeu suicídio. — Sua mão alcançou meu queixo, mas eu nem me mexi. Estava acostumada com homens me tocando daquela maneira. — Mas eu adoraria ter uma alma para atormentar quando eu quisesse, pela eternidade. E eu posso fazer você se vingar daqueles idiotas farsantes, você não tem como interagir direto com eles, mas eu tenho. Se quiser, pode ficar para ver meu banho de sangue.

— Feito.

Eu não sabia quem havia se surpreendido mais com a rapidez com a qual eu havia dito sim. Eu, porque saiu antes que eu pudesse controlar, ou ele que levantou as sobrancelhas tentando entender de onde estava vindo a minha motivação.

— Fácil assim? — Sua mão se afastou do meu rosto e eu vi um sorriso aparecer em seus lábios vendo que seus caninos eram mais finos do que eu esperava. Tipo de um vampiro, mas ele era demônio então... Tudo bem.

— Eu assisti sobrenatural, eu tenho que te beijar agora? Para selar o pacto? 

Eu havia aprendido uma coisa com a morte: não há nada que eu não pudesse dizer. Eu já tinha morrido, qual seria meu castigo então?

— Não. — Ouvi sua risada incrédula e franzi o cenho vendo que ainda tinha mais. — Eu tenho que te foder. É assim que eu selo um pacto e marco você como minha.

Sem dúvidas, o véu do lado dos mortos era muito mais interessante. 

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