Capítulo 3: Bebida Amarga
– O Diário da Rainha –
Hamsan. Mês de Iansuh. 8 a.E.
Há um par de dias que estou instalada nesta pequena câmara decorada especialmente para a minha chegada. Uma cama, um espelho, uma pequena penteadeira, uma cadeira, cortinas claras, tudo que compõe o ambiente é muito simples e ao mesmo tempo muito rico. Permanecerei apenas até a próxima semana aqui, quando o casamento será celebrado e eu serei realocada para os chamados Aposentos da Rainha. Estou inquieta, mas tento não transparecer minha inquietude. Neste mundo, fraquezas não são perdoadas, fraquezas são apenas as brechas aproveitadas pelos que se creem superiores, feitas para reduzir qualquer um ao estado mais miserável possível.
Neste palácio, meu hábito de escrever não parece agradar, por isso, agora o faço discretamente, sempre na presença de Ambra. No meio de tanta loucura, ela é um conforto doce e nossas conversas quase conseguem me convencer de que tudo ficará bem. Ainda assim, a loucura nos olhos de Samad me assusta e eu não desejo dar-lhe motivos para desavenças. Tenho poucas certezas à minha frente, contudo, eu sei que preciso viver e que preciso encontrar uma maneira de controlá-lo, ou ao menos de abrandar sua fúria.
Mesmo que jamais compreenda o porquê de tanta determinação. O que Samad quer além do deserto? O que esconde por detrás da vontade de guerrear? Não é algo para o qual tenho resposta e há outros tópicos que exigem minha atenção mais imediata.
Nestes dias, presenciei mais de uma vez os sacerdotes a cochichar, já ouvi apostas sobre minha pureza e castidade. Claro que eles não falaram isso na minha frente, porém, Ambra os escutou e retratou para mim estes comentários, ditos em alto e bom som nos corredores, quase sempre seguidos por gargalhadas. Pelo seu tom de indignação, não duvido de suas palavras. Hoje já ralhou pelo menos um par de vezes que esperava mais dos líderes espirituais do povo. Isso, para ela, é uma imensa falta de respeito. Como seguidora de Sekneith, Ambra tem uma visão diferente do mundo. Visão que nem sempre concordo, mas que admiro pela beleza em seu olhar. Diferente dela, eu já não me importo com o que eles falam, com o que pensam, sei de minha integridade e isto me basta.
E há males muito piores que os cochichos de velhos senis.
Claro que também há os que me tomam por tola, usando em seus argumentos minha origem araes*, meu povo e minhas tradições. É irônico uns apostarem em minha pureza, enquanto outros caçoam de minha inocência. Eu sei bem o que acontecerá entre eu e meu marido, sei os meus deveres para com o reino e também para o povo que fui forçada a abandonar. Meu filho há de ser o único herdeiro de dois povos e eu farei o possível para que ele entenda a importância de nossas pradarias.
Isto é, se a deusa leoa me permitir dar à luz a um herdeiro.
Hoje há uma imensa festa para celebrar a minha chegada. Porém, eu não fui convidada, acredito que minha presença não deve ser apropriada e estou aproveitando estes minutos de liberdade. Ambra se recusa a me deixar sozinha. Ela sempre parece desconfiada, olhando por cima do ombro a cada corredor. Não sei o que lhe disseram ou lhe fizeram para que ela ficasse assim, mas sei que seus cabelos claros causam estranhamento entre os nativos. Os fios dourados, que ela oferta aos deuses de tempos em tempos, parecem uma espécie de mácula em meio ao negro.
Ela tenta transmitir segurança, mas eu sei que algo a perturba. E perturba a mim também.
— É estranho pensar na senhora como rainha — solta a frase um pouco mais tarde, quando estamos sozinhas, à noite, em meus aposentos. Ela desmancha a trança em meu cabelo, passando uma escova por eles com suavidade.
— Como assim, Ambra? — pergunto.
— Não me entenda mal, senhora. Não digo que não tenha capacidade para ser rainha, é que é tão nova para este fardo. — Parece reflexiva nestas palavras e um tanto perdida. Porém, logo emenda: — Perdoe, não devia falar essas coisas.
— Não, Ambra, gosto que fale. Só tome cuidado, está bem? Aqui, até pensamentos parecem ser perigosos.
— Minha senhora, ouviu o que se diz do seu futuro marido? Do que ele faz com os magos desta terra? — fala tão baixinho que por um segundo penso ter imaginado. Porém, quando consigo ver seus olhos castanhos pelo espelho, noto que ela realmente tinha proferido a questão e precisa de uma resposta.
Umedeço os lábios, tentando pensar antes de falar. Claro que já havia escutado tais rumores, mesmo com o pouco tempo ali, já sabia como Samad via a magia. Ele acredita que todos os magos são perigosos para o seu reino, e eu já o tinha escutado falar a um dos sacerdotes. Disse que não são confiáveis aqueles que possuem conhecimento, pois este leva à rebeldia. Ele não deixa de estar correto, porém, um levante é tudo o que Samad menos deseja.
O que ocorre então a estas pessoas? O mistério permanece, mas o medo sempre traz as piores respostas. Empalações. Fogueiras. Execuções dos mais diversos tipos, sobe-me um arrepio apenas de imaginar. Porém, há teorias ainda piores, dizendo que os acusados de feitiçaria são transformados em escravos, destituídos de quaisquer direitos. Viram propriedade do Império, forçados a servir por toda sua vida.
Eu prefiro a morte a me tornar uma escrava.
Termino acenando a cabeça afirmativamente. Já escutei cada uma das possibilidades e não sei escolher a mais assustadora, aquela que me causará pesadelos durante a noite.
— O que ele fará se descobrir que a senhora...
— Nada. Ele não irá descobrir — interrompo, tentando soar convicta de minhas próprias ideias.
— Não irá descobrir o quê? — A voz extremamente familiar me sobressalta naquele instante, e a Ambra também. Ela solta a trança sem acabar e abafa um grito com a mão, para depois respirar fundo e voltar à atividade, como se não estivesse ali.
Não gosto quando ela age dessa maneira. Tem sido assim desde o princípio, quando ela foi levada para meus pais e tratada como uma irmã, ainda assim, ela se vê apenas como serviçal e, por mais que eu tente mudar seu pensamento, diz que seu lugar é onde está e não pretende mudar isto.
— Não é nada, príncipe Ahmes — falo, me virando em sua direção. Ahmes parece gatuno a caminhar por este castelo, sempre saindo e aparecendo quando bem lhe apetece. Tento, neste instante, ignorar o tremor nas mãos de Ambra, mas o nervosismo dela é palpável. — Apenas discutíamos sobre coisas de nossa infância em Khaye.
Praguejo mentalmente com a minha resposta. Uma desculpa terrível a se dar, mas ao invés de alongá-la, tento apenas agir naturalmente, arqueando uma sobrancelha e insinuando:
— Mas em minha cultura, é apropriado que os homens peçam licença para entrar nos quartos das donzelas.
— Infelizmente para você, princesa, minha cultura é menos... polida — enfatiza com aquele mesmo meio sorriso que eu havia presenciado em minha chegada. Ele se senta sobre minha cama, olhando para Ambra como um lobo admira um pedaço de carne. Então seus olhos se cravam em mim novamente. — Meu irmão solicita sua presença no banquete.
— E o que ele deseja de mim?
— Deveria perguntar isso a ele — comenta, parecendo-me desinteressado. — Mas posso dar uma resposta que não achará muito educada de minha parte.
Neste momento, ignoro-o. Levanto-me e falo a Ambra para ir para seus próprios aposentos, seus olhos estão preocupados comigo, mas eu me preocupo com ela sozinha neste covil de bárbaros. O cabelo solto novamente cai ao redor do meu colo, enquanto Ahmes observa cada atitude minha. Eu não gosto de seus olhares, mas não me digno a falar nada. Ao sairmos, acompanha-me pelo corredor, inicialmente em silêncio, até que comenta enquanto caminhamos perto do salão de entrada:
— Tem uma boa cama e uma bela serviçal.
— Encoste um dedo em Ambra e irá se arrepender de ter uma mão — ameaço, interrompendo o passo. Havíamos parado em frente às cortinas do salão, fechadas apenas a esperar uma ordem para se abrirem, de algum tecido denso e escuro, mal iluminado por tochas.
Ahmes ri, se voltando para mim e fala com firmeza:
— Sabia que não era a recatada que se fez crer. — Ele se aproxima e eu dou um passo para trás. Essa proximidade não é apropriada e eu não quero arriscar-me com a loucura de Samad. É quando o ouço sussurrar: — Meu irmão já levou o orgulho de seu povo, princesa, não permita que ele leve também seu espírito.
Então se afasta e eu não tenho tempo de respondê-lo. Com uma ordem, as cortinas do salão se abrem e os olhares veem para mim com rapidez. Seguindo seu conselho, ergo o queixo, e tento parecer segura ao atravessar o lugar; porém, sinto como se as batidas de meu coração ecoassem nas paredes.
Sacerdotes, serviçais, convidados de rostos difusos erguem suas taças para mim. Tudo é muito confuso, muito estranho. Todos parecem estar embriagados, alguns com mulheres seminuas em seus colos. Não olho para eles, não devo me distrair, meus olhos estão em Samad, com sua túnica da cor da noite e uma taça de ouro em sua mão, erguida, como se brindasse secretamente cada passo que eu dou em sua direção. Eu posso sentir que ele me analisa a cada passo, cada gesto. E eu necessito corresponder a suas expectativas.
Não desvio do seu olhar, não me curvo até chegar à sua frente e executar um gesto suave. Gesto que ele parece acompanhar com deleite.
— Mandou me chamar, meu senhor? — pergunto.
Samad gargalha em minha frente, colocando a taça sobre uma bandeja ao seu lado e estendendo os braços em minha direção. Permaneço inerte, exceto quando ele pega minha mão e me vira em direção a todos os presentes no salão.
— Esta, senhores, é sua futura rainha. Um presente de Khaye em nome da paz, a única filha dos reis daquelas terras. Por esta união, nossos reinos se tornarão um só e nós avançaremos, agora para o sul, rumo à glória.
Os gritos são dados, a bebida é derramada ou tomada com afinco. Samad então senta-se, com as almofadas dispostas ao seu redor e me chama batendo na própria perna.
— Venha, sente-se aqui comigo. Certamente que todas essas normas de gala podem ser esquecidas em uma noite tão bela.
— Não acho que devo, senhor...
— Sh, logo vai descobrir, minha querida, que não tem que achar nada neste reino — diz. Então bate novamente em sua perna e ergue outra taça, com alguma bebida dentro. — Agora sente-se, tome esta taça, beba e se divirta um pouco. Você anda muito tensa, princesa.
Eu posso ouvir a ironia em sua voz e por um momento penso em desobedecê-lo. Porém, uma voz parece sussurrar em minha mente, algo que pode parecer loucura, mas me atinge no momento.
"Você não quer perder seus pais, não é? Beba e se comporte."
Obedeço. A bebida tem um gosto amargo, desce rasgando minha garganta e não é pelo efeito do álcool. É como tomar veneno, sentindo-o dissolver todas as palavras que eu desejo dizer e não digo.
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