Capítulo 4


Almacari/1889

RADICALISMO CRESCE!

Mais do que nunca o acesso a entorpecentes como Jihaya, tabaco e álcool está se normalizando. Dados mostram que na última década, o número de casas de Jihaya, e curiosamente de casas de prostituição, não só cresceram, mas dobraram. A alta é apontada como efeito direto do crescimento populacional nunca antes visto em todo o continente. É esperado que o número de tais estabelecimentos siga crescente. Porém já encontram uma oposição ferrenha. Somente na última semana, cinco casas de Jihaya na periferia foram alvos de grupos radicais religiosos, que professam suas crenças alegando que tais comportamentos 'vis' são uma afronta aos "bons costumes do povo Wigianita".


As ruas de Nova Nartan estavam sempre lotadas. De carroças até pessoas, animais domésticos a animais de carga, a variedade era tamanha a ponto de dificilmente ver-se tudo em uma caminhada, fosse ela longa ou curta. Naquele horário, quando o sol começava a se pôr e a noite a chegar, a principal movimentação era oriunda das centenas de trabalhadores, humanos e fenonianos, que vinham de volta dos turnos diurnos nas lojas ou do trabalho diário nas fábricas do distante leste.

O que menos se via naqueles dias eram os guardas em suas vestes negras de botões amarelados. O que poucos sabiam, porém, era que na mesma proporção que os guardas haviam diminuído naquela zona, haviam aumentado em outras. Letha, em seu íntimo, suspeitava que o serviço da força militar nas áreas mais pobres estava sendo apenas de patrulha. Na verdade, quando pensava nas últimas notícias, achava óbvia toda aquela movimentação para reprimir protestos insurgentes.

Avançando timidamente pelas ruas pavimentadas e bem cuidadas Letha e Trento seguiam rumo ao Oitavo Eclipse, onde tinham pessoas que lhes esperavam. Os ventos vindos do mar, pois estavam num bairro próximo, eram salgados e bem gelados, de modo que Letha tivera de sair com seu sobretudo verde, que comprara mas não tivera a chance de usar até então. Tinha os cabelos soltos, protegendo o pescoço do frio. Ambos sequer vestiam roupas de máscara acoplada, pois o Oitavo Eclipse ficava próximo suficiente do Bairro Romello, onde os efeitos da poluição raramente chegavam com muita intensidade, já que as massas de vento sopravam rumo ao leste, e o Romello estava bem a oeste.

– Frio no verão – Trento riu da ironia que observava e sentia. – Esse clima tá realmente cada vez mais maluco.

– Começo da primavera, é normal os dias ainda serem frios – Letha disse-lhe, olhando para o lado e encarando o rapaz com seus olhos ligeiramente mais comprimidos do que o padrão.

– Se a mudança de estação fosse a completa mudança de clima o mundo estaria uns cem anos mais avançado – encolheu os ombros, tremendo. A escolha da jaqueta de couro ao sair de seus aposentos no Locrum não havia sido boa, e se arrependia daquele grosso casaco de lã que deixara para trás ao pensar "não vai fazer frio hoje".

– Seria bem melhor mesmo – Letha concordou. – Ainda mais a troca do inverno pro verão. Li em algum lugar que esse foi um dos invernos mais frios dos tempos recentes – apertou os olhos no intento de forçar a mente a se lembrar.

– Sim, eu li também. No Instituto de Climatologia – disse devagar, se lembrando aos poucos. Depois destacou uma das mãos do bolso e penteou o cabelo loiro para trás. Tinha um rosto similar ao de Aldrit, mas ligeiramente mais masculino. – E a conclusão é de que esse verão será bem mais quente, também.

– Assim espero – reclamou sentindo os ventos frios que eram guiados pelas construções em volta.

Os cabelos esvoaçantes de Letha gelaram sua nuca, fazendo-a ter pequenos calafrios por todo o corpo.

Os asfalto da rua esfriara rapidamente quando o sol tornara-se distante no horizonte. A única fonte de calor em noites como aquelas eram a dos postes munidos de orbes mágicos. Já os postes a óleo e a gás esquentavam pouco mais do que o movimento de fricção entre as palmas das mãos. E ladeando as ruas da maior parte dos bairros de média renda de Nova Nartan, via-se a nova moda: edifícios de quatro andares. Haviam até casas em andares, onde cada uma tomava todo um nível para si – uma opção mais luxuosa do que os apartamentos.

Os apitos distantes dos trens indicavam ser exatamente sete horas, assim como o badalar dos sinos da maior catedral da cidade, alertando seus cidadãos que os cultos se inciariam em meia hora. Os postes logo seriam acessos, um a um, e então a cidade ganharia mais algumas horas de vida durante o fim de semana. O "Milagre das Luzes", é como fora chamada a primeira noite regada a luz artificial em toda a cidade. Nos bairros de alta renda haveria teatros, bailes, óperas e apresentações de todos os gostos. O restante da população pagaria o que tinham dinheiro: restaurantes, bares, clubes de jogos, casas de aposta, casas de jihaya, bordéis, teatros de rua, etc. A lista de coisas a se fazer em Nova Nartan eram gigantesca, e dificilmente conseguir-se-ia cumprir tudo em uma só vida. Era senso comum que para todo bairro puramente residencial, um bar daria um jeito de aparecer.

– Lá vem eles – Trento disse baixinho, se aproximando de Letha.

Vindo em direção contrária ao que ambos avançavam, um grupo de quatro indivíduos caminhavam lentamente. Seus passos eram todos em sincronia, abafados pelas sandálias de sola sulcada. Vestiam máscaras que emulavam a face humana, com buraco apenas para os olhos, onde uma gaze preta impedia que qualquer coisa fosse vista por dentro. Da máscara saía um véu que cobria toda a cabeça e escorria por sobre o corpo, coberto por um longo e largo manto branco de modo que não se soubesse nenhum contorno do corpo.

– Esses zelotes estão cada vez mais assustadores – Letha comentou, sentindo um calafrio em todo o corpo. A catedral não estava muito distante. Se seguissem pela rua que estavam, cairiam exatamente no centro da cidade onde, com alguns passos extras, chegariam até a catedral. A quantia de pedintes e os animais abandonados que teriam de enfrentar nesse percurso, porém, não seria pouca.

– Pensei que fosse só eu – Trento enfiou as mãos no bolso, recolhendo os ombros quando o grupo se aproximou em sua caminhada lenta e então se distanciou, seguindo até onde apenas eles sabiam.

– Já ouvi dizer que eles possuem cultos secretos, que só quem está mais envolvido com o templo tem acesso.

– Tem muitas histórias. E eu acredito na maioria, infelizmente – Trento disse e Letha engoliu em seco, sabendo o que aquilo queria dizer.

Não foi demorado para Letha se lembrar que a mãe de Trento era uma mulher fortemente devota, e certamente praticamente destes cultos secretos. O rapaz, por vezes, se via obrigado a seguir alguns ritos para que o deixassem em paz, embora já tivesse declarado bem mais do que uma vez seu ateísmo em toda aquela instituição. Não apenas Letha sabia dessas coisas, muitos outros também. Mas, assim como a mulher, não havia o que pudessem fazer pelo colega. Trento passava muitos dos seus dias fora de casa, com a alegação que preferia estudar no Locrum e por isso dormia por lá, quando em realidade o fazia apenas para ter um pouco de paz.

– Você sabe mais do que pode falar, não sabe? – indagou ao rapaz, arriscando a pergunta.

Vi mais do que quero falar – deu de ombros com um sorriso.

Trento recluiu-se após o comentário e Letha se restringiu a não perturbá-lo.

A rua para o Oitavo Eclipse era a próxima. Dobrava-se para a esquerda, rumando para o porto. Aquela era uma das poucas ruas que não faziam nenhuma curva, e seguiam retas até o porto. Se por um lado essas ruas eram algumas das mais bonitas da capital, sendo bem arborizadas e de uma arquitetura cuidadosa, por outro lado eram corredores para ventos vindos diretamente do mar. O que queria dizer que, em noites como aquela, eram algumas das ruas mais frias da cidade. Letha pôde ver os estabelecimentos ganhando clientes cada vez mais enquanto desciam a rua rumo ao restaurante numa rota contrária ao soprar da natureza.

O Oitavo Eclipse tinha suas paredes de concreto, assim como boa parte dos edifícios da rua. A pintura externa, porém, buscava ressaltar um ar rústico, emulando a madeira. Seguindo o padrão recente, o restaurante havia acabado de inaugurar seu quarto andar, onde também pendurara uma placa com o nome e o símbolo do restaurante. Na porta do estabelecimento, dois casais faziam fila quando ambos chegaram, parando logo atrás dos últimos na fila. Ainda não era o horário de pico, e logo mais as filas seriam bem maiores. Outros restaurantes e bares na mesma rua teriam que competir os clientes com o maior restaurante daquele canto da cidade.

– Ah, espero que, um dia, alguém faça uma comida tão boa quanto essa por um preço mais aceitável – Trento reclamou, rindo e quebrando o silêncio que imperou entre ambos pelo último trecho da rota. Letha concordou com um aceno afirmativo de cabeça, rindo também.

Enquanto conversavam esperando os casais entrarem, Letha notou que os recepcionistas eram Fenonianos. Não demorou muito até que chegasse a vez de adentrarem o estabelecimento. A porta estava sempre aberta, dando em uma antessala que sempre ficava fechada. Na antessala, um balcão na direita coletava nomes e quantidade de pessoas, verificando se haviam mesas antes de guiar o cliente até alguma. Na esquerda havia guardas com coletes grossos e capacetes. Tinham espada e catalisadores na cintura. Embora a magia fosse proibida para fins bélicos, autodefesa era permitida. E contra um ataque mágico, apenas uma defesa de mesma ordem poderia ser efetiva.

Após darem seus nomes e indicarem que já tinham conhecidos com mesa do lado de dentro, um dos recepcionistas lhes abriu a porta.

– Aqui nos separamos – Letha deu-lhe um abraço e um beijo na testa após entrarem no salão. – Tenta não voltar bêbado pra casa.

– Pode deixar – sorriu e fez um tchau com a mão, avançando até uma larga mesa circular onde outros oito veteranos do Locrum se sentavam, se embriagavam e empantufavam. Letha conhecia ao menos metade deles.

O salão era bem amplo, com muitas mesas variadas. Havia aquelas que ficavam espalhadas pelo meio do salão, geralmente circulares. Outras, ficavam acopladas nas paredes, geralmente retangulares e com assentos mais confortáveis e luxuosos; geralmente de couro.

No fundo do salão havia um balcão com uma adega, com diversas bebidas além do vinho. Dez garçons vestidos de colete preparavam bebidas dos pedidos trazidos até eles. De ambos os lados do balcão portas davam para as cozinhas.

A iluminação era feita por orbes amarelados, que concediam certo conforto à vista. Exceto pelo palco, na extrema esquerda, onde luzes brancas destacavam os músicos que se apresentavam.

Girando nos calcanhares, Letha seguiu pela escada imediatamente ao seu lado esquerdo. Ela sempre prefere lá em cima, pensou. O mezanino tomava boa parte do segundo andar, com uma configuração de mesas bem semelhantes, mas menores e mais distanciadas. As luzes eram ligeiramente mais baixas, também.

No segundo andar, Letha viu as janelas sem abertura, como as de catedrais e de castelos, que serviam apenas para jogar a luz solar dentro do estabelecimento. Agora, porém, era o estabelecimento que jogava suas luzes para a rua lá fora. Com os olhos, Letha caçou Arioch, e só pôde encontrá-la pelo pequeno reflexo do piercing na sobrancelha esquerda. Ambas haviam feito juntas o primeiro, mas a dor afastara Arioch de acompanhar a amiga nos outros tantos que tinha pelo corpo.

Arioch usava um casaco redingote vermelho, com botoaduras prateadas e gola alta. Entre os dedos da mão longa, apertada por um punho de botão duplo, segurava um charuto já no final, enquanto enrolava os dedos no cabelo tingido de castanho claro com a outra mão. Seus olhos estavam fixos na caneca cheia à sua frente, como esperasse algo para tomá-la em mãos e sorver o conteúdo. Um cinto preto destacava sua cintura e deixava a parte de baixo do redingote parecendo uma saia. As pernas, curtas suficiente para ficaram a poucos centímetros do chão, balançavam pra lá e pra cá com sua calça preta fina e botas.

Letha despiu-se do sobretudo, escorrendo pelo estofado até encostar na parede. Deixou a roupa ao seu lado e encheu os pulmões. O ar ali dentro era mais quente e suficientemente confortável. Arioch de início tomou um susto, mas logo identificou a amiga.

– Nem te vi – Arioch a cumprimentou sorrindo, erguendo um braço ao garçom que logo escorreu escada abaixo. – Esse é pra você – empurrou a caneca. Letha logo sentiu o cheiro de canela, envolvendo a porcelana com ambas as mãos e levando à boca a bebida. Um achocolatado com canela, como gostava.

– São poucas as pessoas que acertariam exatamente o que eu gosto de beber – comentou sorrindo de volta, sentindo o estômago sendo agraciado pela bebida quente num dia que só sentira frio.

– Já pedi a comida, deve chegar logo – informou.

– Carne? – indagou, e Arioch apenas fez um sim com a cabeça.

– Recebeu a mensagem dos rapazes, também, não foi? – indagou apagando o charuto e descartando-o dentro de uma caneca vazia próxima a parede. Cruzou os braços sobre a mesa, curvando as costas.

– Você também? – arqueou o sobrolho enquanto ingeria mais uma boa dose do líquido quente e viscoso. Não é de se surpreender, também, concluiu.

– Querem que eu dê uma olhada no corpo – explicou com olhos murchos e escuros, singulares em sua pigmentação muito semelhante com as flores de pohutukawa. – E você, suponho, vai dar uma olhada no cubo, né?

– Icoságono, pelo que disseram – disse curvando a cabeça, estudando Arioch. – Agradeço que não vou ter que fazer todo o trabalho sozinha, disseram que querem começar dar uma olhada ainda hoje a noite – encolheu os ombros, ligeiramente incomodada.

– Só não sei como esperam que eu consiga fazer alguma coisa – soltou risos secos, seguido de um bocejo cansado.

Letha riu junto, notando as olheiras densas sob os olhos da amiga. As unhas estavam desgastadas, assim como o cabelo estava atipicamente seco. Arioch já começava a desfocar a vista, olhando para a mesa juncosa e começando a sonhar acordada, meio torpe de sono.

– Não vem dormindo bem? – Letha indagou, puxando os olhos de Arioch para si antes que se perdessem na hipinótica visão do anel sendo girado pelo polegar numa das mãos.

– Ah, não muito – disse, pega de surpresa pela pergunta, apertando o cenho.

– Por que não? – quis saber, séria, enquanto ingeria mais da bebida.

– Ando cheia de coisa pra fazer – reclamou com um bocejo. – Ontem, por exemplo, fiquei até umas três da manhã com o Maller, e hoje ainda tive que acordar as sete. Os outros dias não foram muito melhores do que isso – deu de ombros, observando as reações de Letha com lentidão e achando graça nelas.

– Com o Maller..., fazendo o que? – Letha jogou o tronco para trás, causando risos em Arioch que teve confirmação de que Letha pensara coisas erradas.

– Nada do que pensou – Arioch lhe assegurou com um sorriso lascivo e contraditório. – Entre eu e um homem magrelo, acho que ele escolhe o homem.

– Muitas de nós perderíamos pro homem magrelo nesses últimos meses, Arioch. Muitas de nós... – respondeu segurando o riso e terminando com sua bebida. – Tem meses que ele prefere um, tem meses que prefere outro, é sempre uma incógnita. Mas ainda não respondeu, fazendo que?

– Ah... – empurrou-se da mesa com os braços esticados, deixando as costas eretas. – Dando reparo na prótese, basicamente. Ele bateu ela com força e deu uma amassada nas articulações dos dedos.

– E isso demorou tanto? – Letha arqueou o sobrolho, com malícia no olhar de quem não acreditava.

– Minha cara é de quem ficou a noite transando? – fez círculos com o indicador em volta da fronte. De fato, Letha pôde ver, Arioch havia perdido peso. Tinha os ossos a mandíbula mais acentuados e os dedos ligeiramente mais magros do que o comum.

– Perdeu peso, isso sim.

– Ando comendo mal – admitiu, arfando. – Mas enfim, Maller chegou era mais ou menos onze horas, com um amigo. Esse amigo ficou dando palpite em cima de mim enquanto eu tentava identificar o local que a prótese tinha amassado. E o resto foi só o caos. Tive que expulsar o cara, o que deu em discussão até o Maller intervir. Depois a demora foi porque o amassado tava feio.

– Não entendo como ele danifica tão fácil um braço de aço – Letha riu, contagiando Arioch a quebrar sua monotonia de espírito sonolento. A mulher já se sentia bem mais acordada do que quando chegara.

– Ah, e ele passou a noite inteira chamando o Luther de burro – Letha segurou para não rir alto. Não entendendo a crise da amiga, Arioch acabou caindo em risos também, ajudando a passar boa parte do torpor que precede o sono.

Letha lhe explicou a conversa do trem, e Arioch conseguiu entender o humor, achando a situação mais cômica do que engraçada. Lembrava-se da dupla terrível que tivera de fazer em muitas trabalhos. Mas, graças suas boas escolhas, o Trabalho Conclusor havia sido pacífico. Difícil, mas pacífico.

A comida logo chegou, sendo servida na mesa junto de pratos e uma garrafa pequena de conhaque. O garçom não era muito jovem, mas era novo no salão. Era perceptível dado modo que o colete estava levemente descentralizado do pescoço, detalhe que os gerentes odiavam.

Rapidamente serviu as mulheres com o conhaque, enchendo as taças até a metade e lhes entregando os talheres embrulhados em toalhas brancas com o nome da casa bordado. Agradeceram antes do homem partir. O peixe, servido numa bacia de argila, vinha enfeitado com saladas por cima e por baixo. Era bastante carne, mas não haviam pedido nenhum acompanhamento.

– Vamos para o porto, depois? – Letha sugeriu enquanto comiam. As comidas do Oitavo Eclipse, junto com o ambiente sempre agradável e a música sempre na altura ideal eram uma peça de ouro naquela cidade. – Deixei todas as coisas que vou precisar prontas, e quero ter certeza de que eles vão vir diretamente até nós.

– É, até que pode ser. Melhor do que correr o risco de acabarem sendo parados ou algo do gênero e ficarmos a noite todas esperando – Arioch concordou, dando de ombros e enfatizando o "noite inteira". A bebida já havia sido suficiente para aquecer seu corpo, e não sentia mais o sono. As faculdades mentais voltavam a funcionar conforme as doses calculadas entravam pra dentro.

Conversaram bastante durante a refeição, mas sempre tratando de assuntos banais do cotidiano de amigos que não se veem há dias. O peixe havia sido comida o suficiente, e quase não conseguiram terminá-lo. O conhaque teve de ser fechado com a rolha antes que Letha o guardasse para levar. Não conseguiriam beber mais do que o que já haviam ingerido sem ficarem bêbadas. Chamando o garçom novamente até a mesa, acordaram em dividir a conta pela metade.

Voltaram ao primeiro andar, enquanto Letha vestia o sobretudo e guardava a bebida num dos bolsos internos da roupa. Com olhos sagazes pôde ver Trento bêbado e quase desmaiado sobre a mesa. Riu de decepção, pensando como homem voltaria pra casa. Uma hora aqui dentro e ele se embebeda desse jeito. Atravessando a antessala mais uma vez, o clima frio as cumprimentou. Arioch soltou as presilhas do cabelo, fazendo com que aquela massa seca caísse sobre as orelhas e protegesse-as dos ventos.

A caminhada rumo ao porto logo teve início, com momentos de conversa e momentos de silêncio e contemplação. Letha observava as pessoas indo e vindo, e os restaurantes e bares que lotavam cada vez mais. As luzes de fato tornavam a noite uma extensão do dia. Mas, mesmo assim, o corpo cobrava o cansaço e logo até os mais ousados seriam obrigados a voltar para casa.

– Leu as notícias do dia? – Arioch puxou assunto depois de um daqueles momentos de observação. Havia pouco barulho naquele trecho, que compunha-se majoritariamente de residências..

– Li. Essa gente deve ser infeliz com a vida, ou algo assim. Sempre arrumando algo para reclamarem – Letha deu de ombros, bufando.

– Pensei exatamente isso – riu com os dentes a mostra. A bebida havia deixado-a muito mais parecida com o que era normalmente, afastando aquela Arioch Sonolenta que Letha encontrara quando chegara para comer. Olhando para o céu de nuvens carregadas, Arioch podia ver por frestas no manto de umidade suspensa no céu o Anel de Kogos, a poeira estelar que circundava todo o planeta no Equador. Que a chuva viria ora ou outra era previsível, e Arioch esperava que não acontecesse enquanto estavam fora de uma cobertura decente.

Quando chegaram na orla, se depararam com o trecho da cidade mais movimentado que encontrariam por aquela região. As lojas beira-mar eram muito mais agressivas em sua tentativa de adquirir clientes. Especialmente os tripulantes dos navios. Bordéis e bares dominavam o cenário, assim como shows e teatros de rua. As luzes dos postes pareciam até mais fortes. Ao longo do porto, ancoradouros se estendiam para frente, com quase todos ocupados.

Arioch apontou para um vazio, e seguiram até ele.

– Ainda não conseguiu emprego, né? – Arioch indagou enquanto caminhavam em direção a ponta do ancoradouro.

– Não. Fui até Baixomar sem razão nenhuma, basicamente – deu de ombros, demonstrando o cansaço da busca de algo que parecia esgueirar-se de si.

– O mercado de próteses vem crescendo bastante. Acho que vou pegar algo nesse ramo logo mais. Tô precisando de alguma coisa rápido – riu consigo mesma, batendo de ombros com Letha.

– Brigada com os pais de novo?

– E tem como não? – deu de ombros, com nojo estampado na face.

– É uma situação difícil – concordou, com olhos baixos. – Não tem como eu querer te entender... Mas qualquer coisa que precisar, sabe que eu posso tentar.

– Tudo bem, eu sei que é difícil pra você entender – levou uma mão até o ombro da amiga. Sua expressão era de compreensão enquanto Letha parecia sentir algum tipo de culpa injustificada.

Uma brisa fria as pegou, fazendo-as estremecer da cabeça aos pés.

Haviam acabado de chegar na ponta do ancoradouro, onde apenas caixotes e barris populavam o concreto que se estendia para dentro do mar. O som das ondas que se quebravam nas construções era quase hipnótica para Arioch, que apreciava com o coração calmo o jeito que a natureza sempre encontrava meios de seguir em frente. Já Letha se via perdida em pensamentos, se indagando se, caso tivesse conhecido os pais, os amaria. É tão comum que filhos desgostem de pais, era o pensamento que permeava sua mente. E a questão de que se amaria os seus lhe afligia profundamente, especialmente em dias de insônia, quando o corpo entregava-se ao repouso mas a mente ainda a segurava no mundo.

– Não esquenta com isso, Letha – Arioch a empurrou pelo ombro, enfiando uma mão dentro do redingote. – Tem muita coisa melhor na vida pra ficar preocupada com uma bobeira dessas. De que importam brigas familiares, ou desentendimentos – deu de ombros, puxando um charuto. – No fim, o que importa é não encher a cabeça com o que não importa. Aceita?

– Não, sabe que não gosto – recusou com um sorriso, enquanto Arioch já o cortava, concordando com o que a mulher havia acabado de dizer. – E quais os planos do futuro, ficar em Wigia?

– Não faço ideia, Letha. Não penso em nada que não seja os próximos dez dias – riu, segurando o charuto entre indicador e médio. Com a outra mão, colocou o indicador logo abaixo da ponta já cortada do charuto. Uma pequena chama surgiu na ponta de seu dedo, acendendo o tabaco.

Letha cerrou os olhos e perguntou:

– Usou seu próprio corpo de Oferta?!

– Claro que não – abriu um sorriso e riu profundamente. – Que loucura seria.

– Exatamente! Mas como fez isso, então?

– Isso é tabaco, Letha – arqueou o sobrolho, esticando a mão com o charuto. – É vegetal! Eu usei o próprio charuto como Oferta. Como é uma chama pequenininha, não é nada relevante o que gasta. E odeio isqueiros – deu de ombros, puxando a fumaça e degustando-a antes de expeli-la.

– Ah, sim – compreendeu o processo.

Outra brisa fria se abateu sobre elas enquanto o som das ondas compunha uma melodia estranha.

Letha estremeceu enquanto Arioch se manteve firme contra o vento forte com a mão livre enfiada nos bolsos. Letha correu para trás de Arioch, se encolhendo atrás da mulher ligeiramente mais baixa. Arioch riu, balançando a cabeça enquanto soltava outra leva de fumaça, levada pelo vento.

– Por acaso vamos ter algo hoje, senhorita Arioch? – Letha engrossou a voz, fazendo graça.

– Se você quiser, senhor – respondeu com o charuto na boca e puxando as mãos de Letha para abraçá-la por trás.

Em gestos de malícia, Letha começou a apalpar e passar a mão em Arioch por trás, enquanto dizia palavras estereotipadas em seu ouvido e fazia a amiga rir. Enquanto suas mãos viajavam em Arioch, acabou se deparando em algo diferente que a assustou a princípio. Enquanto Arioch ria das cócegas causadas pelos movimentos, Letha voltou a mão até a cintura da mulher. Havia algo duro preso em sua cintura. Algo que não se parecia um catalisador.

– O que é isso? – Letha indagou, segurando a coisa.

Arioch cessou o riso, soltando fumaça.

– Só mostro se não contar pra ninguém – chantageou com uma voz lasciva.

– Claro... – respondeu, confusa quanto ao que demais aquilo poderia ser.

– Fica aí, mas fácil pra mostrar – Arioch pediu, e Letha pousou o queixo sobre o ombro da amiga enquanto ela abria alguns dos botões da roupa. Enfiou a mão e puxou para fora uma arma. – Bonita, não?

Letha teve um susto e Arioch pôde sentir o saltinho gerado pela reação.

– Como comprou uma pistola?! – exclamou, assustada.

Arioch riu.

– Foi bem caro. Especialmente porque essa é personalizada. Atira sem a trava entre os disparos.

– Isso é ilegal, Arioch! – Letha a repreendeu, mas esticou uma mão para pegar no cabo da arma.

– Eu sei, mas pra me proteger tá valendo. Nem tenho muitas balhas. O tambor tá cheio, mas o gatilho tá travado – explicou enquanto Letha pegava-a pelo cabo de madeira. O corpo da arma era de madeira escura, enquanto que seu cano era composto de metal.

– Qualquer usuário de magia se protege fácil.

– Meu pai não sabe magia, e eu não tenho força pra me defender – deu de ombros, pegando a arma de volta e guardando-a.

– Então é assim que a situação tá... – sua voz morreu, soando vagamente como uma pergunta.

– Sim – aquela fora a palavra mais séria que Arioch enunciara naquela noite. Na verdade, se Letha se lembrasse qualquer outra conversa, notaria que aquela era a frase mais séria que Arioch havia dito até então.

– Não compensa mais se você investisse em conseguir uma casa melhor? Melhorar o sistema de segurança, não sei.

– Não. Não tenho dinheiro pra isso. Já tive que abrir mão de muita coisa pra poder pagar aquele aluguel. Se o desgraçado continua vindo infernizar na minha porta, que posso fazer? – deu de ombros, irritadiça. – Que eu tenha um meio de me defender, então.

– Se pegarem isso... – Letha arriscou, apreensiva. Sabia que a casa da amiga não era das melhores, com seus poucos cômodos e área humilde. Ao menos Arioch tinha segurança naquele bairro, pois o conforto não estava presente.

– Se pegarem isso nada, Letha. O julgamento por uso de magia é morte! Uma pistola, mesmo que eu tenha matado alguém, não vai dar mais do que alguns anos ou coisa do gênero – disse Arioch, nervosa.

Com o canto dos olhos, com a cabeça curva, viu Letha e suas expressões que curvavam-se como quem se arrependesse de algo.

– Mas vamos falar de algo melhor, os rapazes ainda devem demorar um pouco e vim aqui pra conversar – convidou Letha com um sorriso de desculpas escondidas. A mulher logo aceitou e, após acharem um barril cheio onde pudesse se encostar pra conversar, esqueceram aqueles assuntos densos e sérios, cuja noite repelia com a mesma intensidade que parecia atrair.

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