Capítulo 40 - Parte Um

O dia é preenchido pela animação e expectativa pelas festividades, mas eu permaneço no quarto o dia todo lendo o diário de Alessandra. Chiara se recusava a falar comigo e eu tampouco insisti.

Quando ergo a cabeça novamente, jogando um olhar para o lado de fora do quarto, tudo o que vejo é o céu escuro, com uma quantidade ainda maior de nuvens do que há pouco tempo atrás, e o corredor está silencioso com a ausência de vozes femininas às quais me acostumei nas últimas semanas.

Não é um silêncio qualquer, entretanto. Ele está carregado, de alguma forma. Sinto comichões por cada centímetro de minha pele e debaixo dela.

Elevo o tronco, apoiando-me em meus cotovelos. Meus dedos são velozes ao travar a janela bem fechada, pois sinto-me exposta ao aparecer por entre as bandas dela. Ergo os meus pés e solto-os ao lado de minha cama, sentindo quando minhas terminações nervosas lançam uma onda de tremores por meu corpo, quando sinto as fisgadas da gélida firmeza do chão.

Sou compelida por algo que não posso explicar, algo que me leva à ansiedade enquanto dou nós apertados em meus calçados. O diário de Alessandra volta para seu vergonhoso esconderijo quando vou em direção à porta.

O corredor está vazio, de fato, mas todas as luzes permanecem acesas. Não posso dizer que isto ajuda a amenizar o ar de terror que a mansão possui neste momento.

A magia está presente aqui, eu posso dizer sem sombra de dúvida. Ela tenta me atingir, de algum modo. É uma sensação estranha e desconfortável, como ter álcool aplicado em um ferimento aberto, ou retirar uma farpa de debaixo da unha.

Coloco os pés para fora da hipotética segurança de meu quarto, inclinando-me um centímetro à frente. É aí que noto. O peso em minhas costas denuncia o olhar sobre mim. Mas, por mais que eu queira trancar-me dentro do quarto como uma garotinha assustada, tenho a impressão de que o perigo não está no corredor, e sim dentro de meu suposto esconderijo. Olho para trás, para as duas camas, a cômoda e todos os objetos inanimados que compõem o cômodo. Não há nada que denuncie presença alguma, mas recuso-me a voltar para dentro. Puxando a porta por detrás de mim, vou para fora do dormitório.

A sensação de ser observada é cortada de imediato.

Minha primeira ideia é ir até a praia, entretanto a última coisa que desejo é perder a noção do tempo e acabar ficando presa do lado de fora à mercê das criaturas noturnas.

Infelizmente, não consigo sequer fingir que estou me referindo às corujas ou morcegos.

Tirando um cacho escuro da frente de meus olhos, prontifico-me a caminhar, indo em direção ao único lugar que posso neste momento sem sair da mansão.

O hall está tão vazio e silencioso quanto o primeiro andar, e tão iluminado quanto, de tal forma que meus olhos ardem com tanta claridade, à qual estou desacostumada, após anos passando as noites à luz do Sol ou de velas. Tenho ímpetos de apagar todas as luzes, de não gastar tanta energia elétrica, um item que é tão caro em Aliança, um luxo que jamais desperdiçaríamos desta forma.

A chuva deu uma trégua, convertendo-se em um fino garoar que golpeia ininterrupta e insistentemente as laterais da construção antiga. Embalada por esta trilha sonora, eu me coloco em movimento, rumo ao corredor seguinte, adentrando a área onde as colunas e paredes baixas dão lugar às enormes placas de vidro que trazem uma boa visão da área externa da Reserva, a partir do lugar onde estou.

As sombras ensaiam uma dança estranha nos arbustos lá fora, jogando com minha visão. Eu tenho a impressão de ver um vulto correr do lado de fora quando me viro para ir em direção à biblioteca, captando a imagem com o canto dos olhos. Franzindo o cenho, paro em frente um dos vitrais. Ao inclinar-me para visualizar o exterior, vendo nada mais do que encontro uma forma feminina refletida atrás de mim.

— Ei!

Minha exclamação é involuntária quando eu me volto para não encontrar nada no hall. E ao olhar uma vez mais o vidro, há apenas o meu reflexo.

Não fico mais calma.

O som abafado de sussurros chega até mim, antes de eu mergulhar outra vez no total silêncio. Minha respiração torna a ser a única coisa que escuto.

— Olá?

Minha voz desaparece pelo corredor, enquanto sigo esperando que algum dos jovens que não foram à cidade apareça e se desculpe pela brincadeira boba e infantil. Isso não acontece.

— Oi?! Tem alguém aí?

O susto me atinge quando uma sequência de batidas altas atinge o alcance de minha audição, num ritmo arcaico como numa melodia indígena ancestral. Os batuques estão longe demais para seres nítidos por completo, embora estejam perto o suficiente para ser inteligível. Deduzo que estes sons façam parte da Festa da Lua Cheia, um elemento desconcertante pelo simples fato de envolver meu corpo numa inquietação impossível de explicar.

Nego com a cabeça, crente na possibilidade de estar ficando mais do que somente paranoica, senão louca. Forço meu corpo a recuar, resistindo ao estúpido desejo de acompanhar esta música numa dança tribal estranha.

A chuva engrossa, lá fora, como se seguindo o ritmo dos tambores, que aceleram e aumentam o volume, como se mais instrumentos se juntassem aos anteriores. Um relâmpago clareia todo o pedaço de descampado visível deste ponto onde estou, iluminando as árvores ao longe de uma forma que faz parecer que não são troncos, ali, senão corpos humanos aguardando algum sinal para invadir a mansão.

— Ok — sopro para mim mesma. Afasto um caracol preto da frente dos meus olhos, secando as gotas de suor que se acumulam em minha testa. —Chega de loucura! É hora de ler um livro nada assustador e esperar essa noite estranha acabar. É fácil.

Mas, para minha infelicidade, não é tão fácil assim.

A biblioteca está trancada, descubro, para minha frustração. Bato a cabeça na porta uma e outra vez, irritada como não posso explicar.

— Isso é sério? — Exclamo, para ninguém.

Minha única resposta é mais um trovão.

— Só pode ser brincadeira... Qual é a próxima?

Desta vez, meu inocente desafio traz uma resposta maior do que eu sequer poderia imaginar: assim que surge o próximo relâmpago no céu, todas as luzes acesas, das quais reclamei há pouco pelo excesso de claridade, apagam-se de uma só vez, afundando-me no mais completo e quase palpável breu.

— Jura? Que ideia péssima de humor é essa?

Meu resmungo se perde no corredor escuro, trazendo a súbita consciência de que estou presa no completo escuro em uma noite já cheia de monstros à solta, e que não é um adolescente engraçadinho fazendo piada comigo.

Não sozinha, na verdade, se o ruído baixo de um rangido de porta for algum indicativo de outra presença.

— Olá? — Chamo outra vez, embora tenha a seria impressão de que o melhor é não ser respondida.

O ar esfria de um minuto para o outro, como se as luzes fossem o que me mantinha aquecida até agora. Há olhos sobre mim, eu sinto, com plena certeza. E não acho que eles venham do exterior. É como se estivessem logo ao meu lado, distantes de meu corpo por nada mais do que meros centímetros.

— Quem está aí? — Sussurro.

Eu escuto o riso agudo, perto demais. De repente, estar com Sam, Penny, Chiara e Frida na Festa não parece tão ruim assim. Ao menos eu não estaria sozinha, ao menos eu saberia com o que estou lidando...

"Você sabe com o que está lidando, admita...", insiste a voz, sussurrando dentro de meus ouvidos. Mas não é uma voz estranha em meu ouvido. Sou eu, evitando mentir para mim mesma de novo.

A risada soa uma vez mais, conhecida em um nível que não deveria ser, ainda mais próxima, quase em meu ouvido.

É o que me faz dar meia-volta e me afastar a passos largos.

Meus cachos golpeiam meu rosto sem piedade. Estou tremendo, encharcada como estive a partir do minuto em que coloquei os pés para fora da mansão. Não olho para trás, não observo os arredores. Agradeço pelo batuque alto da chuva abafar quaisquer sons que não o da minha respiração inconstante.

"Fuja, fuja... Fuja depressa... Você não pode escapar de si mesma...".

— Não. Não sou eu. Vai ficar tudo bem.

Meus passos são afoitos, a minha mente está a mil. Eu jamais ousaria dizer em voz alta, mas a voz em meu interior, a mesma voz que me assombra, não se cala por um minuto, zombando, debochando, provocando-me a recordar as imagens que tento apagar de minha memória, desafiando-me a me lembrar das cenas que jamais pude de fato esquecer. E, mais: a voz me tenta a soltar as rédeas do controle, abrir mão do aperto firme que mantém o pior dentro de mim. Meus ossos estalam e rangem, impelidos a obedecer à sugestão que sempre ignorei, um dos efeitos mais assustadores.

O rugido de um trovão me faz saltar, e eu tropeço nos cadarços de meus tênis, lançando as mãos para a frente para evitar o impacto com o chão. Respiro fundo.

— Não vai acontecer de novo — sussurro para ninguém. — Você não pode ferir ninguém. Você não vai ferir ninguém aqui.

Coloco um pé diante do outro, mas a imagem das duas garotinhas continua circulando em minhas pálpebras fechadas cada vez que pisco. Eu escuto os gritos em meus ouvidos, clamando por Lise, clamando por quem já não existe.

O céu escuro zomba de mim, fechando-se logo acima de minha cabeça. Apesar de a chuva ter dado uma trégua há pouco, ela voltou com força, e eu escuto o ronco pesado das gotas de água escorrendo em meus cabelos, pingando das folhas das árvores acima de mim, quando ultrapasso o limite das árvores, tentando me orientar na escuridão pela melodia dos tambores. O lamento das gotículas de chuva chocando-se em meu rosto embala meu agito, instiga meu pânico, meus passos descompassados, meu coração que bate desenfreado de forma que parece que vai sair de meu peito.

A lama se agarra ao meu tênis e às minhas meias. O solo escorregadio me faz bambear mais do que uma vez. Meus joelhos estão à mostra, o tecido da calça rasgado, cortes miúdos abertos graças à minha queda anterior, no lugar em que o impacto foi maior.

Eu não paro. Consigo ouvir o ritmo dos tambores diminuir, o rugido furioso da natureza crescendo em meus ouvidos; eu não reclamo, pois cada passo silencia um grau das vozes.

Eu jamais poderia explicar de onde elas vêm, embora esteja familiarizada com alguns gatilhos que as façam vir. Eu não falo delas ou do que elas fazem. Eu não confesso o que pode acontecer sempre que elas surgem, tentando-me a obedecê-las. Essa é uma das partes mais escuras e aterrorizantes do que eu sou, e é a parte que mais me dá medo.

A primeira vez foi um acidente, é claro. A descoberta costuma ser a pior parte. Da segunda vez, eu procurei o que não devia. Na terceira... Eu perdi tudo o que tinha. Não posso arriscar a quarta vez. Não quero... E, ao mesmo tempo, eu duvido que consiga conter essa enxurrada de sentimentos que tentam me controlar, que tentam obrigar-me a controlá-los.

Ofego ao sentir a colisão tarde demais.

— Outch!

Ergo os olhos, apoiando-me em uma... Casa? Suspiro. Eu cheguei à cidade. Solto o fôlego, que não percebi estar prendendo. Mas minha satisfação tem curta duração.

Conforme adentro pela estrada principal, as casas vêm aos montes, porém falta o mais importante: as pessoas.

A praça, em frente ao Salão do Conselho, está vazia. O coreto no centro dela deve ter estado lindo, porém a tempestade lavou a decoração e derrubou os arranjos florais, que agora jazem numa poça disforme ao redor da delicada construção.

Os tambores não interromperam por completo seu tocar, contudo está mais e mais baixo. E, decerto, não provém de dentro da cidade.

— Você só pode estar de brincadeira comigo...

Todos os prédios estão muito iluminados, assim como a mansão estivera há pouco. O Salão do Conselho, porém, é o mais claro, num ponto que, inclusive, fere minhas pupilas. Tenho que me perguntar se não há um verdadeiro propósito para a ação.

Puxando o lábio inferior entre os dentes, deixo que o impulso e o instinto guiem-me na direção que sou impulsionada a ir.

A floresta me engole no momento em que eu ultrapasso a primeira fileira de árvores, deixando para trás a cidade, as luzes e aquilo que deveria ser seguro. Mas não há nada seguro hoje, mesmo que muito disto seja assustadoramente familiar. Eu estou sendo guiada por meus sentimentos confusos, minhas emoções conturbadas. Minhas sensações me fazem agir e possuo instintos que não posso explicar de onde vêm.

Meus pés soltam coaxos pesados toda vez que tocam o chão molhado. A chuva diminui ligeiramente de intensidade aqui, as árvores centenárias fazendo um bom trabalho isolando-me do ruidoso furor celeste. Estou respirando mais calmamente, mesmo que meu corpo ainda esteja tenso. Eu escuto com clareza o murmúrio da música, vozes baixas e distantes entrando em foco. Estou quase sorrindo, visualizando Chiara sorrindo-me sem graça, Penny abraçando-me e Frida caçoando de minha presença. Consigo ver até mesmo Sam, aquiescendo com discrição ao me ver aqui.

Mas tudo despenca assim que o primeiro gemido sofrido me alcança.

Em um segundo, não há melodia nem vozes; não posso definir se deixo de ouvi-los ou se eles deixaram de soar. A única coisa que posso dizer é que tudo é silenciado, exceto os gemidos e gritos, tudo menos os sons de ossos quebrando e súplicas verbalizadas em berros que ferem meus tímpanos.

E, como uma criança curiosa que ouve contos de monstros na hora de dormir mesmo tendo medo deles, eu percorro o espaço que me falta para chegar à borda da grande clareira de onde provêm os sons.

Dez, vinte, trinta jovens entre dezesseis e vinte anos se amontoam no certo da gigantesca clareira, a maioria sendo do sexo masculino. Todos eles estão em diferentes estados de transformação, em estados distintos de degradação. Alguns inclinam-se em posição fetal, tentando encolher-se até que fiquem invisíveis à dor. Outros ficam de quatro, batendo com a cabeça no chão. E ainda há aqueles que se contorcem de barriga para cima, rodando de lá para cá, num desespero doloroso de se ver. Ao redor deles, menos de uma dezena de homens mais velhos os observam, com caretas distorcidas, como se contendo suas próprias dores, o que é bem provável. Estes são os que murmuram instruções aos mais jovens, como que tentando orientá-los em relação ao processo de transformação.

Daqueles que ocupam o espaço, a faixa etária é um tanto perceptível. Adolescentes e jovens até uns vinte anos, e cerca de seis homens e duas mulheres que aparentam ter mais de quarenta e poucos anos.

Em meio aos brados sofridos, franzo o cenho, perguntando-me onde estão os adultos e Samuel. Até que ergo a cabeça, procurando-os. E, mais adiante, nos lados oposto ao que eu ocupo e formando um semicírculo no espaço...

As formas sob as luzes das rochas não mentem.

Lobos.

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