Capítulo 40 - Parte Dois

Engulo a bile.

Dezenas de formas grandes permanecem paradas ao redor, ao Norte. Eles parecem observar em silêncio os mais novos, aqueles que ainda não se acostumaram à transformação, ou quem está passando por ela pela primeira vez. Como num flash de reconhecimento, imagino que recebam em seu meio aquele que vencer o tormento deste estranho rito de passagem, mas somente aguardam os que ainda não foram capazes de enfrentar seu lado mágico.

Ao localizar três ou quatro corpos imóveis, não posso conter o questionamento mudo a respeito de quantos deles morrerão nesta noite.

Recuo um passo, repensando minha decisão de vir até aqui, como tenho feito toda a noite. Parece que saio do fio da espada para a ponta da foice.

Contudo... Uma voz que se sobressai me faz paralisar.

— Samuel, por favor!

Perco o fôlego ao localizar Kash, de bruços, num local não muito longe de onde estou. Há nada mais que um minuto atrás, ele estava totalmente parado. Agora, seu corpo não para de convulsionar. Pelo ângulo de seus ossos, deduzo que suas pernas estão quebradas. Seus berros desesperados perfuram meus tímpanos como os outros não podem.

A gigantesca diferença que há entre o sorriso habitual do jovem e sua careta atual é impossível de ser ignorada.

— Ficará mais fácil se você se submeter — rebate um homem mais velho, observando com pena o jovem. — Samuel só pode esperar sua decisão, menino. Faça e compartilhe sua dor com sua alcateia.

— Ele está com dor! — Esbraveja outra voz. Daniel. — Pare de dar ordens que ele não pode cumprir!

Respiro fundo ao ver o rapaz surgir ao lado de Kash. Seus olhos azuis faíscam quando ele se abaixa ao lado de Kash, murmurando palavras tranquilizantes. Em sua mão, um tecido é desdobrado e colocado sobre os cortes maiores nas costas de Kash. A pose é desnorteadora. Jamais pensei que Daniel seria o tipo de garoto que se importa ao ponto de enfrentar a dor junto com aquele que realmente a sofre. Eu tampouco acreditava que de fato houvesse uma amizade sincera ali, mas repenso ao ver sua preocupação com o outro.

Um trovão ressoa com força, mas ninguém dá atenção à tempestade. De onde estamos, a chuva é quase completamente isolada. Estamos abrigados sob um forte manto de enormes árvores muito altas.

— Eu não aguento mais, Daniel! — Kash grita, seus membros puxando sua pele de uma forma antinatural. Ele puxa a camiseta de Daniel de modo frenético. — Damn, sei que é pedir muito, mas me ajuda! Eu não consigo mais esperar por ele. Por favor, Daniel, por favor!

Sua angústia, de algum modo, parece maior do que a de todos os outros, alcançando-me com tamanha nitidez que me torna quase consciente de sua dor, fazendo com que minha pele arda e pinique como se eu mesma sentisse aquilo que ele sente.

Prendo a respiração ao ver um lobo maior do que os outros se aproximar dos dois garotos. Todos os outros lobos recuam para deixá-lo pagar, e os jovens agitam-se com sua proximidade. O lobo para diante de Daniel, que o encara por um, dois, cinco segundos, antes de voltar-se para Kash, como se soubesse o que fazer, porém não tivesse certeza.

— Daniel!

Coloco as mãos sobre meus ouvidos, como se isso fosse abafar os pedidos de Kash, como se isso fosse apagar seu suplício de minha memória.

Kash geme uma vez mais e deixa que sua cabeça caia no solo, deixando seu choramingo ininterrupto ser abafado pela terra.

— Ajude-o, Daniel — murmuro, sem voz, sem poder conter minhas palavras sem som. — Ajude-o.

O rapaz abre a boca, hesita, mas nega com a cabeça, como se repreendendo a si mesmo por vacilar por um instante que seja. Em seguida, fazendo uma expressão determinada, Daniel puxa o rosto de Kash para olhar para o seu e pronuncia as palavras:— Eu te aceito como parte de mim, Kashka. De agora em diante, você será meu amigo mais próximo, meu conselheiro mais confiável e meu irmão acima do sangue.

Kash berra ainda mais alto, lançando-se para frente. Eu caio de joelhos, soltando um lamento esganiçado, sem saber identificar se pelo clamor de Kash ou se pela dor do impacto de meu corpo com o solo.

É aí que sou vista por um dos recém-transformados. Ele fareja em minha direção e me mostra suas presas, tentando desajeitadamente levantar-se em suas patas traseiras. Abaixo a cabeça, direcionando meu olhar para a mancha de sangue que surge na barra de minha blusa, onde a pele de minha barriga raspou contra um galho pontiagudo. Eu arregalo os olhos, voltando-me para a grande fera e vendo-o avançar um pouco.

— Não...

Ergo as mãos novamente para meus ouvidos quando o uivo alto ressoa, martelando em minha cabeça e delatando minha presença numa conversa entre lobos que está além de minha compreensão.

Minha respiração está pesada quando o lobo maior vira o focinho em minha direção, trazendo seus olhos vermelhos para mim.

Samuel...

Não assimilo a expressão de Daniel. Estou olhando para Samuel, tentando afastar flashes de imagens de focinhos cobertos de sangue e garras muito afiadas, quando ele se ergue em suas patas traseiras, rosnando para mim.

Eu levanto e corro, batendo em folhas mortas e pequenos cascos de árvore úmidos sendo encobertos pelas altas trovoadas que provém do céu. Meus movimentos frenéticos lançam galhos por todas as partes, quebrando-os um a um em uma sequência interminável de batuques sussurrados que meus ouvidos conseguem captar por debaixo do apito que soa em minha cabeça.

Eu não paro.

Eu não sei se respiro.

Eu não dou folga às minhas pernas.

Eu sei que, se ousar interromper-me, eu estarei perdida.

Não sei para onde vou, mas prossigo em minha busca interminável por algum lugar que não seja a Reserva. Em minha cabeça, afogo as imagens de lobos na margem deste mesmo local que se tornou refúgio. Em minha língua, engulo os resquícios dos gritos apavorados que desejo tão intensamente soltar, clamando por uma confirmação de que não é real, de que não é como sei que é.

É tarde demais.

Eu sei disso há muito tempo, meu sangue sente tudo o que passei, mas minha mente ainda tenta pregar peças em mim, afirmando que os pesadelos me enganam. Mas não. Não importa o quanto, pela primeira vez em muito tempo, eu queira acreditar que os tolos que me tinham sob seu poder no passado falassem a verdade. Não posso me esconder por nenhum segundo mais.

Isso realmente está acontecendo comigo...?!

Ofego uma vez, forte o bastante para perder o fôlego por completo. Em meus olhos, umidade acumulada embaça minha visão. Eu não vejo as árvores passando depressa, sequer noto que estou deixando para trás os apertados ajustes entre troncos. Tudo o que posso ver é garras e presas e sangue. Tudo o que posso enxergar é olhos infantis fantasmagóricos e apavorados pedindo pelo socorro que nunca veio. Tudo o que posso perceber é meu terror estampado em minhas pupilas, fitando-me numa poça de água no chão quando paro de repente, sem poder mais seguir, caindo de bruços no solo pedregoso com a mão pressionando meu ferimento recente. Minhas pernas protestam por cada pequeno movimento, meus pulmões se contraem e apertam, tentando buscar uma mínima essência de oxigênio após o que tenho certeza ter sido o mais longo percurso que já travei.

Os tremores que sinto me impedem de erguer-me mais que poucos centímetros do solo. Meus cabelos estão grudados em minha nuca e bochechas, ricocheteando em meus olhos a cada esbravejar do céu violento. A água da chuva cai em minhas costas com golpes pesados, mas, pela primeira vez, meu desconforto em estar debaixo d'água é menor que meu desejo de fugir.

"Lise, Lise, me ajude, por favor, ajude", a voz infantil, muito parecida com a minha naquela idade, berra em minha cabeça.

Eu vejo minhas mãos sujas de sangue quente e fresco e meus braços marcados por feridas e formas rubras de pequenos dedos infantis.

As cicatrizes invisíveis nas palmas de minhas mãos, estas marcas que surgem de novo em minha pele e empurram meu sangue para fora e para fora, não estão de fato aqui. Mas eu as vejo, entre espinhos e buracos negros em minha carne, entre a sujeira que se acumula por debaixo de minhas unhas quebradas e aparecendo mesmo com a grossa cobertura de terra úmida, folhas caídas e lama.

O sangue não era meu, mesmo seu derramamento era minha culpa. Entretanto, aqui, agora, ele continua saindo de mim como se fosse. Cada gota pinga na terra em sincronia com a chuva, drenando-me até não restar uma gota sequer. Não há nada em mim além de um corte superficial na barriga, mas eu continuo me vendo sangrar até morrer, como se o arranhão que tenho fosse, em realidade, um grande rasgo em minha carne.

"É sua culpa!", ela grita, mas não está aqui. Os cabelos brancos, sempre meticulosamente recolhidos em um coque discreto que a faziam passar despercebida na multidão, cobrem seu rosto quando ela olha para mim com mil emoções em seus olhos claros. E a acusação que permeia sua feição, o sentimento mais claro de todos, é como uma punhalada em meu peito. "É tudo sua culpa, sua besta terrível".

— Parem!

Minhas mãos estão em meus ouvidos e eu estou caindo e tropeçando em meus próprios pés. Eu estou engasgando em meu próprio sangue amargo, sentindo o gosto amargo do veneno na língua. Tento cuspir, tento tirar de mim este ácido que engulo em cada ardente tosse sôfrega que arranha minha garganta ferida pelos gritos que não sou capaz de soltar, mas não há o que expelir, não há nada além de toda a amargura e culpa invadindo meu sistema e correndo por minhas veias como um canal tóxico dentro do meu corpo.

A queimação em meu corpo dá uma trégua. Meus pulmões conseguem enfim contrair-se da maneira correta para captar uma quantidade considerável de oxigênio.

Com o oxigênio, o cheiro de pelo molhado chega até mim, sob o aroma da chuva.

Sei que estão atrás de mim.

Sei que vão me pegar.

Corra. Corra. Corra!

Meus pés não se movem e minhas pernas não me sustentam. Não consigo mais fazê-los me obedecer. Eu estou confinada em minha própria mente, me afogando em cada medo e temor acumulado, em cada tremor aterrorizado. Estou sozinha como sempre estive, mas nenhum deles me deixa em paz, todas as vozes cantando uma canção fúnebre em minha mente perturbada sem se interromper.

— Deixem-me em paz!

Meu berro se perde atrás de mim. Não sei se grito com as vozes ou com os seres que vêm para me pegar. Não se se grito comigo mesma ou com meu passado. Eu não sei se minha voz sequer sai, não sei se consigo forçá-la a escapar do aperto sufocante de minha garganta em carne viva.

Eu não choro, mas minha visão está turva pela tempestade que me agride na face e pelas costas. Caca gotícula de água é como um soco em minha alma.

— Deixem-me em paz... — Sussurro, sabendo que eles vão ouvir.

Sei que eles me ouvem, embora tenha a certeza de que não serei atendida em meu pedido.

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