Capítulo 28 - Parte Única

Desperto no susto.

Dou impulso para frente, cuspindo todo o líquido salgado que tentaram enfiar goela abaixo. Tusso para expelir o que resta em minha boca, entretanto o ardor em minha garganta comprova que eu engoli boas goladas antes de eu conseguir acordar. Mãos suaves dão batidinhas em minhas costas, mais como um carinho do que como uma ajuda. Contenho um grunhido irritadiço, e deixo que as palavras "esses golpes só estão atrapalhando o trabalho dos meus pulmões" morram em minha língua.

Quando minha crise de quase afogamento passa, e minha garganta ultrapassou o lastimável estado de carne viva, eu deixo de tentar expelir o pequeno oceano que deve estar em meu estômago.

— Hey — chamam-me, quando recosto-me no leito que me foi oferecido sem que eu notasse.

Não faço a mínima ideia do que aconteceu. Minha lucidez permite que eu capte que não estou mais no refeitório, que desmaiei, e isso é tudo.

A aparência branca e sem graça da enfermaria desde a vez que estive aqui, para fazer os curativos de minhas mãos — agora curadas — não mudou nada. As mesmas macas de ferro branco enfileiradas, a mesma cor sem cor em todos os cantos, o mesmo piso encerado com um fraco aroma de desinfetante e a mesma enfermeira, calada e séria, que passa por minha cama para conferir, com uma desconfortável luzinha, meus olhos e garganta. Com uma fala para Sam, a dona das mãos que me "ajudavam" a botar a água para fora, ela se retira, deixando-nos a sós.

— Quanto tempo eu fiquei apagada? — É minha primeira pergunta.

Estou sentada com as costas apoiadas no travesseiro macio, mesmo que queira sair correndo porta afora. Estar em meio ao conforto de lençóis não é meu ideal de recuperação; estaria me recuperando na floresta, rondando nosso abrigo, se estivesse em Mônaco. Cada célula e micropartícula de meu corpo imploram por ar, para que eu saia e respire tudo, menos o sal que, tenho certeza, foi forçado por minha garganta assim que perceberam o incompreensível efeito que este mineral tem sobre minha incomum e bizarra alergia. Faço uma careta.

— Um dia. — Quem responde é Samantha, que deposita um copo com o líquido salgado sobre a mesinha mais próxima. — Acredito que o jantar já deva estar acabando.

— Fique muito feliz, Nori — diz Chia, tentando aliviar o clima. — Você ganhou um bônus de, além de não ter que comparecer às atividades desta Sexta, ter todos os trabalhos coletivos de Sábado suspensos.

Sorrio para ela, um sorriso que se transforma em careta quando noto o quanto mexer a boca dói.

— Por falar nisso, não perguntei o que estão achando da Reserva — fala Sam, em tom sugestivo, mudando de assunto graciosamente ao notar meu incômodo. — Já se passaram quantos dias?

— Agora, doze dias aqui — é Chia quem diz.

— Acostumaram-se? Estão gostando?

— Fora o fato de ter que ficar longe do Mar, o que não é sacrifício, só estranho, de não poder me aproximar dos arredores da floresta, o que também não me incomoda, e de estar, basicamente, dentro de salas distintas falando sobre respiração, controle das emoções e plena conectividade com meu eu interior — Chia esconde uma risada numa tosse, enquanto continuo a falar — eu estou achando bom. Mesmo que seja muito esquisito andar ao lado de pessoas que me fazem ter a impressão de que em um instante virei elas se transformarem num tipo sinistro e desconhecido de animal que pularão pela janela mais próxima.

Chia arregala os olhos, como se me repreendesse, mas Sam dá risada, sem se importar com o comentário.

— Sei como é — afirma, para minha surpresa. — Quando fui trazida por Samuel para viver na Reserva, eu não queria fazer parte dos treinos físicos, como você. Era muito difícil e eu me sentia num manicômio onde me faziam entrar em contato com uma voz interna que não existia. Acostumei-me quando aprendi o significado disso.

Desta vez, somente sorrio. O tópico "treinamento" ainda me desconforta, tanto que me deixei ver uma única das sessões de treinamento: uma corrida pelo descampado que fica ao Leste de minha janela.

— Não gosto de atividades ao ar livre, fazer o quê?

Uma pausa se segue. A seriedade volta à conversa.

— O que foi isso, Nori?

Sei que a pergunta não se é sobre minha alergia, que imagino nunca ter sido vista por Sam, pois isso não geraria tamanho estranhamento. Seu questionamento é sobre o "calmante" sugerido por Chia, o remédio que tenho que receber para aplacar os danos feitos pela alga rara em meu estômago e pele. Sigo em silêncio, porém, recusando uma resposta imediata enquanto coço as pequenas bolas, parecidas com as de picada de inseto, que se espalharam por meu corpo durante a discussão sobre dar-me ou não o suposto — e temporário — antídoto dito por Chia.

Meu desejo é procrastinar esta conversa ao máximo, mesmo que eu saiba que estou tentando parar com esse hábito de fugir daquilo que pode tocar em pontos sensíveis.

Eu realmente escolhi um péssimo momento para parar de fugir das perguntas.

— Eu não sei quando criei a aversão à alga-de-colosso. É bem cara e uma raridade — nego com a cabeça, sem querer ter que explicar algo que nem eu sei. — A primeira que tive uma reação estava na praia perto de minha antiga casa, quando encontrei um amontoado de folhas que nunca tinha visto. Tinha uns três ou quatro anos.

— Estava sozinha?

Meneio a cabeça, em negativa, para a pergunta de Chia, sem acrescentar nada — ela sabe que não falo sobre meu passado antes de Mônaco e por isso fica em silêncio. Levo um segundo para prosseguir com a história.

— Coloquei uma das plantas na boca, mas não comi mais, pelo gosto meio apimentado, diferente de qualquer tipo de alga que já tinha comido. Levei poucos minutos para começar a sentir minha traqueia se fechando, minhas vistas embaçando e tropecei para dentro da água. Afoguei-me, naquele dia, mas a alergia melhorou. Depois disso, nunca mais comi daquilo, até uma refeição no Festival da Colheita, onde temos esse tipo de comida típica marinha, em que serviram a planta sem que eu notasse. Foi assim que Chia soube.

— Fiquei desesperada — prossegue minha amiga, virando-se para Sam. — A sorte é que a fonte que há no Centro é abastecida de água salgada, para não correr o risco de ser assaltada por quem não pode comprar a potável. E Nori é esperta para saber que enfiar a cara lá dentro fingindo ter tropeçado num paralelepípedo rachado não traria grandes considerações ou questionamentos dos nossos responsáveis. Ninguém perguntou sobre.

Sam olha-me com uma expressão incompreensível. Dou de ombros, com um sorrisinho amarelo.

— Tem que ter pelo menos uma vantagem do Governo não querer correr o risco de gastar um bem tão caro como água doce com os pobretões.

Ela nega com a cabeça, parecendo incrédula.

— Sabe de uma coisa? — Apresso-me, ao ver a frase se iniciar na boca de Sam. — Vamos aproveitar que eu estou presa neste lugar e que você está aqui, Sam, e falar de coisas importantes. Já conseguiu ler o que está escrito naquilo que te entreguei.

A última parte de minha frase sai em um sussurro, considerando minha falta de conhecimento acerca do tamanho da relevância do tal enigma, e de qual secreto deve ser. Sam suspira, contrariada com minha tentativa de mudar de assunto, mas acata minha decisão ao reclinar-se na cadeira de ferro que usa. Com nada mais que um olhar, eu lhe agradeço.

— O idioma dali é um pouco mais complexo que o normal.

— É o mesmo idioma do livro que nos mostrou, certo? — Chia pergunta, fazendo-me notar que reconheceu as formas das letras, como eu.

— Latim, se bem me lembro — completo, virando-me de uma para a outra.

— É sim — aquiesce. — O problema é que, mesmo que seja o mesmo idioma usado no livro e mesmo que eu conheça a língua, em si, o latim não é fácil de ser lido como eu gostaria que fosse.

— Quer dizer que não vai conseguir ler tudo? — Interrompo.

Seus cabelos, pouco abaixo dos ombros, tornam-se uma confusão de nós, quando ela mexe a cabeça em negativa à minha indagação.

— Posso ler. Estou enferrujada pelos anos que passei sem estudá-lo. O fato de ela ter originado outros idiomas que não são muito similares ao inglês contribui um pouco para a falta de prática, mas eu posso ler. Pedi um prazo para decifrá-lo para Sammy e também peço a você. Uns poucos dias, talvez.

Sequer assimilo o apelido carinhoso que dá a seu irmão. Estou percebendo o tremor em sua voz ao completar sua fala, e, graças a isso e à sua involuntária careta, por algum motivo que me atormenta, deduzo que Sam esconde informações.

— Mas você sabe o que é aquilo, não é? — Insisto.

As íris castanhas da mulher entram em foco quando ela ergue a cabeça, mirando-me com o que parece ser mil cenas perpassando suas retinas.

— Aquilo pode ser a nossa única esperança de ter um futuro.


***************************************

Não se esqueça de clicar na estrelinha!

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top