Segunda Carta


Douradinho, Minas Gerais, 13 de dezembro, 1950.

Também não estou gostando nem um pouquinho de estar aqui, compartilhamos do mesmo sentimento.

Esse lugar está me esgotando. Sinto-me tão impaciente e com raiva. Não se encontra nada de bom no raio de quilômetros. Isso se não considerar casinhas com gente na janela algo bom. Eu não considero.

Costumo gostar da natureza, mas a daqui é sem graça alguma. Estou me irritando com tanto mato, zunzunzum de mosquitos e, o mais irritante, os galhos que arranham minhas pernas quando resolvo andar um tiquinho por ai. Há ainda minha tia-avó, quase inválida, como já lhe disse, aproveita-se de mim para me usar como capacho, mandando-me resolver todos os seus problemas, dos pequenos aos grandes. E não há mais ninguém a quem recorrer nessa casa. É somente eu, ela e, às vezes, à noitinha, um gato que vem pedir por comida. E todos os dias vão se passando exatamente iguais, uma verdadeira sucessão de reedições do mesmo. De cinco horas um galo canta, minha tia-avó já está em pé passando café, obriga-me a levantar e faz a divisão de tarefas entre mim e ela. Faço tudinho sem reclamar, enquanto ela fica procrastinando com a vassoura, varrendo em frente à casa. Quando termino tudo, ela alega que há muitas tarefas dela que não foram feitas, empurra-me outro tanto de enxurrada de afazeres. No fim, faço tudo, só não varro. Às cinco e meia ela para o que está fazendo para colocar sua cadeira na calçada e se juntar ao resto de mulheres, ficando até oito e meia conversando sobre a vida alheia. Quando muito, fico na janela vendo o nada continuar a acontecer. Penso que deve estar acontecendo tanta coisa nesse mundo, tão, tão distante de mim, em algum lugar se passa algo maravilhoso, se descobre um invento revolucionário. Mesmos os pequenos prazeres, olhares se apaixonando, crianças nascendo, pessoas morrendo, tudo que é comum e nada grandioso ainda é alguma coisa. Enquanto eu há dias presencio o absoluto nada. É tanto ócio que minhas leituras estão se esgotando, logo nem as palavras terei para me distrair. Enlouquecerei.

O mais curioso é pensar que vivi aqui durante longos anos da minha vida, dos zero aos cinco anos, um tempo em que, sei lá como, não perdi a sanidade. Devo não ter chegado a esse estágio por motivos de ignorância. Não conhecia outra realidade que não fosse essa, esse era o mundo e assim fui carregando o nada nas costas, sem questionar ou me acometer de excessos de raiva por morar aqui. Afinal, não concluímos muitos pensamentos extraordinários aos cinco anos.

Anos se foram e enquanto aqui continuava a persistir o nada, eu fui me tornando um emaranhado de muitos acontecimentos, nenhum grandioso, mas ainda assim alguma coisa. Vi pouco desse mundo após partir desse infernozinho, mas passei quase uma década em Ouro Branco e um ano em Vila Doracy, possuidoras de universos maiores e mais diversificados que esse aqui. Retornei e agora não posso continuar dando-me por satisfeita com o nada ocorrendo. Acostumei-me a ter ao menos pequenos acontecidos colecionados ao fim de cada dia. Prevejo, então, o tão sonhado dia em que eu irei para Belo Horizonte. É muito provável que depois dessa experiência nada mais irá me ser suficiente, Ouro Branco e Vila Doracy irão se tornar tão insuportáveis quanto aqui. Se um dia for eu mesmo para Beagá, terá que ser para permanecer pelo resto dos meus dias. Só deixarei a cidade caso seja para algo maior.

Chega de devanear. O senhor me pediu qualquer coisa, então dei-lhe esse relato. Creio que seja algo melhor que uma folha em branco. Quer saber? Admito que pensei que mandar-lhe uma. Só por diversão. Quis pensar no senhor dormindo com ela. Mas, bem, disse que cheiraria e faria de uma simples folha em branco o teu ícone, não foi? Então, pensei, o que faria ele com folhas repletas de letras? Vai saber, não é? Espero que faça algo superior a dormir ou cheirar, pois se não ficarei muito decepcionada.

E concordo com o senhor, foi mesmo muito meloso, mas cheguei a beirar o gostar lendo tuas palavras tão açucaradas. Se fosse eu uma menininha boa, diria que também sinto tua falta e que também te amo. Mas não direi nada disso. Não darei esse gostinho a ti. Deixarei que fique remoendo em tua cabeça se meus sentimentos são ou não reais. Serei uma interrogação na tua vida.

De todo jeito, tratarei de ceder um pouco e vou pedir-lhe por uma coisa que talvez lhe agrade: nunca me largue, jamais nessa vida. Gosta de ouvir-me dizer isso? Nunca me largue, nunca me deixe!

Quanto a minha tristeza, não se preocupe, ela nunca se vai, mas dá-me trégua de vez em quando. Como hoje. Estou raivosa demais para conseguir dar atenção a outros sentimentos.

Beijos, beijos da tua Mel.


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