28 de Janeiro de 1951

Terça-feira, 28 de Janeiro

Na manhã seguinte à dia de nossa fuga, Melinda já reclamava da maresia, da areia e tudo que podia existir em uma praia. Clamava por um banho, reclamava de estar com a pele suja e resmungava sobre os seus cabelos oleosos. Para mim, ela estava divina e eu lhe falava da sua beleza praiana enquanto sugeria passarmos uma vida naquele mar. Minha menina, claro, negou com sua cabecinha balançando, fazendo bico com seus lábios.

Dando-me por vencido, desisti do mar e expliquei-lhe o roteiro que eu desejava fazer — onde o fim seria Belo Horizonte —, pormenorizado todos os desvios que eu faria para evitar até o cheiro de Ouro Branco.

— Moraremos em Beagá? — indagou-me minha menina, interrompendo as instruções que eu lhe dava.

— Talvez. Ao que tudo indica, ficaremos ao menos um tempo por lá. Mas, Mel, escutou o que eu lhe falei antes disso, não é? Melinda, não sabemos o que virá pela frente, é importante que... Por que não me ouve?

Irritava-me como Mel parecia se distrair tão facilmente das coisas que eu lhe falava, preferindo olhar para o lado oposto ou focar sua atenção nas pontas de seu cabelo a me ouvir. Ela possuía uma birra quase infantil em seu modo de agir, que me levava à impaciência. Porém, meu amor e minha admiração permitiam que eu amasse até esses seus detalhes tão irritantes.

— Olhe para mim — pedi.

— Eu estou lhe ouvindo — retrucou, virando com brusquidão seu olhar para mim — Não ouço com os olhos.

Oh, eu me sentia tão feliz tendo-a! Por que ela não se permita sentir toda aquela dádiva que estávamos vivendo? Esqueça essa sua birra, minha Mel! Tem a mim e eu a tenho!

— Pois bem, então está sabendo que é para agir com completa naturalidade, não é? É importante, Mel, muito, que não levantemos suspeitas.

— Suspeitas sobre o que, exatamente? — deu de ombros, desviando o olhar do meu mais uma vez.

— O que fizemos não deve ter deixado certas pessoas muito felizes. E se estiverem tentando nos achar?

Melinda fez como quem não se importava e eu suspirei, dando partida no carro. Com o tempo contrário ao do dia anterior, fazia sol, com toda a estrada banhada de calor e um céu sem nenhuma nuvem. A umidade e a tempestade se foram, deixando somente um calor típico do verão de Janeiro. Naquele dia havia aprendido que Melinda detestava sol, pois tratava de reclamar dele em intervalos de dez minutos.

— Sinto-me pregando! E veja isso, — pegava um tufo de seu cabelo — está imundo. Tudo piora com esse calor. Já estamos próximos de chegar?

Eu me forcei a não parar pelo caminho, em busca de fazer um favor a mim e a Melinda e encontrar rápido um lugar, antes que anoitecesse e minha menina se irritasse mais. Chegamos a Belo Horizonte beirando às três da tarde, com minha Mel irritadiça demais para conseguir apreciar a beleza da cidade grande, que tanto falou em conquistar. Tentei chamar-lhe a atenção, apontando para algum viaduto ou prédio, contando-lhe uma história em seguida, mas ela suspirava e chegava até a esconder os ouvidos, ignorando-me por completo.

— Tá certo, está certo — resmungava — Mas ficaremos em algum desses prédios que o senhor tanto aponta? Não. Estão apenas siga para onde vamos ficar. Onde é, mesmo? Nem o senhor sabe! Quero um banho! Eu devia ter vindo sozinha.

Deixei-a em paz para evitar que eu perdesse de vez a minha paciência.

Às quatro e meia, enquanto eu descia e subia as ruas de Belo Horizonte na maior lentidão, com o olhar fixo nas casas, procurando por algum lugar, acabei por encontrar o que julguei ser uma pensão apresentável e respeitosa para se viver. Melinda saltou do carro com um sinal, emanando uma repentina animação, comentando o quanto o lugarzinho era charmoso.

— Um verdadeiro achado — concordei, ainda dentro do carro — Mas não se anime tanto, não sei se poderemos ficar aqui.

— Há vagas — fez sinal para uma plaquinha do tamanho de nada, que anunciava três lugares vagos na pensão.

Sem fazer nenhuma objeção, recolhi nossos poucos pertences que havíamos trazido conosco — já na esperança de que fossemos ficar ali —, e caminhei em direção à minha Mel, que estava parada no modesto pátio em frente ao estreito prédio de três andares. Melinda cheirava uma das flores da tentativa de jardim que percorria as paredes encardidas, jogando-me um sorriso quando me viu aproximar-se.

— Senti falta desse sorriso ­— disse-lhe, acarinhando sua bochecha com meu dedão.

Melinda desgrudou-se para longe do meu carinho e correu até a porta principal, balançando o sino que havia na entrada. Uma senhora nos atendeu, dotada de uma desconfiança inicial, que logo se quebrou com a simpatia de minha Mel. A mulher, Vânia, uma viúva que carregava o título na testa, convidou-nos a entrar em sua pensão, enquanto nos enchia de uma série de explicações e perguntas. Dentro, a mobília sem graça e o chão vermelho de cimento batido contribuíam para encher nossos olhos, já tão cansados, de uma farta languidez.

— Aqui fica a sala, de uso comum a todos. A cozinha também é de uso comum, mas peço-lhes que a evitem quando Luci estiver trabalhando, ela odeia interrupções. Ah, esqueci-me! Luci é a nossa cozinheira e também uma pensionista — contou, enquanto nos guiava para um balcão improvisado no canto da sala de estar — Além de mim e de Luci, é bom saberem que há o Tadeu e o Cássio, dois estudantes talentosíssimos. Não terão problema algum com eles dois. São garotos de ouro. Há também a solteirona, Meire, calada e introspectiva, não faz a linha fofoqueira, nem um tiquinho. Por último, temos o senhor Alfredo, que mal anda, mal vê e mal fala. As filhas o largaram aqui e sequer pagam o aluguel no valor correto... — pegou um caderninho por detrás do balcão, encaixando o óculos e sorrindo para Melinda — Seremos nós oito, então?

— Sim — apressei-me em responder — Ficaremos aqui.

— Ótimo! Então, digam-me, são viajantes passageiros? — perguntou a senhora, tomando nota no papel.

— Somos viajantes e passageiros, mas seremos mais permanentes do que essas duas palavras sugerem, garanto-lhe — frisei — Pode contar conosco por ao menos uns dois meses.

— Nomes, por favor?

Àquela pergunta, vendo que Melinda já abria a boca para responder, puxei-lhe a mão escondido, com ela soltando um resmungo por ter sido bruscamente contrariada.

— Gregório e Linda Ávila.

Enquanto a senhora repetia os nomes falsos e os anotava toda concentrada em seu caderno, Melinda aproveitou-se para me olhar de forma interrogativa. Ela era esperta o suficiente para saber que não seria inteligente da nossa parte oferecer nossos nomes verdadeiros àquela mulher, nem sabia por que Melinda ainda me questionava com os olhos.

— São parentes? — a mulher perguntou, voltando a nos encarar.

— Somos noivos — respondi, todo satisfeito de enfim poder apresentar Melinda como minha.

O rosto da senhora morreu e o lápis que segurava bolou da mão e caiu de cara com o piso. Atônica, abaixou-se para pegar, sequer conseguindo fixar seu olhar em algum ponto do assoalho. Melinda apressou-se para resgatar o lápis e entregar a mulher, iniciando uma gargalhada histérica enquanto se levantava.

— Ele está brincando! — exclamou minha menina, tomando-me pelo braço e forçando mais o riso — Ele é o meu pai. Não sei por que ele fez essa brincadeira idiota.

Passando a mão pela testa, Vânia voltou a se sentar, ensaiando um sorriso nervoso.

— Ufa. Fiquei um pouco preocupada... A senhorita é muito jovem, pensei que... Ah, bobagem — dispensou comentários com a mão — Bem, têm problemas com escadas? Ficarão no terceiro andar, terão que subir algumas e... ah, claro, ficarão no andar da solteirona. Dividirão o banheiro e o corredor com ela. No quarto há o básico e necessário. Duas camas, uma para um pai e outra para uma filha.

Após Vânia subir conosco para apresentar nosso quarto, tratou de nos deixar a sós em um instante. Quando a mulher bateu a porta, eu já encarava Melinda a sério, enquanto a menina procurava o melhor lugar para pôr seu toca discos, praticamente o único de seus pertences.

— Aqui está bom, não é? — perguntou, colocando-o em cima do criado mudo que dividia as duas camas de solteiro do quarto — O que foi, por que está parado ai?

— Por que disse aquilo?

— Aquilo o que?

— Que eu era seu pai.

Cruzando os braços, Mel largou o toca discos e jogou-se na cama, batendo com tudo as suas costas no colchão.

— Não viu a cara que ela fez? O senhor dá nomes falsos para não levantar suspeitas, mas quer andar por ai comigo, mostrando-me como sua noiva, e quer ser discreto? Olhe para mim, Gregório. Tenho dezesseis anos e o senhor cinquenta, todos notam a diferença brusca que há. Outra, aparento ter bem menos idade, uns dizem catorze e outros treze. O senhor não vê que foi burrice dizer que era meu noivo? Nem sequer somos isso.

Sentei-me na cama, apalpando a coxa de Melinda com ar aborrecido, apreciando minha menina encarar o teto. Ela não compreendia minha felicidade em mostra-la como minha! Não queria esconder-me por ai sob o verniz de um pai. Queria casar-me com ela, que ela fosse minha namorada, minha noiva, minha mulher!

— Mel, viveremos nessa casa por um tempo. Como poderei passar-me por seu pai durante semanas? — perguntei-lhe — Foi um erro. Diga-me, e se me verem fazer isso? — inclinei-me por seu corpo jovem e beijei-lhe o pescoço — Como irei explicar?

Melinda colocou a mão em meu peito e me afastou, sorrindo.

— Simples, é só não fazer — constatou.

— Sabe que não é assim. Sabe que não me detenho e sabe que, agora, mais do que nunca, é minha. Por esse motivo, não irei me permitir viver como antes, quando eu não podia toca-la.

Pai — ela chamou, em tom zombeteiro — Estou com muita dor de cabeça. Não poderia apenas fazer um carinho na minha cabeça até eu dormir?

— Pensei que gostaria de sair à noite para ver a cidade.

— Gostarei, mas em outro dia.

— E o seu banho?

— Estou cansada demais até para um banho. Acredita? Tomo amanhã de manhã.

— Bem... — empurrei sem corpinho para o lado, acomodando-me junto ao seu calor — Então lhe darei seu carinho.

Sorrindo, minha Mel fechou seus olhinhos, enquanto eu enfiava minhas mãos em seu cabelo — que de fato estavam oleosos—, e ali depositei todo o meu amor por aquela menina. Quando adormeceu, demorei para me permitir mover um palmo, crendo que qualquer movimento brusco pudesse destruir sua respiração sutil, nossa aproximação, aquele prédio. Um deslize pelo lençol daquela cama e eu regressaria a Vila Doracy, com minha cabeça enfiada no divã e a solidão da madrugada. Eu não poderia fazer nada, senão comtemplar aquele novo quadro grudado em mim. A menina que repousava, com seus cabelos jogados de todo jeito pela cama, sua saia levantada de modo indiscreto, a luz do poste entrando no cômodo e iluminando metade de seu rosto suado. E eu? Seria um mero objeto naquela obra, o homem escondido pela sombra da cortina, com sua expressão de afeição inacessível a quem olhasse o quadro.

Dei-lhe, por fim, um beijo em sua testa salgada, notando com prazer que aquele mundinho não havia sido desfeito pelo meu gesto. Real como os anos de infelicidade que havia vivido, aquele presente se estendia para mim da forma mais concreta e palpável, impossível de se autodestruir. Estávamos juntos naquela pintura que era a vida, moldando um dos quadros mais perfeitos que ela possuiria ao se findar. Com todo o ar de incredulidade que a felicidade nos faz respirar, suspirei um simples eu te amo, inaudível ao sono da minha menina e invisível aos espectadores daquele quadro. Porém, escutável a mim, que o depositou como um mistério naquela obra. Só eu e os senhores saberão que naquele quadro reside essas sete letras, que suscitam todo o sentimento que venho vivido com tanta violência por meses! Dançando pelo aroma da incredulidade, inaudível e invisível, meu eu te amo nunca foi tão real.     

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