XL_Beijo das almas

Juliano pegou um canivete que sempre carregava preso ao cinto e cortou rapidamente a corda presa a  Miranda, depois se apressou para puxá-la para a superfície.

— Miranda! — Começou a fazer massagem cardíaca, seguida por respiração boca a boca — Acorda por favor! — Ele chorava desesperadamente — Acorda! Eu preciso de você! Eu preciso de... — Ele se aproximou e deu um suave beijo na boca da minha irmã, que ainda estava desacordada — Por favor! — Fez mais uma sequência de reanimação, mas nada funcionava.

...

 —  Vamos jantar sem o Sérgio mais uma vez? —  Minha mãe perguntou assim que nos assentamos na mesa da sala de jantar e todos nos calamos.

 —  Hoje ele não vem mamãe. —  Manoel segurou sua mão e falou.

 —  Ele não me avisou nada. Esse homem tá cada dia mais ausente e não estou gostando disso. Vou ter que conversar seriamente com ele quando chegar.

 —  Faz isso sim mamãe, mas por agora vamos aproveitar que estamos todos juntos e comer. —  Manu completou.

Nos olhamos em silêncio e voltamos a comer.

...

A noite já havia caído quando Juliano finalmente conseguiu reanimar Miranda. Ele a abraçou quando minha irmã cuspiu toda a água que havia engolido e tossiu, abrindo os olhos.

—  Graças a Deus você tá bem Miranda! — Ele chorava enquanto acariciava seus cabelos — Nunca mais faça isso comigo princesa!

Miranda ainda estava atordoada e, por isso, o amigo a levou para o chalé e a deitou na cama.

...

 —  Sua mãe continua perguntando pelo seu pai, isso não é normal. —  Miguel falou, sentado ao meu lado na cama, enquanto eu amamentava Luciana.

 —  Em pouco tempo o assassinato do meu pai vai prescrever, isso pode estar abalando ela mais do que imaginamos. Eu tenho medo de que isso avance e ela não se lembre da Lu ou de nós.

 —  Já tentaram levar a um especialista?

 — Já, mas ele falou que ainda precisa de alguns exames e avaliar a médio prazo pra saber se estamos realmente falando de uma doença ou de um estado temporário.

 —  Acha que ainda dá tempo de descobrir o culpado ou provar que foi o meu pai?

 — Tudo depende de descobrir quem é o tal CM e se ele ainda tá vivo. Mas não sei nem por onde procurar.

 —  Posso tentar descobrir com o meu pai, vou lá na fazenda amanhã.

 —  O que você descobrir já vai ajudar muito, o resto deixa comigo, com o Manu e com a Karla. Não quero que tenha problemas com o seu pai. 

 —  Se ele realmente for o assassino que você suspeita a única coisa que vou querer dele é distância.

 —  Ele é seu pai, não precisa sentir ódio pelo que fez contra o meu. O sangue sempre vai falar mais alto, ele te criou e você o ama, não quero que fique se culpando por não conseguir odiar.

 —  Você amadureceu muito desde que escreveu aquele caderno e essa é uma das maiores provas.

 —  Com o passar do tempo eu percebi que o mundo não tem que ser triste, vingativo ou rancoroso só porque eu quero que seja. E acabou que eu me tornei menos disso depois que parei de pensar assim. O mundo não vai ser um paraíso de justiça só porque eu quero que seja, mas cabe a mim lutar até o fim pela verdade.

 —  Caberá a nós, tenha certeza disso. Não só por você, pelo seu pai ou por mim, mas também pela Lu, pra que ela saiba que a justiça existe se não desistirmos dela.

Sorrimos e nos abraçamos.

...

— Eu te proíbo de me assustar assim outra vez, ok? — Juliano falou, enquanto cozinhava um macarrão no fogão elétrico da bancada.

— Não vão parar de me dar sermão nunca? — Miranda estava sentada na frente da lareira, enrolada em um cobertor e tomando chá.

— Não, eu não vou. Poxa, tem que pensar no seu bebê, não é ,mais só você dentro do seu corpo.

— Eu já falei que não vou pensar em alguém que eu não pedi pra estar aqui, e que ainda tá inchando a minha barriga.

— Eu já te falei pra pensar bem nas possibilidades. Sei o quanto o seu psicológico é fraco e de como pode afetar ele fazer alguma coisa por impulso.

 — Não tem outra solução. As outras duas opções são estragar a minha vida sendo mãe solteira ou fazer o Felipe assumir, que além de ser impossível seria infinitamente pior pro meu psicológico.

 — E se eu assumisse e te ajudasse a criar? A gente não precisa ter nada sério, eu só vou te ajudar.

— Eu não posso te obrigar a assumir uma criança que você nem sequer fez e ainda ter que me aturar com todos os meus problemas.

— Isso já é problema meu, pensa com carinho na possibilidade. — Ele bateu a colher na panela — O macarrão tá pronto.

— Finalmente. — Miranda se levantou e caminhou até a mesa, onde pegou seu prato e o de Juliano e levou até a cozinha.

— Só acho que fica sem graça um jantar sem música.

— A gente come e depois eu ligo uma música pra dançar. Topa?

— Topo se a música não for nenhum funk, axé, salsa, forró ou qualquer coisa que envolva fazer alguém que acabou de se afogar rebolar muito.

— Tudo bem, você escolhe.

— Então estamos de acordo. Vamos jantar?

— Vamos. — Ela sorriu e entregou um prato para ele.

...

 — Entra, cuidado pra não bater em nada. — Rodolfo abriu a porta de sua casa na fazenda e Cecilia entrou com ele.

 — Eu não tô operada, é só um machucado.

 — Uma FACADA Cecilia, uma facada.

 — Tá, dá no mesmo.

 — Você vai me falar o que tá planejando e como conseguiu essa belezinha. — Ele apontou para o curativo na barriga.

 — Fui enfrentar o Fernando com tudo o que descobri nesse tempo da gravidez do Bernardo. 

 — E foi assim que ele recebeu a notícia de que é seu pai?

 — Exatamente assim. Claro que eu também não cheguei com "oi papai querido, sou sua filha e te amo muito", porque minha mãe não tá completando aniversário de morte hoje pra eu fazer graça com esse babaca.

 — É hoje né? Me desculpa por esquecer.

 — Não é sua obrigação lembrar, até eu queria apagar esse dia pra sempre do calendário. Mas tem coisas que a gente não pode esquecer, porque lembrar nos faz tentar agir diferente.

 — Eu já entendi tudo, você tá certa de ter ido enfrentar. Mas por favor não vá sozinha, aquele homem já mostrou do que é capaz.

 — Eu não tenho medo dele, e se precisar morrer por jogar o que ele fez na cara dele, tenho certeza de que a minha mãe vai se orgulhar. Mas não vou dar esse gostinho, fica tranquilo que vou agir com muito cuidado e aquele infeliz vai ter que me aturar por muito tempo.

 — Então vai ficar por aqui?

 — Por hora sim, ainda tô pensando se trago o Bernardo, mas por hora ela continua com a minha irmã. Mas agora tô precisando de um emprego, porque voltar pra plantação de morangos é quase suicídio.

 — Não sei com quem falar, mas vou tentar.

 — Me mandaram falar com um tal de Manoel, fazer carinha de pena e falar que você me recomendou.

 — Quem te mandou?

 — Não interessa, só preciso encontrar esse moço e tenho certeza de que o serviço é garantido, mas por enquanto posso morar aqui com você? Prometo que pago tudo o que gastar quando começar a receber.

 — Não se preocupa com isso e pode ficar por quanto tempo quiser. Se quiser trazer o Bê também pode, porque onde come um comem dois e até três.

 — Eu juro que não sei o que faria sem você. — Ela o abraçou.

 —  E muito menos eu moleca. — Ele sorriu e apertou a cabeça contra os cabelos longos e lisos da amiga.

...

Depois de jantarem, Juliano pegou seu celular e, em sua playlist, escolheu uma música que muito significava para ele.

— Ai Juliano, vamos dançar uma música romântica em espanhol? — Miranda ficou um tanto quanto surpresa.

— Mas não é qualquer música. Essa se chama Ya Me Enteré e é uma das músicas que eu mais amo.

— Se é assim, eu gosto também... Pelo menos por hoje, pra te deixar feliz.

Ele a pegou pela cintura, ela o segurou pelo ombro e os dois começaram a dançar lentamente.

E eles dançavam, enquanto nada além da música que tocava parecia existir. Juliano conhecia aquela letra e, mesmo que fosse em espanhol, conhecia a história: um homem que já havia aceitado que a amada estava com outro, mas que pedia que ela voltasse para ele. Essa era a história de Juliano, mesmo que ele nunca tivesse contado para ninguém.

Ele lembrava de como ele e Miranda haviam sido bons amigos no passado e como a amizade havia começado a se desgastar quando Miranda foi estudar no mesmo colégio que eu na capital. Depois, se lembrou da adolescência, do menino tímido e desajeitado que era, o que fez com que nunca pudesse contar o que sentia pela amiga. Era ele. Esse Juliano era aquele Juliano do passado, aquele cuja amizade Miranda se arrependia tanto de ter perdido.

— Como eu queria ter te conhecido antes de ter engravidado daquele maldito, antes de ter me envolvido com ele. — Ela lamentava, deitando a cabeça cada vez mais no ombro de Juliano.

— Agora não tem mais jeito, não vamos pensar no passado.

— Você é um homem de verdade Juliano, um homem que me valoriza. Também me arrependo de ter corrido tanto atrás do Miguel, de não ter te conhecido antes.

— Posso te falar uma coisa? É uma coisa que significa muito pra mim, mas que quero você preparada pra escutar.

— O quê?

— Eu tô aqui. Eu sempre estive aqui.

— Não, você não estava. Se estivesse, eu te daria todas as chances do mundo e teria te procurado.

— Ainda dá tempo, sua vida não acabou porque engravidou. Pelo contrário, tá começando uma nova etapa nela, e eu vou estar aqui pra te apoiar, como eu sempre estive, seja o que você decidir fazer com a gravidez.

— Juliano eu não quero que ache que vou falar isso só porque vou ser mãe solteira e não, mas...

— Não precisa falar, eu entendo pelo seu olhar. Sim, eu tô do seu lado, a gente vai dar um jeito ainda que não seja a melhor das escolhas.

E em meio àquela música, os dois se aproximaram mais e mais, até que se beijaram. Um beijo apaixonado, mas tão sintonizado, que parecia que os dois o tinham ensaiado por toda a vida. Só havia Miranda e Juliano naquele instante, mais ninguém, mais nada, mais nenhum problema ou tristeza. Só aqueles bons amigos que se haviam permitido sentir um pelo outro algo além de amizade.

— Miranda eu...

— Eu sei Juliano, eu já percebi.

— Já? E porque não falou antes?

— Porque eu ainda não tinha superado o Miguel. Bem, eu AINDA não superei o Miguel.

— Mas não tem problema, eu sempre aceitei que você fazia tudo por ele e nem por isso deixei de te amar.

— Não quero te fazer mal do mesmo jeito que fiz pro outro Juliano.

— Mas eu ainda sou o mesmo. Não foi uma aparência física diferente que me fez mudar o que eu sou por dentro.

— Espera. — Ela se soltou dos braços de Juliano e se afastou — Do que você tá falando?

— Acho que estamos falando da mesma coisa: que eu sou seu amigo Juliano e você já percebeu isso faz tempo.

— Do que você tá falando Juliano? Eu tava falando que já percebi que você gosta de mim. E eu... Eu também gosto de você, mesmo que eu continue tentando esquecer meu passado com o Miguel.

— Eu não tô falando disso.

— Então...

— Senta Miranda, por favor. — Ela se sentou.

— Tá me assustando.

— Não precisa se assustar porque eu quero te contar uma coisa muito boa e que sei que vai te fazer feliz.

— Então conta, porque tô muito necessitada de felicidade.

— A minha história com você começa no maternal, quando nos conhecemos. Você, sempre tão amigável, veio conversar comigo porque do meu lado era o único lugar que sobrou pra sentar. Ninguém queria sentar perto de mim.

— Do que você tá falando? Esse é o outro Juliano. Como você descobriu isso?

— Nossa história continuou pela infância, quando eu ia pra sua casa brincar de olhar as estrelas, ou te ensinar as matérias que não entravam na sua cabeça na escola. Mesmo quando você foi estudar fora, continuou tudo parecido com o que era antes, até que o Miguel chegou e você colocou na cabeça que tinha que conquistá-lo. Lembro quando fui estudar fora também, na primeira série do que hoje é o ensino médio. Você chorou muito porque tinha medo que as nossas férias não coincidissem. Mas coincidiam. Nas férias do primeiro ano, você foi me buscar na rodoviária e me deu toda a atenção, até aquela maldita festa em que você ficou mais obcecada pelo Miguel. No segundo ano, você apareceu lá com um novo namorado, um daqueles que você usava pra fazer ciúmes no Miguel, e praticamente não me deu atenção. No terceiro ano, você não foi e eu percebi que aquela linda amizade tinha acabado por completo.

— Você... Você é AQUELE Juliano?

— Sim Miranda, aquele cara de quem você gostou tanto como irmão, mas que começou a te ver como mulher em uma determinada época. Aquele cara que te deu seu primeiro beijo naquela festa.

— Você falou que foi o Miguel!

— E o que queria que eu dissesse? Você estava com uma puta ressaca, me perguntando sem parar se tinha sido o Miguel. Me desculpa, mas não quis estragar a sua felicidade falando que tinha sido aquele menino magrinho e desengonçado que eu era.

— Isso não pode ser... — Ela estava incrédula.

— Por quê? Só porque eu era feio? Tá, eu sei que eu beijava mal, mas não foi tanto assim, principalmente porque você tava tão bêbada que nem se lembra.

— Juliano eu me apaixonei por quem tinha me dado aquele beijo.

— Para de ser palhaça e tornar esse momento pior. Eu sei que você se apaixonou por quem te deu o beijo, porque você achou que o MIGUEL tinha te dado aquele beijo.

— Aquele beijo me fez ficar completamente obcecada pelo Miguel. Foi um beijo de amor e, tendo sido dele, eu imaginei que ele me amasse e que era o amor da minha vida.

— Não precisa fingir que se importou com o beijo Miranda!

— AQUELE FOI UM BEIJO DE AMOR JULIANO E MESMO BÊBADA EU CONSEGUIA PERCEBER! AQUELE BEIJO NUNCA SAIU DA MINHA CABEÇA, VOCÊ ENTENDE?

— Eu... Eu nunca imaginei...

— E você me disse QUE TINHA SIDO O MIGUEL!

— Me desculpa, mas não tinha como eu simplesmente acabar com os seus sonhos falando que EU tinha te dado aquele beijo. Você ia ficar decepcionada.

— Decepcionada COM O SEU AMOR?

— Decepcionada com quem tinha dado aquele gesto de amor. Eu preferia te ter como amiga do que te ver me ignorando porque seu amigo feio tava gostando de você.

— QUANDO VOCÊ VAI ENTENDER QUE EU NUNCA TE ACHEI FEIO?

— Eu ERA e ninguém precisava me falar. E eu não queria te obrigar a ser zoada ou passar vergonha por aceitar ter alguma coisa comigo!

— Eu desgracei a minha vida por culpa da sua MALDITA FALTA DE AMOR PRÓPRIO!

— Agora a culpa é minha? Que diferença faz se fui eu ou ele quem te beijou? Foi simplesmente um beijo!

— Não foi SIMPLESMENTE um beijo! Eu acredito em uma lenda que conta que as almas vagam solitárias pelo mundo, até que encontram a famosa alma gêmea.

— A sua alma gêmea não precisa ser quem te deu o seu primeiro beijo, para de ser antiquada.

— Não, ela precisa ser quem me deu AQUELE beijo! Porque quando os donos dessas almas se beijam, acontece o beijo das almas. Nossas almas se beijaram Juliano e voltaram a sentir o sabor da outra mais uma vez hoje! Você não percebe?

— Eu não sabia que isso era tão importante pra você, perdão.

— SEU PERDÃO NÃO ADIANTA AGORA! EU DESGRACEI A MINHA VIDA CORRENDO ATRÁS DE ALGUÉM QUE NEM ERA A MINHA ALMA GÊMEA!

— NÃO VENHA ME CULPAR POR ISSO!

— NÃO ESTOU TE CULPANDO! SÓ QUE POXA, VOCÊ SABE TUDO O QUE EU PASSEI CORRENDO ATRÁS DO MIGUEL! — Ela chorava muito ao lembrar — Você viu a surra que eu tomei da minha mãe na madrugada seguinte, por ter fugido de casa pra ir à outra festa ver o Miguel outra vez, eu destruí a minha reputação por ele, eu quase fiquei cega, eu quase fiquei aleijada, eu tô grávida de um maldito marginal,  e EU ACABEI DE TENTAR ME MATAR! E O PIOR É QUE VOCÊ ME VIU PASSAR POR TUDO ISSO E NÃO TEVE A MALDITA CORAGEM DE ME CONTAR QUE TINHA ME BEIJADO PORQUE SE ACHA FEIO!

— Me perdoa por favor Miranda. — Ele se aproximou e voltou a beijá-la — Eu te amo, eu sempre te amei e vou continuar te amando até o meu último suspiro.

— Para por favor Juliano. — Ela tentava se afastar, mas não conseguia, até que ele a soltou — Olha pro meu braço. — Ela mostrou o braço arrepiado — Eu fico arrepiada só de estar perto de você!

— Vamos nos dar uma chance Miranda, vamos dar uma chance pro nosso amor.

— Mas foi VOCÊ quem não quis dar uma chance pro nosso amor!

— Eu te entendo Miranda, entendo que tá chateada e tem toda a razão. Só quero que você deixe que a gente continue sendo amigos. — Ele a abraçou, mas ela se esquivou.

— Eu preciso pensar porque não sei se quero mais ser sua amiga.

— Tudo bem, eu entendo. Vou te dar o tempo que você precisa. — Ele pegou suas coisas e caminhou até a porta, abrindo-a.

— Eu não quero mais ser sua amiga porque... — Ele não a escutou e saiu, fechando a porta — Eu quero ser mais que isso.

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