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CAPÍTULO 15
Apenas Nós | Livro Um
Anne e eu havíamos faltado os primeiros horários de aula para fazer compras, não de roupas ou qualquer outra coisa do tipo, e sim de comida, até porque o que nossas mães tinham comprado estava a um passo de acabar e precisávamos repor nosso estoque do mês ou nosso almoço e janta seria apenas guloseimas e salgadinhos. Não foi uma tarefa difícil, embora um tanto estranho ter Anne ao meu lado e não minha mãe como costumava ser. Estávamos cheias de sacolas dentro do porta-malas do carro, e só em pensar subir as três escadas até chegarmos no nosso apartamento, eu começara a cogitar deixá-los ontem estavam.
— Droga — Anne resmungou, ao olhar para o celular segundos antes do sinal abrir e ela avançar — Tenho menos de cinco minutos para chegar na Universidade, ou aquele cara irá me matar — ela tinha um trabalho para apresentação e sua equipe fora um tanto enlouquecedora, contando as vezes que Anne repetiu essa mesma frase durante a semana.
— Você não está pensando em... — a frase morreu no ar, pois é uma tinha a minha resposta estampada no rosto de Anne — Como vou subir com esse monte de sacolas, Anne?
— Você pode pedir ajuda pro Humberto — falou, referindo-se ao porteiro que mal fica na portaria, e como já havíamos parado em frente ao prédio pude ter essa certeza — Eu guardo tudo quando chegar, mas tenho que ir agora mesmo ou não terá vestígios de Anne para fazer isso — soltei uma risada por notar seu desespero, ao mesmo tempo que ela abria a mala, e ligeiramente me ajudava a colocar as sacolas no chão em frente a portaria.
Pouco tempo depois eu me encontrava em uma situação não muito boa, tentava equilibrar o máximo de sacolas que conseguia e torcia para que tudo não fosse ao chão, também olhava em volta buscando pela cabeça careca de Humberto, mas ele provavelmente estava escondido e concentrado em algum jogo de futebol reprisado, como todas as vezes em que eu o encontrava.
Dei alguns passos para frente, quando uma mão surgiu e arrancou de mim quase todas as sacolas, me fazendo ter um sobressalto de susto — Acho que está precisando de uma ajuda — a voz grave chega até mim em um murmuro, e não preciso encontrá-lo para saber de quem se trata, mas mesmo assim o fiz, apenas para ter certeza que meu coração acelerou com a simples ideia de tê-lo por perto.
E como previsto, Adam estava na minha frente com toda a sua beleza intimidante.
Fiquei tentada a recusar sua ajuda, sabia que o acontecimento de ontem viria à tona no segundo em que nos colocássemos a sós, mas encarei as sacolas que ainda estavam no chão, e o relógio em meu pulso que me alertava pouco tempo para a próxima aula — Obrigada — falei, me agachando para pegar as compras que sobraram, e subimos para o apartamento. Em silêncio colocamos em cima da mesa, e em silêncio permanecemos por alguns segundos, mas como não consigo me conter, pergunto — Por que está aqui?
Adam encosta a lateral do corpo na parede e me fita — Você sabe o porquê — diz, colocando as mãos no bolso da calça caqui.
Inquieta, dou as costas e busco minha bolsa em cima do sofá em uma falha tentativa de fugir do assunto — É... vou acabar me atrasando ainda mais, então...
— Giulia — balbucia, e a julgar por quão grave sua voz soou no meu ouvido, sei que está próximo. Encontro seus olhos a poucos centímetros de mim, e como todas as vezes em que ele se aproxima, meu coração errou uma batida.
Mas acabo concentrando minha atenção em seus olhos avermelhados, entregando os vestígios de uma noite mal dormida — Não dormiu bem? — questionou, sem ao menos me dar conta.
Com a testa levemente franzida, ele me encara — O que?
— Seus olhos estão...
Me interrompe — Tive uma noite longa — ergo a sobrancelhas e tenho certeza que minha expressão de indignação ao perceber o óbvio não passa despercebida por ele — Não da forma que está pensando — completa, e de alguma forma consigo enxergar verdade na sua confissão, Adam parece cansado, e não é fisicamente.
Mas mesmo assim, dou de ombros — Não pensei em nada — e minto — E você não precisa me explicar.
Adam solta uma risada irônica — Foi você quem quis saber, Giulia — desviei o olhar apenas para me massacrar mentalmente — Sabe, você podia decidir — ele avança um, dois passos — Diz que não quer explicação alguma, mas suas atitudes dizem o contrário.
— Isso é o que você quer enxergar, Adam — minto, mais uma vez, pois tenho total noção das minhas atitudes em demonstrar, mesmo que sem querer, o que ele causa em mim.
— Não — murmurou, e mais dois passos foram dados em minha direção me obrigando a erguer a cabeça para encará-lo — Sabemos o que é isso, linda — sua mão tocou meu braço e vagarosamente deslizou em minha pele, minha atenção já não estava em suas palavras — Me quer só pra você, não é?!
Eu então percebi que era justamente essa a sua intenção, me distrair com seu toque para que eu não revidasse o seu comentário pretensioso. Soltei uma gargalhada, a mais irônica que consegui — A sua presunção chega ser engraçado — comento — E se me lembro bem, não foi eu que fui até o seu apartamento somente para perguntar se estava rolando alguma coisa com outra pessoa — recordei a sua visita de dias atrás, e nesse momento consegui atingi-lo da mesma forma que estava fazendo comigo.
Mas Adam era bom, e simplesmente deu de ombros — Vamos lá linda, assume — quando eu estava prestes a retrucar seus braços agarraram minha cintura me puxando para si colando nossos corpos — Assume que está morrendo de ciúmes — seus lábios úmidos chocaram-se contra o meu pescoço, Adam estava jogando sujo, e eu mentiria se falasse que não estava sendo afetada por seu jogo.
— Pare com isso — tento soar convicta, mas minhas palavras não passam de um miado manhoso.
— É só falar — ele joga, enquanto seus beijos percorriam toda a extensão do meu pescoço enviando um choque elétrico para o meu corpo.
— Está errado — falei, mesmo sabendo que havia uma pontinha de mentira, céus, Adam é terrivelmente persuasivo — Adam — grunhi, agarrando seus bíceps para me manter de pé, o efeito enlouquecedor que ele causa já começara a me deixar de pernas fracas.
— Estou aqui — a sua voz soprosa em meu ouvido é o suficiente para me fazer ceder.
— Tudo bem... — murmuro, e no mesmo instante sua língua passeou em direção ao decote da minha blusa — Você venceu..., talvez seja — foi um sussurro, mas que ele ouve perfeitamente bem, pois no segundo seguinte ele estava me encarando com um sorriso malicioso de quem acabou de conseguir o que queria.
— Não foi tão difícil — comentou com divertimento, mas não demorou a unir sua boca na minha me dando exatamente o que eu queria: senti-lo.
Eu estava prestes a puxar seus fios e trazê-lo até mim, para intensificar nosso beijo, nosso toque, mas Adam me reprimiu antes mesmo disso, seu semblante estava carregado de satisfação quando perguntou — Você não estava atrasada?
— Eu odeio você
♥︎
Felizmente, eu consegui chegar a tempo de assistir a aula do Sr. Henriques, embora não seja o meu professor preferido, não posso negar que ele sabe conduzir uma aula interessante, e o principal, conseguiu ocupar minha mente não dando espaço para pensar em Adam e o nosso breve momento mais cedo. Ele me trouxe rapidamente, logo após o seu jogo de sedução ter feito com que eu esquecesse tudo ao meu redor, e me atrasasse ainda mais. Também havíamos combinado que ele viria me buscar, e embora eu ainda tente negar enquanto observo os minutos passarem, a ansiedade me atinge só em saber que irei vê-lo.
No entanto, antes de o tempo do professor Henriques acabar e um amontoado de alunos praticamente correndo para fora da sala, o homem de cabelos grisalhos e barba por fazer, avisa que está com nossos trabalhos em mãos e irá nos entregar. Imediatamente fico tensa, e relembro as 30 linhas que me torturaram severamente enquanto estavam sendo escritas abrindo uma ferida, ao mesmo instante em que eu datilografava os motivos, a história que me fez escolher ir pelo caminho da psicologia.
Todos já tinha recebido quando me dei conta de que estava imersa em meus pensamentos, engoli em seco e fui até a mesa do professor — Posso imaginar que não foi uma tarefa fácil escrever isso — ele comenta, ao mesmo tempo que estende a folha rabiscada em minha direção. Sua atenção se fixa em mim, e após soltar um suspiro embargado, começa a dizer — Sabe, Srta. Carson... A vida nos tira muito, é um fato, mas temos que aprender a viver com o que temos e principalmente com quem somos — absorvi suas palavras com cautela, sentindo um aperto no coração digerindo-as com atenção — Por isso serei duramente sincero com você. Ok?
— Sim — minha voz sai em um fio de ansiedade.
— Como um psiquiatra que tem mais de vinte anos de carreira, posso dizer com convicção que não temos o poder de salvar ninguém, então não espere por isso. Essa virtude nunca esteve em nossas mãos, e sim na mente do outro, no que acreditam. O que podemos fazer é o nosso trabalho, Giulia, mostrar outro caminho, e mesmo conhecendo como ninguém você irá perder pessoas, pacientes, mas isso não será sua culpa. Da mesma maneira que não foi a de uma garotinha de oito anos, a qual você descreveu no trabalho que pedi.
Eu sinto fortemente o golpe de suas palavras.
Reúno todas as minhas forças para não chorar enquanto o ouço, sei que meus olhos estão marejados e prestes a ir contra minha auto defesa. É como se cada frase fosse uma punhalada, e doía ainda mais saber que tudo que dissera era a mais pura verdade — Obrigada pelo conselho.
Ele acenou, e após um segundo disse — Parabéns pela escrita, e pela coragem.
Desço as escadas no automático, degrau por degrau enquanto em minha mente repasso tudo que foi dito pelo professor, as frases dolorosamente verdadeiras enraizando-se em mim. Mas eu não era corajosa, não como ele disse. Na verdade, estava longe de ser, prova disso é o fato de ter escrito diversas outras histórias para evitar trazer a verdadeira à tona. Mesmo doze anos depois não consigo falar sobre aquela noite, sobre as tantas perguntas que não consigo encontrar respostas. O que me conforta é saber que algumas coisas são assim, inconclusivas.
Chego no segundo andar, e para o meu alívio consigo conter o nó na garganta. Estou indo em direção a saída quando a voz de Marcos me alcança — Ei pequena.
— Marcos, oi — cumprimento casualmente — Tudo bem? — pergunto, enquanto nos abraçávamos, e ele confirma que sim.
— Preciso de um favor — incentivo que continue erguendo as sobrancelhas — Sr. Rodrigues não está sendo amigável comigo, quero sua ajuda nisso — essa é sua maneira de falar que não está entendendo o assunto.
— Claro que sim, marcamos depois? — concordo, perguntando em seguida.
— Falamos por mensagem — sua piscadela diária é lançada para mim antes de girar sobre os calcanhares e sair.
Encontro Adam no instante em que me coloco fora do campus, como tínhamos combinado ele estava me esperando e conversava com um cara desconhecido, enquanto alheio a minha presença. Eu ainda tentava mascarar a triste nostalgia em meu rosto, sentia meus olhos implorando para soltar as lágrimas, e usei os breves minutos em que vagarosamente me aproximo de Adam para focar no efeito em que ele sempre causara em mim e tentar esquecer a minha curta e torturante conversa com Sr. Henriques.
Felizmente, Adam possui esse poder e quando o cara com quem conversava se afasta, consigo visualizá-lo por completo e sob o seu olhar sinto aquela faísca de sensações mágicas me consumir — Oi — cumprimento, um tanto perdida sem saber como agir diante de sua figura desconcertante.
Contudo, Adam resolve essa questão ao apoiar as mãos em minha cintura e me beijar sutilmente — Com fome? — ele pergunta, mas eu ainda me recuperava do que sua simples atitude me causou e apenas acenei afirmando. Mas Adam fixou os olhos em mim, e um vinco entre suas sobrancelhas surge — Você estava... chorando? — Sou pega completamente de surpresa, e imediatamente desvio o olhar e me afasto.
— O que?... não, não estava — cometo o erro de me perder em minhas próprias palavras, solto um suspiro e reforço — Tá tudo bem — Adam ainda me analisa, mas após alguns segundos assente e abre a porta do carro para mim. Agradeço mentalmente por isso.
Adam me leva até um restaurante simples, mas aconchegante e que entrega um cheiro delicioso de dar água na boca, assim que colocamos os pés no estabelecimento rústico e um garçom nos guiou até uma mesa vazia entregando o cardápio em seguida. Sentamos um de frente para o outro, eu gosto disso, consigo ver seus olhos e tento não me sentir intimidada pelo seu olhar, enquanto procuro desvendá-lo.
Folheio o cardápio me deparando com comidas caseiras que só me fazem lembrar da minha mãe, e até poderia passar um pouco mais de tempo procurando o que mais me agrada, mas estou com fome e tampouco consigo decidir, por essa razão chamo a atenção de Adam, e questiono — Então o que você indica para alguém indecisa e cheia de fome?
Ele solta uma risada rápida, e deixa o cardápio na mesa ao acenar para o garçom — Posso pedir? — gesticulo afirmando, e assim que o garçom se aproxima ele pede nossos pratos. Adam volta sua atenção para mim, e sem hesitar, pede — Temos tempo, que tal me contar mais sobre você?!
Surpreendendo-me em primeiro momento, e fixo meu olhar no seu que não entrega nada além de curiosidade, de repente, me sinto ansiosa e um pouco nervosa com o pensamento que surge em minha mente, e sem que eu perceba os solto em voz alta — Geralmente a entrevista acontece em um primeiro encontro — no instante seguinte, gostaria de possuir o poder de voltar no tempo e não deixar que isso escape da minha boca.
Adam me lança um sorriso torto, cheio de expectativas, ele apoia os cotovelos na mesa e uni as mãos encarando-me — Você quer que seja um? — o clima muda drasticamente, e sequer consigo formar uma resposta, apenas encaro seu rosto e sorri sutilmente. Ele fez de propósito, porque noto o sorriso presunçoso em seu rosto ao dizer — Não se preocupe, Giulia, por enquanto é só uma conversa casual entre duas pessoas — duas pessoas que se beijam, uma voz em minha mente sussurra, e sinto uma pontada de decepção, mas nada que me deixe desconfortável pois uma parte em meu cérebro repete vezes demais o seu ''por enquanto''.
— Não tem muito o que falar, mas seria melhor se fizesse uma pergunta — indago, e peço.
Adam sequer hesita — Qual a sua idade?
Me sinto aliviada pela pergunta leve e comum — 19 anos..., e você?
— Tenho 23.
Entrelaço os dedos e apoio os cotovelos na mesa de madeira ficando mais próxima de Adam, concentrando minha atenção em analisar seus traços e dessa vez sou eu quem faz a pergunta — Você realmente lê romances? Ou naquela noite citou uma frase qualquer sobre Romeu e Julieta?
— Porque mentiria? — incompreensão atravessa seu rosto, e ele faz a pergunta me fitando com os olhos semicerrados.
Dou de ombros, rindo mansamente — Não sei..., talvez você quisesse conquistar alguma garota indefesa e apaixonada por clássicos da literatura.
Adam brinca com o anel prateado em seu anelar enquanto parece pensar no que eu disse, sua boca abre e ele solta — Só tinha você na livraria — ligeiramente tenho a sensação de estar com o rosto totalmente vermelho, e mais uma vez me condeno pelo que sem perceber deixei escapar — E pode até ser apaixonada por clássicos, mas você não parece ser uma garota indefesa, Giulia.
Engulo em seco, um músculo na minha mandíbula contrai-se, e tento concertar o que disse — Eu não quis dizer...
— Eu sei — Adam interrompe, o sorriso torto pendendo em seus lábios e o vestígio de diversão em seu olhar — Mas sendo sincero só li a obra de Shakespeare porque o professor de literatura, no ensino médio, mandou.
— Está vendo? A minha pergunta tem fundamento — em minha mente, sim, completamente. A prática de leitura não passa de uma obrigação para algumas pessoas, principalmente no período de escola e onde os professores nos obrigam a ler livros tão pouco estimulantes.
Adam enruga o nariz — É, tem sim..., mas isso não quer dizer nada sobre minha relação com os livros, se fosse até o meu quarto saberia o quanto estão presentes na minha vida — ele solta um riso entre os dentes, a insinuação escorrendo por sua boca e me atingindo severamente.
A minha mente faz o seu trabalho perfeito em me deixar tensa com as imagens que projeta, as provocações que sopra em minha memória e faz com que minha voz soe falha ao dizer — É, você tem razão — agradeço aos céus por nesse instante o nosso almoço chegar, e o cheiro delicioso de estrogonofe invade minhas narinas me fazendo salivar, eu e Adam não demoramos para levar uma generosa garfada à boca e o sabor é tão bom quanto o aroma.
Um breve silêncio depois, me encontrando completamente desprevenida Adam procura saber — Porque escolheu Psicologia?
Eu paro de mastigar no mesmo instante, e de repente a sensação de sufocamento me invade e tenho certeza que Adam percebe a mudança em mim, a ansiedade e o medo atravessando meu rosto, esse assunto já foi colocado à tona vezes demais por hoje e não quero, não quero chorar ao lembrar de tudo, mas as palavras do professor, o que eu tive que escrever, o vazio que vivi naqueles anos, mas....
— Giulia, está tudo bem? — Sinto o toque macio em minha mão — Você tá pálida..., respira.
Fecho os olhos e respiro profundamente me obrigando a voltar, a sair daquela parte da minha memória que somente causa dor e ao abrir os olhos vejo Adam me fitando com espanto, a mão ainda sobre a minha acariciando-me lentamente, mas eu a puxo e abandono seu toque — Desculpa..., de repente eu me senti um pouco tonta — a mentira deve estar nítida em meu rosto, mas não me importo — Acho que a fome e o calor de hoje não estão ajudando.
— Vou pegar água pra você.
Quando ele sai, me permito cair. Afundo o rosto entre as mãos e percebo que estão trêmulas, somente a ideia de me expor dessa forma e conversar com alguém sobre tudo faz com que me sinta assim, sufocada. Respiro lentamente procurando me concentrar apenas nisso, e aos poucos me sinto melhor e engulo a angústia e as lágrimas que desde mais cedo querem escapar.
Adam chega até mim e coloca em minha frente um copo com água que, em segundos engulo — Desculpa se...
— Eu acho uma profissão muito bonita, incrível, e desde que a conheci quis me tornar psicóloga — antes que ele possa concluir, me apresso em respondê-lo.
Adam engole as palavras que estavam prestes a deixar sua boca, e assente sem questionar — Você tem razão, é uma profissão única.
Passamos a comer em silêncio, não queria deixar o clima tenso entre nós, e isso nunca ocorreu. Quando me perguntavam o porquê do curso eu somente dizia o óbvio, mas quando Adam perguntou senti como se soubesse que há algo por trás da máscara, e a vulnerabilidade me assustou. Também sei que ter conversado e ouvido as palavras duras do professor despertaram emoções que estavam adormecidas, e eu precisei de tempo para devolvê-las para o lugarzinho da saudade que sentia.
Mas não queria que terminássemos nosso almoço assim, de uma maneira estranha, porque o desejo de conhecer Adam ainda me consumia e por isso trouxe o questionário à tona novamente — Você não é daqui? — pergunto, recordando-me que Adam mora sozinho — E a sua família?
Sua expressão adquire algo diferente após me ouvir, algo que não passou despercebido por mim, e Adam mastigou lentamente, como se quisesse prolongar a sua ausência de resposta, mas ele tomou um gole do suco e pigarreou — Sempre morei em São Paulo, e quanto a minha família... eu morava com o meu pai até o ano passado, mas quis ter o meu lugar.
— Não se sente sozinho? — quisera não ser a única a sentir falta dos meus pais, embora tivesse Anne comigo — Sempre tive meus pais e agora é estranho.
— Não é muito diferente do que era — percebo o exato instante em que uma veia salta do seu pescoço, a expressão endurecida e um suspiro para voltar a me encarar tentando mostrar divertimento — Sou dono do meu nariz, dos meus horários, do quero fazer e do que não quero... eu chamo isso de liberdade, Giulia.
— Seus pais não estão juntos? — pergunto, após me dar conta de que Adam somente mencionou o pai dele, foi inevitável não lembrar dos meus pais e quase comentei com ele, mas a expressão sombria de Adam me faz engolir as palavras, de repente me senti insensível, e se sua mãe estivesse morta — A sua mãe...
Ele me cortou, com a voz carregada de cólera — Não, eles não estão mais juntos.
— Desculpa se eu...
e mais uma vez sou interrompida por sua voz rouca — Você já terminou? — Adam só perguntou por educação, pois ele já estava se levantando e somente acenei confirmando que sim, e entendi que aquele assunto era delicado para ele e não insisti.
No carro, não conversamos muito e quando ousamos falar somente era sobre o quanto a comida estava deliciosa, e que provavelmente eu iria voltar lá e experimentar outras coisas. O silêncio não incomodava, Adam havia colocado uma música baixinho, mas a sensação tensa entre nós dois sim, e me faz levantar a questão mais uma vez, ao chegarmos ao prédio que eu moro e ele estacionar o carro — Eu não quis ser indelicada perguntando sobre sua vida pessoal, se isso deixa você chateado de alguma forma peço desculpa.
Adam franziu o cenho, engoliu em seco e virando-se para mim, disse — Não precisa se desculpar...., eu também não quis ser grosso com você — sua mão alcançou o som do carro para desligar, e com a atenção em um ponto qualquer ele murmura — Só não somos presentes na vida um do outro, não tem o que falar.
— Sinto muito.
Adam da de ombros, e volta a me olhar — Sua família não deve ser tão desconcertada como a minha, você não entenderia — incrédula minha expressão amena murcha, o seu comentário estúpido desencadeia algo dentro de mim, e enquanto ele solta uma riso baixo e irônico.
— Está sendo grosso agora — um incômodo percorre meu corpo, as lembranças da minha família desconcertada invadindo minha mente — Você não sabe de nada, Adam — a chateação se faz presente em meu tom de voz, e ele rapidamente se recompõe — Minha vida, e a minha família está longe de ser perfeita.
— Ei, calma, eu não queria...
Atrapalho sua tentativa de se desculpar — Ser grosso? Julgar sem ter conhecimento? — Relembro as suas próprias palavras de um tempo atrás, e deixo que a cólera atravesse minhas palavras — Meus pais também não estão mais juntos, o que aconteceu destruiu nossa família, então pode apostar que eu entendo perfeitamente o que é ter problemas em casa.
— Giulia espera... — ele pede, mas como havíamos chegado eu não dou chance para que fale e saiu do carro. Em passos largos entro e subo as escadas, e quando bato a porta do apartamento atrás de mim, as vagas lembranças de uma garotinha correndo para os braços do irmão, para o colo do pai e o abraço em quarteto envolvendo minha mãe, sonda minha mente e me tortura.
Eu lembro da sensação, de como a dor que era desconhecida por mim consumiu meu pequeno coração, de quando desacreditei em poderes mágicos, porque o meu super-herói estava tão cansado que desistiu de lutar. Foi exatamente dessa forma que o meu pai, tão perdido, tentou me explicar o que havia acontecido com o meu irmão, e que era esse o motivo pelo qual minha mãe gritava desesperadamente chamando por Gustavo, mas ele... ele não respirava, e em seu quarto só havia os destroços do quanto estava ferido.
Minha mãe viu tudo, ela o encontrou e soube que tinha perdido o filho mais velho. Daquele momento em diante ela não foi mais a mesma mulher, a mesma mãe sorridente... e viva. Eu lembro de tudo, e sinto como se pudesse ouvir seus berros em meu coração quebrado.
— GUSTAVO — acordo assustada, meu coração tão acelerado como nunca havia sentido, sento na cama ainda envolta da manta lilás com bolinhas roxas, a minha preferida, e esfrego os olhos pesados ainda com sono — Gustavo... não... não, meu filho — a voz de mamãe ecoa pelo corredor, me assustando ainda mais , porque ela está gritando com o Gus?
De repente, era a voz do papai, tão diferente e falha — Cris... você... precisa sair — o grito que mamãe deu me fez apertar as mãos nos ouvidos, aquilo doeu, ela estava chorando muito e sequer parecia dar ouvidos ao papai — Meu amor...., a Giulia... — eu senti algo tão doloroso no seu tom de voz, o papai tinha sempre um tom divertido e aquilo era diferente, mas eu estava aqui e não tinha bicho papão mais, o Gustavo me protegia sempre. Ele é o meu super-herói.
Eu levantei da cama, o chão estava frio demais e calcei minhas pantufas cor de rosa — Por que, meu Deus... por que, Gustavo? — medo ultrapassou meu rosto, o espanto por ouvir a voz da mamãe tão triste e desesperada me fez correr até a porta do meu quarto e abri para ver o que estava acontecendo — Alberto... ele fez isso... fez isso com ele.
A primeira coisa que enxerguei foram policiais entrando em nossa casa e subindo as escadas rapidamente, logo depois eram médios, não sei, e quando olhei para a ponta da escada ao lado do quarto dos meus pais, eles estavam ali — Gustavo, Gustavo, Gustavo... — era tudo que mamãe gritava, berrava, chorando tanto que seu rosto estava completamente molhado enquanto no colo do papai agarra-se em sua camisa, e ele a abraça com força, as que parece restar, porque os seus olhos também derramam lágrimas pesadas.
Minha voz sai tão baixinha, um fio de medo alcançando os ouvidos deles — Mamãe, papai — eles se arrastaram até mim, dois corpos gigantes me cobrindo e impedindo que eu visse. Cobrindo meus olhos, me escondendo da realidade e impedindo que eu enxergasse o que o meu super-heroí havia feito a si mesmo.
Braços fortes me envolvem, sinto tudo tão rápido que não consigo respirar. Aquela noite nunca saiu da minha mente, eu queria gritar, mas estava sufocada com o nó na garganta, com as lágrimas escorrendo enquanto me contorcia nos braços de alguém — Giulia...
Eu superei, Gustavo. Eu entendi que a vida derruba até os mais fortes, e você era, sempre foi o mais incrível de todos. Eu entendi, você não era nosso, não precisava disso, não precisava sofrer e...
— Giulia, olha para mim — o toque quente em meu rosto, secando minhas lágrimas e aquela voz — Sou eu..., Adam — só então enxergo seu rosto com clareza, ele me olha tão espantado, o terror está em seu rosto enquanto me segura em seus braços e tenta me acalmar — Desculpa, por favor, me desculpa.
Ele não sabe, não tem como saber. Adam não tem culpa. Eu também fui invasiva, eu também não sei nada sobre ele.
Respiro com dificuldade, aquela lembrança tão real em minha memória. Tento controlar a respiração, e afundo o rosto no peito de Adam, estou trêmula e ele acaricia meus cabelos enquanto pede que eu respire devagar. Aos poucos me sinto calma, mas nada além disso, antônima a tudo ao meu redor, exceto pelo carinho das mãos quentes que ainda me envolve — Adam?
— Estou aqui — ele sussurra, o hálito soprando em minha testa — Você está bem? Se sente melhor?
Balanço a cabeça em um gesto para afirmar que sim, e digo para mim mesma que tudo bem se deixar ruir. Hoje foi um dia para relembrar o passado doloroso, mesmo que não quisesse, mesmo que odiasse me sentir vulnerável enquanto tenho Adam com os braços me rodeando e sendo a única coisa para me agarrar — Obrigada... por ter subido atrás de mim.
— Eu errei, Giulia, era o mínimo — por algum motivo ele me aperta mais em seus braços — Não quis desencadear essa reação em você... me desculpa.
— Tudo bem, eu sei — sinto coragem para mudar o ângulo, e ergue o rosto em sua direção. Os olhos avelãs dele estão vermelhos ao redor, a expressão entregando o quanto sente muito, e embora ele tenha agido com grosseria, sei que não era a sua intenção — Não foi só por aquilo... o dia na universidade também não foi... um dos melhores.
— O que posso fazer por você? — a preocupação consome seu semblante, e por um mísero segundo me permiti sorrir um pouco — É só falar, eu farei.
— Não quero falar sobre isso — eu digo, me aninhando mais uma vez em seus braços. Não queria sequer pensar no que aquilo significava, se Adam estava me achando afoita demais, não tínhamos nada um com o outro, mas sou incapaz de negar a paz que senti em seus braços e por essa razão, peço — Você pode ficar só um pouco? E me abraçar forte? — Adam fez exatamente o que pedi.
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