Conto 9 - Além da Guerra
Autoras: Lisa Costa e Georgeane Braga
Sinopse:
Até onde você iria para salvar um amigo?
Até onde essa amizade valeria à pena?
Kevin Miller sempre foi leal as suas amizades, e após a chegada de um novo aluno na escola onde estudava, fez com que ele provasse ainda mais isso.
A lealdade daquele garoto tornou-se o compromisso do homem, que mesmo estando com sua vida em risco, provou que amizade verdadeira vai além das conseqüências.
Kevin faria de tudo para salvar seu amigo, ele faria com que seu juramento nunca fosse quebrado. Kevin jurou protegê-lo por toda a sua existência, e é isso que ele irá fazer.
Conheça a história de dois amigos que a guerra tentou separar.
"A amizade é um amor que nunca morre"
Música Tema: Era Um Garoto - Engenheiros do Hawai
Classificação: +13
***
Desde o seu nascimento Kevin Miller chamava atenção de todos a sua volta. Talvez pelo fato de ter nascido dentro do cinema, ou talvez por seu próprio pai tenha realizado o parto. Ou será pelos incríveis olhos azuis que ficavam ainda mais intenso com sua cabeleira escura?
Mas o que realmente interessa é que desde sempre Kevin é um garoto iluminado. Sorte daqueles que o tem por perto. Sorte tê-lo como amigo, já que sua lealdade é algo surreal.
"Você é meu anjo sem asas, filho", dizia sua mãe quando gentilmente seu filho a beijava.
Sua infância sempre foi regada de alegria, carinho e amizades sinceras. Dono de um carisma ímpar, Kevin colecionava amigos por onde passava, esbanjava alegria e mantinha um senso de justiça como poucos conseguem ter.
E foi assim que ele conheceu seu melhor amigo: Andrew Donato.
***
- Me solta! - gritava o aluno novo tentando inutilmente se livrar do aperto severo em seu braço.
- Não vou te soltar enquanto você não me entregar seu lanche - o valentão da escola segurava o pobre menino pela gola da camisa com uma das mãos, enquanto a outra se mantinha firme no braço do garoto.
- Solta ele Ed! - Kevin se aproximou em socorro do menino indefeso.
- Qual é Kevin, você sabe que novatos tem que entregar os lanches - os olhos do pequeno garoto refém estavam repletos de lágrimas, o que despertou em Kevin um instinto protetor que ele não soube definir de onde vinha, mas que era absurdamente forte.
- Eu já disse pra você soltá-lo! - as mãos de Kevin fecharam-se em punho, e ele adotou uma postura de defesa.
- O que está acontecendo aqui? - o treinador Robert apareceu, dissipando o grupinho que já estava aglomerado.
- Ed quer o lanche do novato - disse o menino ao treinador.
- Isso é verdade Ed?
- Eu só estava brincando com ele treinador - o valentão amoleceu perto do homem, soltando assim o pequeno garoto de sardas no rosto e cabelos cor de fogo.
- Todo mundo circulando - Robert ordenou para os garotos ao redor de Kevin e Andrew.
As crianças não esperaram ele mandar duas vezes. Logo não se via nenhuma criança naquela parte do corredor. O treinador Robert mesmo carismático era o que mais dava medo nos garotos.
- Está tudo bem com você? - preocupado o treinador ajeitou a roupa do pequeno.
- Sim - foi a única coisa que ele disse. Nitidamente envergonhado, o pequeno garoto permanecia de cabeça baixa.
- Ótimo! - o homem sorriu, saindo logo em seguida, deixando os dois meninos sozinhos.
- Eu sou Kevin Miller - o garoto de olhos brilhantes estendeu a mão sorrindo.
- Eu me chamo Andrew - ele apertou fortemente a mão do seu salvador - Andrew Donatto.
- É um prazer te conhecer Andrew Donatto! - sorriu o pequeno grande herói. Seu sorriso foi o mais sincero que o pequeno garoto já recebeu de um amigo, e isso Andrew jamais esqueceria.
- O prazer é meu Kevin Miller!
E dessa forma nasceu a mais bela amizade que alguém já viu. Uma amizade que nem a morte conseguiu destruir.
### *** ###
- Se você gosta dela tem que chamá-la para sair - disse Kevin enquanto se jogava na cama do melhor amigo.
- E se ela me disser um "não" na frente de todo mundo? - Andrew estava louco para chamar a aluna nova para ir ao cinema, mas a insegurança era algo que ele não sabia lidar.
- Meu amigo, nada demais vai acontecer - Kevin abraça o amigo pelo pescoço - você ainda terá uma vantagem.
- E qual seria?
- Você já vai com a certeza de um não - Kevin esfrega a cabeça do amigo, enquanto o segura pelo pescoço - o que ela disser será lucro para você.
- Você fala assim porque tem várias garotas dando mole pra você - Andrew começa a andar de um lado para o outro no quarto - se Katharine me disser um não, eu acho que terei que mudar de escola.
- Como sabe disso? - Kevin senta-se na beirada da cama, olhando sério para o amigo - e além do mais, se ela te disseres um "não", eu estarei aqui.
- Mas você não é uma garota, seu otário! - os dois amigos riram.
- Mas sou seu amigo! - Kevin fica sério, e olha para o amigo com um semblante indecifrável.
- O que foi Kevin? Você ficou estranho - Andrew raramente via o amigo sério, e vê-lo daquele jeito o assustou um pouco.
- Sabe Andrew, eu sempre vou proteger você - os olhos azuis estavam mais intensos do que nunca - na vida, não podemos escolher nossos irmãos de sangue, mas podemos escolher os de alma.
- Papo mais estranho - Andrew olhou sério para o amigo.
- Deixa de ser idiota - Kevin levantou-se e bagunçou novamente o cabelo do amigo - estou tentando dizer que você é eu irmão de alma seu burro.
- Achei que você estava tentando me dizer que era gay.
Os dois amigos caíram na gargalhada. A amizade dos dois era única, e encantava quem os via juntos.
Naquela mesma semana Kevin incentivou Andrew a chamar Katharine para sair, e para surpresa do ruivinho ela aceitou.
Andrew encontrou o amor de sua vida, a mulher a qual ele levaria para o altar. E Kevin estava feliz com isso.
### *** ###
- Você e essa sua timidez ainda vai te dar muita dor de cabeça - Kevin diz ao amigo enquanto empurram as bicicletas na volta da escola.
- Eu não sei ser igual a você, Kevin - o ruivinho era tímido ao extremo, e o amigo vivia pegando no seu pé por causa disso.
- Olha - Kevin parou a bicicleta e fez com que Andrew olhasse para ele - a parte mais difícil você fez, e fez com sucesso.
- acho que levá-la ao cinema não foi uma boa idéia - disse o menino tristonho, pois Katharine encontrou algumas amigas no cinema e deixou o ruivinho de lado.
- Você vai convidá-la para ir ao baile - Kevin volta a andar, deixando o amigo a alguns passos atrás.
- Lá vem você com as suas idéias.
Kevin para incentivar o amigo, convidou a melhor amiga de Katharine, uma garota asiática que fazia intercambio para acompanhá-lo no baile. A garota ficou encantada, já que Kevin era um dos garotos mais cobiçados pela mulherada. O coração de Kevin ainda não tinha dona, mas ele adorou a companhia da japinha.
E assim, ele pode presenciar o amor do amigo ser correspondido, e com isso ele ganhou uma nova amiga irmã.
### *** ###
Era final da tarde de uma sexta-feira qualquer. Os três amigos estavam animados escolhendo as faculdades nas quais prestariam exames. Kevin estava radiante com a possibilidade de cursar medicina, enquanto Andrew queria mesmo era ser um engenheiro.
- Alguém já te disse que você tem um olho maior que o outro - disse Katharine a Kevin.
- Não - ele foi olhar no espelho - e não tem nada maior que o outro aqui,
- Claro que tem - continua Katharine - o esquerdo é ligeiramente maior que o direito.
- Amor, você tem cada idéia - disse Andrew.
- Kat, realmente eu acho que a convivência com esse ai está te deixando maluquinha - Kevin apontou o dedo, indicando o amigo.
Os três caíram na gargalhada.
Era sempre uma farra quando estavam juntos. Mas, a alegria de todos estavam com os dias contados para acabar.
### *** ###
- Gente! - Katharine subia as escadas da casa de Andrew correndo, quase tropeçando ela entra no quarto do namorado. Ela havia sido aprovada na mesma faculdade que eles, e estava radiante por causa disso - o que aconteceu?
Todo o brilho e entusiasmo que havia em volta da garota foi dissipado ao ver o olhar vago do amigo, e as bochechas vermelhas do namorado, indicando que ele havia chorado.
- O que aconteceu? - rapidamente a garota segurou o rosto do amado com as duas mãos. Andrew entregou a carta que estava em cima da mesa, fazendo com que os olhos da garota brilhasse pelas lágrimas.
- Fomos convocados - um soluço escapou dos lábios da garota, e logo os braços de Andrew a envolvia em um abraço caloroso.
Kevin não demorou a se juntar aos amigos, afinal eles eram um só, principalmente em um momento como esse.
###***###
A noite já havia dado as caras quando Kevin saiu pela porta da frente da casa de Andrew. O vento úmido balançava os seus cabelos ligeiramente compridos e esfriava levemente seu rosto. O passos lentos denunciavam que ele estava evitando a volta para casa. Sua mãe desabaria em saber que seu único filho estava indo para a guerra.
A casa de Kevin ficava a duas quadras da casa de Andrew, e ele levou o triplo do tempo para alcançar a varanda de sua casa. Os risos vindo do interior da mesma era como uma facada dentro do seu coração, pois ele sabia que logo os risos se transformariam em lágrimas.
O Vietnã estava levando muitos embora. Várias mães estavam ficando órfãs de seus filhos. Vários filhos estavam órfãos de seus pais.
Kevin respirou fundo e entrou.
- Oi - disse beijando o rosto sorridente de sua mãe. Mirtes era uma pessoa tão alegre quanto o filho.
- O que foi meu filho? Que carinha tristonha é essa? - dona Mirtes acariciou o rosto do filho com todo zelo e carinho.
- Preciso contar uma coisa para vocês - Kevin sentou-se ao lado do pai, e segurou a carta entre uma das mãos, e a outra alcançou a mão de seu pai - fui convocado para guerra!
Ele não precisou explicar nada, as lágrimas em seus olhos rolaram mostrando todo seu medo.
- Meu Deus! - Mirtes levou a mão à boca, soltando um grito sofrido de dor - meu filho não John!
- Calma querida! - o pai de Kevin abraçou a mulher enquanto segurava ainda a mão do seu único filho.
Na casa de Andrew o clima não estava diferente. Mesmo tendo mais dois irmãos, os pais de Andrew não queria perder o filho, pois eles sabiam que no momento em que ele fosse para o Vietnã, poderia nunca mais voltar.
- Eu não quero ir papai - Andrew estava há horas abraçado ao pai no sofá da sala. Kat já havia ido embora, deixando que a família tivesse o momento deles a sós.
- Não posso fazer nada, meu filho - o pai de Andrew não continha as lagrimas, ela já sentia como se o filho não voltaria mais.
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Os dias seguintes foram de desanimo. Nada conseguia animar os dois, era como se eles já estivessem condenados a morte.
- Como será que vai ser lá, Kevin? - perguntou Andrew enquanto os dois estavam deitados no chão do quarto de Kevin olhando para o teto.
- Não faço a menor idéia - respondeu o amigo.
- Vou sentir falta de casa.
- Eu também irei sentir - Kevin acariciava os pelos longos de seu cachorro Thor, um pastor alemão que foi abandonado em sua porta ainda filhote.
- Eu tenho medo de morrer - confessou baixinho o ruivinho.
- Hei! - Kevin sentou-se e encarou o amigo - que papo é esse? Ninguém vai morrer Andrew.
- Como você pode ter certeza disso? - ele suspirou colocando o braço sobre o rosto - nós estamos indo para guerra, não para um acampamento de verão.
- Eu sei disso - ele fez uma pausa como se ponderasse o que diria a seguir - eu não vou deixar nada de ruim acontecer a você! Eu prometo!
- Você não pode me prometer isso. Você não pode dizer que tudo vai ficar bem meu amigo - o ruivinho tirou a mão do rosto e sorriu para o amigo.
- Eu juro que não vou deixar você morrer! - o abraço apertado dos dois selava um juramento que seria cumprido a todo custo.
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O tempo parecia não está a favor dos dois. Ele corria como a paisagem da janela de um trem.
As festas já não tinham mais graça. Os jogos de futebol ficaram para trás. Nada conseguia animar os dois. Dentre o grupo de amigos, somente Kevin e Andrew foram convocados, ninguém mais havia recebido a carta maldita, como dizia Andrew.
- Estamos penando em fazer uma grande festa de despedida - disse Kat animada - o que vocês acham?
- Por mim tudo bem - disse Kevin sorrindo.
- Eu não quero festa! - o humor de Andrew estava cada vez pior - não quero ninguém comemorando a minha infelicidade.
Andrew saiu, deixando Kat e Kevin sozinhos.
- Não liga pra ele, Kat - o amigo consolou a garota que entristeceu-se com a atitude do namorado - ele apenas está com medo. Vamos fazer essa festa, e tenho certeza que ele vai adorar no final.
- Sabe Kevin, as vezes eu acho que Andrew desistiu de acreditar que ele vai voltar para casa - a garota tristonha encostou a cabeça no ombro do amigo, enquanto deixava as lágrimas escaparem de seu rosto.
- Ele está com medo!
- Mas você também está - ele enxugou uma lágrima solitária que escorria em seu rosto e encarou o amigo - e nem por isso você faz o que ele faz.
- Mem todo mundo lida com o medo da mesma forma - ele colocou uma mecha do cabelo de Kat atrás da orelha - eu estou morrendo de medo Kat. Tenho medo de morrer, de ficar mutilado, de nunca mais ver meus pais, de não poder correr com o Thor pela manhã, de ouvir sua falação sobre vestidos, e não ouvir meu amigo me acordar gritando quando estamos atrasados.
Kevin olhou para cima, como se buscasse força dos céus para continuar sua narrativa.
- Eu sempre sonhei ter uma família, ter filhos, uma casa bonita - ele sorriu, mas esse sorriso não chegava aos olhos - e agora esse sonho foi roubado de mim, porque eu não sei o que vai acontecer comigo naquele lugar. Eu nem sei se volto vivo de lá.
- Não fala assim! - a garota morena abraçou o amigo apertado - vocês dois irão voltar.
- Não sei se iremos voltar.
- Eu preciso que o Andrew volte! - choramingou a namorada do seu melhor amigo.
- Eu prometo de farei de tudo para que ele volte!
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A festa de despedida foi regada a muitas risadas e alegria. Era dessa forma que Kevin queria que todos se lembrassem dele e do amigo. Andrew estava cabisbaixo, e com um semblante preocupado e distante. O Kevin respeitou o espaço do amigo, deixando que ele e Kat tivessem o momento só deles.
Faltava apenas quatro dias para que os dois fosse para o Vietnã, e a cabeça de todos estavam a mil por hora.
Kevin aproveitou bastante a festa. Beijou, dançou, brincou e foi exatamente o que ele era. Feliz. Sim, Kevin era a pessoa mais feliz e leal que alguém poderia ter por perto.
- Onde está Kat? - perguntou Kevin lá pelas tantas da noite.
- Foi embora - Andrew olhava o nada pela janela do andar de cima da casa onde estava sendo realizada a festa.
- Vocês brigaram?
- Mais ou menos - Andrew não olhava para Kevin, pois ele sabia que seus olhos denunciariam que alguma coisa estava errada.
- Quer falar sobre isso? - o amigo perguntou.
- Acho que você não quer ouvir o que tenho para dizer.
- É tão grave assim? - Kevin estendeu a garrafa de cerveja que estava em sua mão, e o amigo pegou de bom grado, dando um enorme gole o liquido contido ali dentro.
- Eu terminei com ela - ele disse baixo.
- Porque você fez isso? Você sabe que ela te ama! -Kevin parecia não acreditar no que estava ouvindo.
- Ela está grávida!
- O que? - a voz de Kevin saiu mais alta do que ele queria - e você terminou com ela por causa disso? Não acredito que você tenha sido tão canalha assim. Eu pensei que você a amava.
- E eu a amo. Amo tanto que chega doer aqui dentro - Andrew bateu com a mão fechada no peito.
- Então porque você terminou com ela?
- Eu terminei antes dela me contar - ele enxugou as lágrimas que desciam do seu rosto - eu vou morrer Kevin, e não queria que ela ficasse me esperando.
- Você não vai morrer! - Kevin segurou o amigo pelos ombros e o sacudiu - eu prometi que não vou deixar você morrer, e eu sempre cumpro com as minhas promessas.
Agora era questão de honra que o amigo voltasse para casa.
- Você vai atrás dela agora - o intimado surpreendeu Andrew - você vai dizer a ele que é um otário, e que vai voltar para ela e para o filho de vocês.
- Eu não sei ser forte como você, e nem consigo acreditar que voltarei.
- Mesmo que você não acredite em nada que vai dizer a ela - Kevin passou a mão nos cabelos mostrando toda a sua irritação - mesmo que tudo saia apenas da boca pra fora. Você deve isso a ela. Você deve isso ao seu filho que está dentro dela.
E assim ele fez. Naquela noite ele contou a família de Katherina que ela estava grávida, e assumiu perante eles que voltaria e a levaria ao altar.
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Nuvens escuras no céu mostrava que logo a chuva cairia, assim como as lágrimas dos olhos das famílias dos dois amigos. O temido dia havia chegado, era hora de dizer adeus, era hora de ir para guerra.
- Filho - as grossa lágrimas desciam do rosto de dona Mirtes. A dor em seu peito era inigualável. Mirtes abraçou forte seu filho, o seu grande amor.
- Não chore mamãe - ele aperta sua mão tão forte, como se dessa maneira pudesse de alguma forma fundi-la a ele - eu volto.
- Toma cuidado!
- Eu vou tomar - ele beijou a testa de sua mãe, já que era bem mais alto que ela - e a senhora lembre-se de mim todos os dias. De alguma forma eu estarei aqui com a senhora.
- Você sempre estará comigo - Mirtes toca o peito - nunca sairá daqui de dentro.
- Nem a senhora, mamãe.
- Filho - a voz grave de seu pai denunciava que ele já estava chorando. John o tomou em um abraço caloroso e apertado. Palavras já não eram necessárias. Era apenas sentir.
- Eu te amo pai!
- Você é a minha vida, filho!
As lágrimas e os abraços foram incontáveis, mas ainda havia alguém que ele precisava se despedir.
- E você garotão - Thor pulou alcançando seu rosto. O animal o lambia e tentava a todo custo pular em seu colo - você tem que se comportar viu?
O cachorro o olhava como se compreendesse cada palavra que seu dono pronunciava.
- Toma conta da casa e da mamãe, ta bom?! - ele afagava o pelo do dorso do cão, que o olha atentamente para ele - logo estaremos de juntos, amigão! Seu cuida, e vê se, se comporta.
Andrew não tinha a mesma esperança que Kevin, sendo assim a despedida do ruivo foi realmente um adeus, não um até logo como do amigo.
Rapidamente depois de despedi dos seus, Andrew não espero por Kevin, subiu para o ônibus que os aguardava e sentou-se do lado oposto de onde sua família estava. Kevin por sua vez abraçou calorosamente Judith, mãe de Andrew, e seu pai Arthur.
- Vai com Deus meu filho - disse dona Judith enquanto abraçava Kevin.
Kevin deixou Katherine por último. Sua amiga estava com os olhos vermelhos e as bochechas rosadas. Ela ainda tentou sorrir ao ver o amigo se aproximar.
- Cuida de Kevin - disse aconchegando-se nos braços de seu amigo.
- Eu vou cuidar - ele beijou o topo da cabeça da amiga.
- Traz ele de volta pra gente - ela leva a mão ao ventre e sorri entre as lágrimas.
- Eu vou trazer-lo - ele colocou a mão sobre a barriga da amiga antes de continuar a falar - nem que isso custe a minha vida.
Deixando a amiga em prantos, Kevin entrou no ônibus e sentou-se ao lado do amigo.
###***###
Já havia duas horas que o ônibus seguia seu caminho. A unidade do exército ficava a três horas de onde os meninos moravam.
O silêncio pairava entre os dois, a aquilo já estava incomodando Kevin. Não demorou nem mais dói minutos para que o jovem de olhar expressivo quebrasse aquele silêncio constrangedor.
- Até quando você vai continuar sem falar comigo? - Andrew continuou em silêncio, olhando a paisagem seca que se revelava a cada quilômetro percorrido - tudo bem. Vou respeitar a sua decisão de não falar.
Kevin encostou a cabeça no assento do banco e fechou os olhos. Durante muito tempo a única coisa que se ouvia dentro daquele ônibus era o fungar de nariz, e o suspiro dos jovens que assim como Kevin e Andrew estavam sendo arrancados de suas famílias e dos seus sonhos. Muitos ali não votariam com vida para casa, e isso era assustador.
- Eu queria ver meu filho nascer - falou Andrew depois de muito tempo - estou com medo de não conseguir.
- Você vai conseguir - o amigo respondeu ainda de olhos fechados.
- Eu quero que você seja o padrinho dele - Kevin abriu os olhos e sorriu - será uma prazer enorme para mim.
- Será que será ele ou ela? - um sorriso discreto brincou nos lábios do ruivo.
- Pra mim não importa - Kevin estava feliz - meu afilhado ou afilhada será muito amado por mim.
- Você nem sabe se voltará.
- Mesmo se eu não voltar, de onde quer que eu esteja - ele olha o amigo nos olhos - eu cuidarei do seu filho, e te prometo que nada de ruim irá acontecê-lo.
- Assim como você me protegeu por todos esses anos - Andrew segurou firme o braço do amigo - obrigado por tudo Kevin!
- Não é pra isso que os amigos servem? Para proteger um ao outro?
O restante da viagem foi um pouco mais animada. Kevin não deixaria o seu amigo ficar tristonho daquele jeito.
Chegando ao hangar de embarque, Kevin sentiu que aquela seria a última vez que pisaria em um solo americano.
- O que tanto olha para trás? - perguntou Andrew parando ao lado do amigo que segurava sua mochila com força.
- Estou olhando o lugar - ele sorriu, e o amigo percebeu que não era um sorriso sincero como os outros - vamos indo ruivinho. Tem uma guerra nos esperando.
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A chegada ao continente asiático não foi como os garotos haviam pensado, ao contrario, ao invés de tiros, bombas e corpos espalhados pelo chão, encontraram uma base militar americana completamente equipada e distante da guerra. Eles passariam ali os próximos trinta dias, afinal eles não tinham treinamentos em guerrilha, e teriam que ao menos saber usar uma arma.
No instante em que colocam os pés no chão, imediatamente são levados aos seus alojamentos. Ninguém era simpático, todos que estavam ali tinham apenas um objetivo; Destruir o inimigo.
Os garotos nem ao menos tiveram tempo de conhecer sua nova casa, pois ali seria a casa dos dois por um tempo indeterminado. Logo, um dos oficiais os levaram a uma das muitas barracas militares que existia por todo lugar.
- Sente-se - disse um senhor corpulento de cabeça ligeiramente raspada.
- Pra que? - perguntou Kevin.
- Você acha que ficará com todo esse cabelo? - o homem riu - você agora pertence ao governo, e o governo manda cortar o seu cabelo.
Deste modo, Kevin viu seu tão estimado cabelo caindo por terra. A guerra estava tirando tudo dos dois amigos, e o cabelo era apenas o começo.
- O que você tanto me olha? - questiona Kevin assim que são liberados para arrumar suas coisas.
- Nada! - respondeu o amigo contendo o riso.
- Fala logo! - exigiu Kevin.
- Kat tem razão - Kevin o olhou confuso - você realmente tem um olho maior que o outro.
- Não tenho nada!
- Tem sim! E esse corte novo realçou ainda mais.
O ruivinho caiu na gargalhada, não sabendo ele que isso de agora em diante seria raridade.
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A rotina era a mesma. Semana após semana e nada mudava. Kevin e Andrew acordavam antes mesmo do sol raiar, e saiam para o campo de treinamento.
Os amigos estavam exaustos, e ainda nem haviam seguido para a zona de combate. Por uma dádiva do destino, os dois amigos ficariam no mesmo pelotão, sendo assim não precisariam se separar.
A lua já estava no alto quando os dois amigos, e os demais soldados voltaram para o alojamento. Essa rotina seguia-se dia após dia.
- Se o treinamento esta assim imagina quando chegarmos ao confronto? - resmungou Jack, um negro musculoso que parecia ter muito mais idade do que realmente tinha.
- Lá não teremos uma cama - resmungou Andrew enquanto jogava seu corpo cansado na cama.
- Pra que cama? - indagou Kevin - você acha que vamos dormir em meio aos tiros?
Andrew olhou para o amigo e conseguiu ver nos olhos do companheiro o medo e o desespero que estava escondido ali.
Kevin saiu pela porta lateral do alojamento, e parou olhando para o imenso céu.
- Eu queria mesmo era voltar para casa - Andrew parou ao lado de Kevin, e se colocou a observar a imensa lua que brilhava no céu com todo o seu esplendor. O ruivinho inevitavelmente pensou em seu filho que estava sendo gerado no ventre de sua amada.
Os amigos ficaram em silêncio por um tempo, apenas admirando a imensidão brilhante que era o céu, com suas infinitas estrelas que dava uma beleza impar ao cenário. Cada um estava perdido em seu próprio pensamento, digerindo seus medos e tentando manter seus monstros dentro de si. Cada um lembrava-se do que estava sentindo falta, das pessoas que haviam deixado para trás, dos momentos que ainda não tinham vivido.
- Andrew? - chamou Kevin depois de muito tempo em silêncio absoluto.
- Fala cara.
- Você estava falando sério quando disse que me queria como padrinho o seu filho? - ele não olhou para o amigo enquanto perguntava.
- Não teria pessoa mais indicava para isso, Kevin - Andrew sorriu - sabe que você o protegeria como seu fosse seu no caso da minha falta.
- Agora estamos na mesma situação. Não posso proteger seu filho - um suspiro sofrido escapou dos lábios de Kevin, fazendo com que um aperto tomasse conta do coração de Andrew.
Silêncio.
- Mesmo que eu não volte para casa - Andrew fez menção em interrompê-lo, porém Kevin não permitiu - mesmo que eu não volte, eu juro a você meu amigo que protegerei seu filho em qualquer lugar que eu esteja.
- Kevin... - os olhos do ruivo encheram-se de lágrimas.
- Sério Andrew - Kevin apertou o ombro do amigo, e sorri - eu te juro que serei o anjo da guarda d seu pequeno para sempre.
O abraço apertado selou a promessa de Kevin, e uniu ainda mais os dois amigos.
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No dia 30 de abril de 1969, os dois amigos desceram do helicóptero no sudeste asiático. Eles a partir daquele momento estavam em uma das zonas mais sangrentas da guerra. Os vietnamitas não poupavam ninguém, a única coisa que eles queriam era eliminar os americanos, não se importando a idade, a cor, ou o envolvimento real dos mesmos na guerra.
Muitos dos que estavam ali não era por vontade própria, assim como Andrew e Kevin.
O cenário que aquele pelotão encontrou foi de um caos total. Vários dos homens que ali estavam, esperavam ser rendidos por eles para voltarem para suas casas e suas famílias. A ansiedade no olhar, o cansaço aparente, a felicidade de ver os companheiros chegando para que eles pudessem ir.
O comandante que também seria substituído deu as boas vindas aos jovens que chegaram.
- Sejam bem vindos ao inferno! - imediatamente os jovens foram levados as barracas improvisadas.
O capitão que comandava o grupo sentiu um arrepio na coluna quando viu o saco de placas de identificação em cima de uma mesa quando passou pela barraca do grupo de estratégia, pois ele sabia que cada uma daquelas placas, era uma vida que não voltaria para casa.
- Kevin, olha - Andrew apontou a cabeça para que o amigo seguisse o olhar do capitão - são dos mortos.
Kevin continuou em silêncio, temendo que a sua placa e a do seu amigo se juntasse aquelas que ali estavam.
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- Corram! Seu bando de maricas! - gritava o capitão aos soldados que estavam em meio à lama.
Já havia uma semana que o grupo de soldados estava na frente de batalha, e nesse curto período já haviam perdido dois dos seus homens, entre eles Jack, o negro que dividia a barraca com os dois amigos.
- Abaixa Kevin! - Andrew avisou ao amigo quando percebeu uma movimentação diferente em meio aos arbustos.
Uma rajada de balas passou zumbindo nos ouvidos dos dois. Kevin revidou com vontade, porém Andrew ficou estático. Era sempre assim, Andrew demorava um bom tempo para se recuperar do choque do medo.
Um grito agudo de dor fez co que os dois amigos procurassem de onde vinha tal som. Olhando a redor, Andrew foi o primeiro a avistar Logan, uma dos soldados de seu pelotão. Logan estava com um ferimento em uma de suas pernas. O sangue jorrava em esguicho, mostrando de alguma artéria havia sido rompida.
Andrew rastejou até o companheiro. Logan era um jovem magro, de dentes falhados na frente e diversas sardas pelo rosto, mas devido à quantidade de sangue que estava perdendo até mesmo suas sardas estavam perdendo a cor.
- Agüenta firme! Eu vou tirar você daqui - disse Andrew, mesmo não sabendo se conseguia fazer isso.
- Eu estou morrendo!
- Não fale asneiras! Você vai ficar bem! - Andrew sabia que era mentira. O companheiro não sairia dali com vida.
Uma poça de sangue estava se formando debaixo de Logan, e o ruivinho via a vida se esvaindo aos poucos do companheiro.
- No acampamento - Logan já estava falando com dificuldade, e o barulho infernal das metralhadoras não estava contribuindo em nada para que sua voz fosse ouvida claramente - bem no fundo da minha mochila tem um envelope pardo. Pede pra entregar a minha mãe.
- Você mesmo vai entregar isso.... - Andrew não conseguiu completar a frase. Um tiro vindo de não se sabe onde atingiu Logan na cabeça.
O sangue do soldado estava respingado por todo o rosto do ruivo.
- Saia daí Andrew - gritou o capitão.
Andrew rastejou de volta para onde Kevin estava, e começo atacar o inimigo. Ele queria inutilmente vingar a morte de mais um de seus companheiros.
O combate continuou naquele lugar por mais seis dias. Logan foi enterrado em meio à mata onde eles estavam, e sua mãe receberia uma medalha no lugar do filho.
Kevin pensava em sua mãe, em seu pai, e em todos que haviam ficado para trás. Um sentimento de saudade e desespero se apoderou do jovem, fazendo com que grossas lágrimas saltassem involuntariamente de seus olhos.
Nessa jornada de dor e sofrimentos, os dois amigos continuavam seguindo com a guerra que os fora imposta.
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O dia havido amanhecido chuvoso e frio. Andrew e Kevin já estavam fora de casa há seis meses, e ainda faltava uma semana para que eles voltassem para casa. O confronto naquela parte do país já havia cessado, e os soldados podiam respirar um pouco mais aliviados.
A rotina que antes era em meio à lama e a água hoje eram de desmontar o acampamento e voltar para casa, o que eles não esperavam era que um ataque surpresa estava sendo organizado a apenas três quilômetros dali.
- Você acha que a barriga da Katherine está grande? - Andrew estava recostado em um dos sacos de areia que servia de barricada em volta do acampamento.
- Acho que sim! - naquela manhã Kevin estava estranho, e mesmo com a insistência de Andrew para conversar, Kevin apenas respondia com poucas palavras.
O amigo respeitando o espaço deixou o silêncio se estabelecer entre eles. Kevin olhava a chuva caindo, e sentia que algo estava errado. A guerra não podia ser silenciosa por muito tempo, não em um território que até poucos dias era tomado por tiros e canhões sendo disparados para todos os lados.
Os soldados estavam alheios, cada um perdido em seu próprio mundo. Foi quando tudo aconteceu:
O ataque aconteceu de repente, pegando todos de surpresa. Tiros e gritos em uma língua desconhecida eram ouvidos por todos no acampamento. Andrew tentou alcançar sua arma, mas foi atingido por um tiro nas costas. Kevin gritou, mas seu amigo parecia não escutar.
Os demais soldados começaram a revidar, fazendo com que o acampamento se tornasse um campo de batalha novamente. Vários de seus companheiros estavam estirados no chão. O capitão gritava palavras que não chegavam aos ouvidos de Kevin, pois sua preocupação era seu amigo. Andrew continuava caído e imóvel, e o desespero tomou conta de Kevin.
O barulho ensurdecedor de helicóptero se fez ouvir, e rajadas de metralhadora fuzilaram o inimigo. Kevin mais que depressa correu ao encontro do amigo, virando-o para cima. Os olhos de Andrew se abriram, e um sorriso idiota brincou nos lábio do ruivo.
- Que droga! Você estava se fingindo de morto? - o ruivo balançou a cabeça, porém sua expressão era de dor, e logo Kevin viu que o amigo estava realmente ferido.
O capitão gritou para que todos entrassem no avião, e logo Kevin estava ajudando o amigo caminhar até o mesmo. Mas, antes que os dois entrassem, Andrew lembrou-se do pedido de Logan.
- Eu tenho que voltar! - ele disse em mio a dor.
- Você está doido? Vamos embora - Kevin o colocou sentado na borda da porta do avião, e já estava fazendo menção em subir, porém Andrew se esforçava para descer.
- Eu prometi ao Logan.
- O que você prometeu Andrew? - Kevin estava doido para ir embora.
- Ele queria que eu entregasse uma carta à mãe dele - Kevin lembrou-se do quanto Logan falava em sua mãe, e sentiu-se na obrigação de pegar a tal carta.
- Se acomode ai - Kevin joga as pernas do amigo para dentro do avião - eu não demoro! Onde está essa carta?
- Na minha mochila.
Kevin voltou correndo até o acampamento, ignorando o comando do capitão para que ele voltasse.
A mochila estava logo na entrada, e ele a tomou na mão e virou-se para correr novamente em direção ao avião. Aquela aeronave era seu passaporte para casa, porém ele não conseguiu alcançar seu objetivo.
Vários tiros foras disparados em direção ao jovem, metralhando seu corpo, e levando embora seus sonhos. Kevin não voltaria com vida para casa. Kevin estava morto no Vietnã.
Seu corpo sacudia incontrolavelmente enquanto sua vida se esvaia.
O capitão acertou o atirador, dando a ele o mesmo fim do seu soldado.
Andrew não conseguia sair do lugar. Ele viu seu amigo ser morto, e se sentia culpado por isso.
###***###
Os acontecimentos a seguir passaram na visão de Andrew em câmera lenta. Seu amigo, já sem vida foi colocado ao seu lado dentro do avião, e em uma de suas mãos a carta a qual ele havia voltado para pegar estava amassada, coberta de sangue e lama.
- Me perdoe! - Andrew chorava compulsivamente - era pra eu ter morrido e não você.
O comandante da aeronave já havia visto muitos perderem suas vidas, mas o desespero de Andrew comoveu o velho cão de guerra.
O capitão se sentia impotente diante aquela situação, pois não pode fazer nada para salvar o seu soldado.
Andrew esqueceu até mesmo que estava baleado, e seu sangue se misturava ao sangue de seu melhor amigo, o amigo de uma vida toda.
A carta foi tirada das mãos de Kevin, pois Andrew não conseguia olhar para ele sem que o remorso o consumisse ainda mais.
A viagem parecia durar uma eternidade, e a todo o momento Andrew murmurava pedidos de desculpa ao amigo.
O corpo de Kevin foi levado logo na primeira parada, e Andrew seguiu para um hospital da base mais próxima.
Ele não queria sentir aquela dor que esmagava seu coração, mas era inevitável, Andrew acabara de perder o melhor amigo de uma vida inteira. Kevin não tinha irmãos e Andrew se sentia como se o amigo o tivesse adotado como tal. "somos irmãos de alma" Kevin sempre dizia.
###***###
A volta aos Estados Unidos aconteceu quatro dias depois da morte de Kevin. Andrew ainda estava debilitado, mas ele mesmo queria dar a noticia a família do seu amigo.
Enquanto ele seguia em uma das confortáveis poltronas do avião que o levaria de volta para casa, o corpo de Kevin seguia no compartimento de carga em uma das mais belas urnas destinadas a soldados mortos em batalha. A todo o momento o desespero tomava conta do ruivo sentado ao lado de seu capitão, e esse por sua vez com uma postura mesmo que firme, apoiava seu soldado da melhor maneira possível.
Andrew não avisou a ninguém que estaria voltando para casa. Ele não queria alegria no aeroporto. Sua volta não era motivos de comemoração, e sim motivo de vergonha, afinal em sua cabeça seu amigo perdeu a vida por sua causa.
Desembarcaram no aeroporto da cidade no começo da tarde. O céu estava cinza, parecendo que também se entristecera pela perda de Kevin.
O carro preto do exercito americano já estava aposto para levar s oficiais até a residência do soldado Kevin.
Enquanto o carro tomava as ruas da cidade, Andrew olhava pelos vidros escuros da janela, e lembrava-se de tudo que já havia passado com Kevin. Desde seu primeiro dia ali, Kevin se mostrou ser o amigo/irmão que jamais pensou que um dia poderia ter na vida.
Ao aproximar-se da entrada do bairro onde moravam, um aperto no coração do ruivo fez com que seus olhos expressasse sua tristeza através de lágrimas. Ele não conseguia controlar o choro sofrido que saia de dentro da sua alma.
O carro virou a rua da casa de Kevin, e Andrew percebeu que não tinha mais jeito. Era hora de entregar a família de seu melhor amigo a placa de identificação do soldado Kevin Miller.
Andrew hesitou por alguns minutos antes de sair do carro. Seu uniforme militar estava impecável, assim como do capitão e do general que o acompanhava. O ruivinho caminhou lentamente até chegar à varanda onde inúmeras vezes sentou-se com seu amigo e cantaram quase a noite toda. Um latido tira Andrew de seus pensamentos. Era Thor, o cachorro de Kevin.
- Oi garotão - Thor pulava em Andrew, demonstrando a alegria em vê-lo novamente.
A porta se abre, e dona Mirtes aparece com um sorriso nos lábios, mas que desaparece imediatamente quando vê os semblantes destruídos dos homens que aguardavam do lado de fora.
- Onde está o Kevin? - a pergunta saiu bem mais baixa do que eles esperavam.
- Eu sinto muito tia Mirtes - os olhos de Andrew denunciavam que o pior havia acontecido.
- Não! - sem grito, sem escândalo. Foi um não baixo, mas que com toda certeza foi o mais sofrido que Andrew ouviu em toda a sua vida. Os braços compridos e fortes do ruivo envolveram Mirtes em um abraço, e seu pranto se misturava ao dela.
Eles estavam ainda mais unidos. Era a união pela amizade e pela dor.
O capitão estende a placa do filho, e dona Mirtes caiu desmaiada no chão.
Minutos depois, já com a presença de John ao seu lado, os oficiais explicam para a família o que aconteceu, e organizaram como seria o funeral do soldado em questão.
###***###
O céu estava lindo. As árvores pareciam mais verdes do que nunca, e o cheiro das flores invadiam as narinas de quem estava ali, dando a sensação de leveza aos corações.
O cemitério estava lotado, todos os amigos de escola estavam lá, e também os companheiros de guerra, inclusive Jack, que se tornou amigo de Kevin e Andrew enquanto estavam na guerra.
Um corredor de oficiais se formou, e por ele a urna que carregava o corpo de Kevin passou lentamente por ele. Cada passo dado pelos seis soldados que trazia em seus ombros a urna preta, era como se um pedaço do coração do ruivo se soltasse do peito e caísse por terra.
Andrew segurou a coleira de Thor firmemente. Sim, ele levou Thor ao velório, pois ele sabia como o amigo amava aquele animal. O cachorro se comportou como se soubesse que não podia latir ou fazer algo que atrapalhasse a cerimônia.
A urna foi depositada em um pedestal, e a bandeira dos Estados Unidos foi jogada sobre ela. O capitão começou seu discurso, levando todos que estavam ali a lágrimas. Kat estava ao lado de Andrew, segurando firme sua mão. Sua barriga já estava bem à mostra, mas ele nem teve tempo de curtir meu filho, pois a dor que ele estava sentindo era muito grande.
Não se sabe explicar como, mas Thor conseguiu se soltar e correu em direção a uma das arvores que havia ali. Andrew não saiu para buscá-lo, mas de longe conseguia ver o que o cão fazia.
Thor deitou-se no chão, exatamente como fazia quando via Kevin, e um arrepio passou pela coluna do ruivo. Thor estava fazendo tudo que fazia com Kevin, exatamente igual. Não era a primeira vez que o ruivo sentia aquele arrepio, desde que seu amigo foi morto, a sensação de tê-lo ao seu lado era constante.
Uma salva de tiros trouxe Andrew novamente a realidade. As lágrimas eram presente ali, e o discurso improvisado do pai de Kevin comoveu a todos.
A bandeira foi dobrada cuidadosamente por dois soldados, e entregue a mãe de Kevin. Andrew sabia que a alma daquela mulher estava morta, pois seu filho era a razão de sua vida, e ele se culpava pela morte de Kevin.
Era o fim. Os amigos que juravam amizade eterna estavam separados. A morte havia levado a metade daquela amizade.
###***###
Os anos correram, e Andrew agora havia se tornado um dos melhores empresário da região. Seu filho estava com seis anos, e era a sua cara. O cabelo ruivo, as sardas no rosto. Dan era a copia de Andrew.
Certo dia ao entrar no quarto do filho, ele escuta uma conversa do menino. Era como se alguém estivesse ali com ele, e ficou impressionado ao ouvir o que o garoto dizia.
- Meu pai está bem - uma pausa longa como se ele estivesse escutando quem quer que seja que estivesse ali - ele trabalha muito, mas sempre tem tempo para brincar comigo.
Outra pausa, e o menino continua:
- O Thor está velho, mas continua um amigão - pausa - ele também é meu melhor amigo.
- Dan - Andrew entra de repente no quarto surpreendendo o filho - com quem você está falando?
Essa não era a primeira vez que o menino falava sozinho. Ele sempre dizia que era com um amigo, e Andrew por achar se tratar de um amigo imaginário, não deu muita importância, mas agora ele já estava começando a ficar com medo.
- Eu te fiz uma pergunta - ele sentou-se ao lado do filho - com quem você está falando?
- Com um anjo - o menino olhou sobre os ombros do pai e sorriu - ele só não tem asas, mas ele é um anjo.
Andrew olhou para trás rapidamente, na esperança de ver o que o filho via, mas o que ele conseguiu ver foi apenas os quadros pendurados na parede.
- Filho, as pessoas não conseguem ver seus anjos - ele tenta explicar ao garoto que aquilo fazia apenas parte da imaginação dele.
- Papai, eu vejo meu anjo - o menino sorriu - ele sempre diz que te prometeu que seria meu anjo.
A cabeça de Andrew girou, todos os pelos de seu corpo se arrepiar. Seria isso possível? Seria possível que Kevin estava cumprindo sua promessa?
- Quem te disse isso? Quem te falou dessa promessa Dan - ele estava assustado, e o menino ainda mais.
- O meu anjo da guarda - o menino disse como se fosse óbvio.
- Seu anjo da guarda tem nome? - perguntou Andrew um pouco mais calmo.
- Anjos são anjos, papai. Eles não precisam de nome - o menino deu os ombros.
- Vem comigo, filho - Andrew tomou seu pequeno pela mão, e o levou até o sótão.
Lá Andrew tirou um baú de recordações, e abriu delicadamente. Ali dentro estava todas as fotos dele e do amigo. Dan nunca havia visto uma foto de Kevin, e Andrew queria tirar a duvida que estava martelando em sua cabeça.
- O papai quer te mostrar uma coisa - o ruivo estendeu uma foto de Kevin, e os olhos do menino iluminou-se.
- Papai, como se tira foto de anjo? Você me ensina? - as lágrimas desceram incontrolavelmente dos olhos de Andrew.
- Nós tiramos quando eles ainda são humanos.
Durante muito tempo os dois ficaram olhando as fotos antigas de Andrew, e na maioria delas Kevin essa figura presente. Dan soube que Kevin havia morrido na guerra, e que prometera cuidar dele. A criança ainda era muito pequena para entender a força e a cumplicidade de uma amizade igual a do pai e de Kevin, mas mesmo em sua inocência soube que uma coisa muito forte girava em torno dos dois.
Aquela noite foi difícil pegar no sono. Depois de rolar de um lado para o outro ele decide sair da cama para não acordar a mulher.
Andrew pega um livro qualquer e deita-se no sofá de sua sala que fica no andar debaixo. Andrew sentiu um toque em seu ombro e assustou-se. Ele tinha medo de olhar para trás, mas a voz de Kevin fez com que todo o medo fosse embora rapidamente.
- Não tenha medo meu amigo - a voz de Kevin era suave como sinos tocados em um templo sagrado - não sentiu saudade de mim?
Andrew se vira e contempla novamente seu amigo. O sorriso de Kevin era ainda mais branco, e seus olhos estavam como duas pedras preciosas que brilhavam.
- É você mesmo? - Andrew nunca havia sonhado com o amigo morto, e aquilo fez com que lágrimas descessem de seus olhos. Ele achava que estava sonhando finalmente com seu amigo, porém aquilo não era sonho.
- Sim, sou eu! - Kevin contorna o sofá e senta-se ao lado do amigo.
- Porque você nunca veio em meus sonhos?
- Eu sempre estive aqui Andrew.
- Eu sinto tanto a sua falta! - ele tenta segurar a mão do amigo, mas infelizmente não consegue.
- Você não pode me tocar. Essa foi à condição imposta para que eu pudesse falar com você - o semblante iluminado que Kevin pareceu um pouco tristonho.
- Eu sou o culpado por você ter morrido - as lágrimas de remorso desciam descontroladamente dos olhos de Andrew - se eu não tivesse pedido para você buscar aquela maldita carta, você ainda estaria aqui comigo.
- E quem te disso que não estou com você todos os dias durante todo esses anos? - Andrew não respondeu, apenas olhou para o amigo ainda sentindo-se culpado por sua partida tão prematura.
Um longo silêncio se fez entre os dois.
- Você deveria está aqui! - Andrew quebrou o contato visual com Kevin - você deveria ter estado no altar no dia do meu casamento. Seu lugar de padrinho ficou vago sabia?
- Ele não ficou vago! - o sorriso torto nos lábios do amigo também fez o ruivinho sorrir - eu estava lá, ocupando o meu lugar ao seu lado no altar.
- Eu sentia você ali comigo - e era verdade. Andrew sempre sentiu a presença do amigo.
- Eu estive com você em todos os momentos - Kevin uniu as mãos e olhou para o alto - meu tempo está se acabando.
- Não Kevin! Eu preciso de você! - Kevin sorriu.
- Você sempre me terá por perto.
- Posso te perguntar uma coisa? - o ruivinho olhou para o amigo, e Kevin viu nos olhos de Andrew o mesmo garotinho indefeso que ele conheceu há anos atrás.
- Claro que pode.
- Morrer dói?
- Não tenho como te responder isso - o ruivinho olhou para ele e uniu as sobrancelhas - não me lembro de nada em relação à morte. A única coisa que eu lembro é de uma luz muito forte, e de um ser me dizendo que a minha missão era proteger Dan.
- Mas quando você morreu ele ainda nem era nascido.
- Mas eu já era seu guardião. Eu prometi isso à você - Kevin olhou os amigos nos olhos antes de continuar - eu estava lá quando eles nasceu, e segurei seus ombros enquanto você o embalava pela primeira vez em seus braços.
Andrew não consegui dizer mais nada, apenas as lágrimas revelavam a emoção que ele estava sentindo.
- Eu fui ao meu funeral.
- Thor te viu naquele dia não é?
- Sim, e ele ainda me vê todos os dias.
- Eu nem sei o que pensar Kevin.
- Pense no seguinte: eu prometi que cuidaria de seu filho, e eu estou cumprindo a minha promessa.
- Obrigado!
- Eu que agradeço a você meu amigo, por nunca ter deixado a chama de nossa amizade se apagar - Kevin fez uma pausa - você continua sendo fiel a mim da mesma forma que sou fiel a você. Não quero que pense que morri por sua culpa, porque não foi culpa de ninguém. Era a minha hora, e nada poderia mudar isso.
Minha missão agora é cuidar de Dan e de sua família, e sempre eu estarei aqui com você. Nunca vou te abandonar, e nunca deixarei nada de mal acontecer com Dan. Somos irmão de alma lembra?
- Sim, eu lembro - o ruivinho sorriu.
- Então tenha em sua consciência que aonde quer que você esteja eu estarei lá.
- Vou te ver novamente?
- Provavelmente não.
- Por quê?
- Eu sou o anjo da guarda de seu filho, Andrew. Só posso aparecer para ele - Kevin coçou a nuca - e mesmo para ele já está quase na hora de não aparecer mais.
- Isso é injusto!
- Não, não é - Kevin sorriu.
- Sinto sua falta.
- Eu sempre estarei aqui - Kevin ficou de pé - quando Thor brincar sozinho pode saber que sou eu. Quando Dan conversar com seu amigo imaginário, sou eu , quando você sentir uma brisa fria tocar seus ombros, serei eu mostrando que estou aqui.
- Vou lembrar-me disso.
- Agora eu tenho que ir - Kevin e Andrew ficaram de pé - tenha uma vida plena amigo. E tire de dentro do seu coração essa culpa.
- Me perdoa?
- Não existe nada para ser perdoado - Kevin percebeu que Andrew precisava ouvir que ele o perdoava, e foi isso que ele fez - mas, se isso te deixará feliz. Eu te perdôo.
Uma luz imensa surgiu na sala, e Kevin se foi.
Andrew ficou atordoado, não sabendo se aquilo era real ou não.
- Isso é um sonho! - ele repetia quando viu Dan no pé da escada o olhando e sorrindo - filho!
- Viu como ele é legal papai.
Andrew teve certeza que não estava dormindo, e que o amigo esteve mesmo ali.
###***###
Já haviam se passado dez anos desde que Kevin apareceu para Andrew, e depois daquele dia o peso existente em seu coração foi saindo aos poucos.
Dan havia crescido, e nunca mais viu Kevin. As lembranças do anjo estava sumindo à medida que ele crescia.
Thor estava velho, mas ainda era o amigo mais fiel de Andrew, e por esse motivo o ruivinho o levava para onde quer que fosse. Os pais de Kevin haviam se mudado de estado, mas sempre visitava o melhor amigo do filho, era como se assim tivesse um pouco de Kevin por perto.
Naquela tarde de inicio de primavera, Andrew resolveu pegar o seu violão e seguir com Thor até o mirante que ficava a poucos metros de sua casa. O cão adorava esses passeios, e gostava ainda mais de sentar-se aos pés de seu novo dono e ouvir o dedilhar suave o violão.
O lugar de sempre estava vazio, e Andrew sentou-se admirando o lindo por do sol que estava se formando. Antes mesmo de dedilhar alguma coisa em seu violão, Andrew percebeu a agitação de Thor, e sabia que isso devia a presença de Kevin.
- Eu sei que você está aqui - disse Andrew para o nada.
Kevin estava parado ao seu lado sorrindo.
- Fiz essa música em homenagem às amizades existentes no mundo - Andrew dedilhou alguma coisa no violão, e Thor deita-se aos seus pés - a perda dói, a ausência é insuportável, mas temos que seguir em frente. Perder não é fácil, a saudade também não é, mas sei que o que uniu as nossas almas foi algo inexplicável e eterno. Um dia a gente ainda vai se encontrar, e tenho certeza que nesse dia o céu ficará em festa.
Kevin olha para o amigo com amor, carinho, ternura, zelo e saudade. Anjos não podem chorar, pois se Kevin pudesse, com toda certeza ele estaria se desmanchando em lágrimas.
O anjo/amigo colocou suas mãos nos ombros do ruivo.
- Eu sinto você, Kevin - o ruivo sorriu fechando os olhos. Um brisa fria tocou seu rosto como se o acariciasse - sua presença me transmite paz.
Dizendo isso, Andrew tocou e cantou com sua voz rouca a música que havia feito pensando em Kevin:
"Aquela carta chegou e com ela se foi
Toda a esperança.
Sorrisos e sonhos, perdemos; planos que fizemos
Desde a infância.
Meu amigo, irmão de alma,
Eu nunca vou te esquecer.
A lembrança que sempre me acalma
Da promessa que vem de você.
Tantas vidas e outras esquecidas na escuridão
Em meio aos prantos de dor e olhos de terror
Sem salvação,
Não foi fácil ver você partir
Você sempre que cuidou de mim.
Contigo aprendi ver além e a crer que posso prosseguir.
Nem a guerra pode nos destruir!
Além da guerra, existe um mundo de sonhos e ideais
De amores que deixei pra trás.
Além da guerra, além da dor,
Existe o amor que nos move e nos faz desejar
Voltar para casa.
Além dos tiros, além do sangue, além da sorte
Eu vejo além.
Além do medo, além da vida, além da morte
Eu vejo...
Além da guerra, além da dor,
Existe o amor que nos move e nos faz desejar
Voltar para casa...
Pra junto de você...
Meu irmão de alma.
Nosso amor vai além."
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