Conto 8 - Era Uma Vez em Dezembro
Autor: Amauri Filho
Sinopse:
A revolução começou. O rei caiu. Presa em sua casa de veraneio, a família real aguarda o seu julgamento enquanto mudanças sociais, econômicas e políticas estão em curso no país. Mantida em cativeiro dentro da própria casa, a princesa Lara, com o jeito delicado e singelo da dama da corte que ela fora educada para ser, passa a despertar a atenção (e outros sentimentos) de Edgar, um dos jovens soldados que compõe a guarda do local. Um amor inocente que surge de uma paz apenas aparente. Um amor juvenil em meio a um conflito de interesses. Um amor pueril que precisa enfrentar forças muito maiores e poderosas para se fazer valer.
Música Tema: "Once upon a december" (da trilha sonora do filme "Anastasia")
Classificação: +13
***
PARTE I
Quase toda noite, a jovem tinha o mesmo sonho.
Ela acordava em sua cama no palácio real ouvindo o som dos tiros e os gritos. Desesperada, a princesa, suas irmãs e seu irmão mais novo se encontravam no corredor e corriam ao encontro do pai, da mãe e da avó. Do alto do imenso mezanino, a jovem via populares e soldados que lutando contra alguns dos últimos oficiais da guarda-real que ainda se mantinham fiéis ao rei. Um dos guardas se aproximava, gritando para o monarca que levaria ele e sua família em segurança para fora do palácio. O rei, inocentemente, acreditava e caminhava em direção ao homem. A poucos metros do pai, a princesa via o homem retirar uma adaga de dentro da manga, pronto para enterrá-la no peito do monarca. Sua avó, contudo, com um grito, entrava na frente no rei e recebia um profundo golpe em seu peito, caindo morta instantaneamente. O guarda, então, era morto com o tiro de um companheiro na revolução, que gritava para que outros revoltosos prendessem a família real, mas não os matasse e nem os ferisse.
Mas o que a assustava, na verdade, não era a violência do sonho em si, mas o simples fato de que não era um pesadelo que a sua sempre fértil mente produzirá sozinha. Era uma vivência recente que a traumatizara e ela não conseguia esquecer: ela ainda se lembrava dos olhos abertos e sem vida da avó apunhalada fitando o vazio enquanto ela era conduzida à força pelos revoltosos para fora do palácio real.
Por vários dias após a queda do governo de seu pai, a princesa Lara acreditou que ficaria encarcerada nos calabouços da capital até que a junta militar (que assumira o governo em caráter interino) decidisse que toda a família real fosse executada. Esse pensamento, contudo, mostrou-se errado quando, apenas cinco dias após o deflagrar da revolta, a jovem, seus irmãos e seus pais foram conduzidos até a casa de veraneio da família real, no norte do país. Lá, foram recebidos com todo o conforto e mordomias com os quais estavam acostumados a ter pelo simples fato de pertencerem à realeza; a proibição de abandonarem o local, entretanto, era a única coisa que lhes lembrava de que seus títulos de nobreza já não mais existiam: eram prisioneiros dentro de sua própria moradia e lá residiriam até que forças maiores decidissem seus destinos. Forças maiores que, há meses, pressionavam o rei no Parlamento por uma infinidade de mudanças que ele, sozinho, não podia ou não queria realizar. Forças maiores que se aproveitaram da insatisfação popular e do consequente e crescente ódio contra a família real para assumirem o poder. Quando dezembro chegou, a princesa contabilizou um total de seis meses presa na luxuosa casa localizada entre as montanhas.
Assustada, a princesa Lara olhava para o teto, sem conseguir voltar a dormir após ser desperta de seu pesadelo. Ainda era madrugada, mas a luz que adentrava pela janela, passando pela cortina, permitia-a se localizar perfeitamente em seu quarto. Incapaz de se tranquilizar sozinha, a jovem de vinte anos se levantou, calçou seus sapatos e agarrou o livro que estava sobre o criado-mudo. Caminhando cuidadosamente para não acordar os outros membros da sua família, a moça avançou pelo corredor e desceu as escadas de madeira em direção ao hall, dizendo, de forma muito simpática, um "boa noite" ao guarda em pé que ali estava. O gesto era, na verdade, mais uma formalidade do que uma manifestação da excelente educação que a princesa recebera ao longo de sua criação. A pedido do rei deposto, todos os membros da família real tratavam os soldados que os mantinham presos com muito respeito e simpatia uma vez que o rei acreditava que gestos como esse poderiam lhes ser úteis no futuro (a princesa Lara, inclusive, surpreendeu-se ao ver, na manhã anterior, o irmão mais novo jogando xadrez com um dos guardas enquanto os dois riam e conversavam de forma amistosa, como se fossem velhos amigos). Educadamente, o soldado respondeu-lhe e ela caminhou mais alguns metros, passando por um portal em forma de arco que separava o hall de um longo corredor antes de, por fim, chegar à biblioteca. Lá, ela ligou a luminária estrategicamente colocada no canto do cômodo e se acomodou em uma das quatro poltronas vermelhas entre as estantes abarrotadas de livros. Confortável, a jovem cruzou as pernas, afastou os cabelos castanhos e ondulados de seus olhos (colocando-os atrás da orelha) e pousou o livro aberto sobre os joelhos antes de começar a ler.
As páginas dançavam por entre seus dedos e o som do papel deslizando pela sua pele, rompendo o imponente silêncio da madrugada, era o suficiente para que, aos poucos, ela começasse a se acalmar após o pesadelo. As horas se passavam e, com elas, a camada de neve do lado de fora engrossava alguns centímetros a mais, mas a princesa Lara não parecia se cansar nem um pouco das interessantíssimas aventuras do Capitão Nemo em seu pomposo e tecnológico submarino, o Náutilus. E emoção por trás das palavras de Júlio Verne fazia com que a fatídica noite no palácio real fizesse parte de lembranças remotas e já pouco importantes. Como se o mundo subaquático fosse a realidade e a revolução, apenas mais uma fantasia. Um som, contudo, rompeu a serenidade de sua leitura. Curiosa (porém, nem um pouco assustada), Lara levantou os olhos das páginas amareladas em suas mãos e olhou para a porta semiaberta da biblioteca, onde a luz acesa do corredor lhe permitia ver uma sombra. Ao mesmo tempo, um cheiro familiar e relaxante tomou invadiu suas narinas. Um leve sorriso se formou em seu rosto quando a jovem proferiu:
─ Eu sei que está ai, Edgar.
A sombra parada do lado de fora da porta avançou lentamente e, no segundo seguinte, um soldado adentrou a biblioteca. Era alto e extremamente jovem. Tinha os cabelos pretos e cacheados e trazia, em sua mão, uma bandeja prateada que sustentava duas xícaras de porcelana e um bule. Em sua farda, o emblema vermelho e branco da junta militar estava bordado sobre seu peito; preso ao seu cinto, um revólver carregado refletia a luz vinda da luminária.
─ Não está conseguindo dormir de novo? ─ ele perguntou.
─ Não ─ a princesa respondeu, colocando uma fita vermelha entre as páginas do livro e fechando-o. ─ Mas até que isso é bom, sabe? Porque eu tinha certeza de que você iria perceber isso e me trazer chá. E você sabe que eu amo chá.
O jovem soldado riu e pousou a bandeja na mesa em frente à grande janela da biblioteca. Após encher as duas xícaras, ele levou uma até a princesa de se sentou na poltrona ao seu lado.
─ Tecnicamente, não é chá ─ disse Edgar. ─ Não sei se você sabe, mas a gente só chama de chá quando é chá-preto. Quando é feito com outras folhas, é chamado de infusão.
─ Como você sabe dessas coisas? ─ ela perguntou, rindo enquanto aceitava a xícara. – Geralmente, os soldados que cuidavam do palácio eram muito espertos quanto à assuntos militares, mas tinham a inteligência de uma ostra em relação a conhecimentos gerais.
─ Bem, eu não fui soldado a vida inteira ─ Edgar riu e, sem sequer perguntar se podia, sentou-se na poltrona ao lado da princesa. Na verdade, ele nem precisaria perguntar... Os meses em que a família real esteva confinada naquela casa de veraneio haviam sido o suficiente para que a intimidade dos dois crescesse o mínimo necessário para cruzar as fronteiras da formalidade.
─ Não? ─ Lara levou a xícara pela primeira vez logo após pousar o livro fechado sobre a mesa redonda entre as poltronas e cruzar as pernas, olhando curiosa para Edgar.
─ Não ─ ele confirmou. ─ Meus dois irmãos mais velhos sempre foram do exército. Mas eu...
Imediatamente, ele parou de falar. Suas bochechas coraram e a princesa Lara não entendeu o por quê.
─ Você...? ─ ela insistiu.
─ Eu fui convocado para ingressar o exército seis meses atrás pela General Lyanna ─ o rapaz completou.
Logo que ele se calou, Lara entendeu o motivo de Edgar ter corado: nos seis meses em que os dois se conheciam, o nunca havia lhe contado que fora um dos vários jovens recrutados pelo exército para compor a armada revolucionária. Provavelmente, Edgar fora um dos soldados presentes no Dia Vermelho e a princesa Lara nem sequer sabia. Por um único instante, a jovem engoliu em seco, mas, em seguida, ela lembrou-se de que o rapaz sentado ao seu lado jamais lhe dera motivo algum para que ela o temesse: ele era apenas, Edgar, o soldado apaixonado que conhecera quando foi levada para lá.
─ Desculpe ─ disse ele, após um longo e constrangedor silêncio que se instaurou na biblioteca. ─ Eu não...
─ Não precisa se desculpar ─ disse Lara. ─ Não é sua culpa.
Não. Não era. Se Edgar concordava ou não com a ideologia por trás do Partido, isso estava fora de questão. Os fatores que levaram ao Dia Vermelho eram muito maiores do que ele ou do que a princesa. Era uma soma de erros do rei, uma política interna ineficaz e decadente, uma guerra imensa e sem futuro e um grupo de políticos e militares que, como bactérias, mantinham-se em latência, esperando apenas a melhor oportunidade para atacar. Parasitas oportunistas. Independentemente do Edgar pensava, ele era apenas mais um peão em um imenso e complexo tabuleiro de xadrez.
─ O que você está lendo? ─ ele perguntou. ─ É a terceira noite seguida que eu te vejo lendo esse aí.
─ "Vinte mil léguas submarinas" ─ a princesa respondeu, mostrando-lhe a capa enquanto, quase inutilmente, vestia um forçado sorriso em seu rosto na tentativa de mostrar que não ficara nem um pouco abalada pela conversa tensa que se desenvolvera nos últimos instantes. – Do Júlio Verne. É um daqueles livros que eu acho que todo mundo deveria ler. Gostaria de ler?
─ Adoraria ─ respondeu Edgar. ─ Se eu soubesse ler.
Imediatamente, o queixo da princesa Lara caiu. Edgar era jovem. Muito jovem. Mal devia ter passado dos vinte anos. Estava na época mais produtiva de sua vida. Mas nem sequer sabia ler. Lembrando-se de que, poucos dias antes, o rapaz lhe contara que vinha de uma família de camponeses, a princesa logo percebeu quem de fato ele era: Edgar era apenas mais uma das milhares de pessoas pobres e miseráveis no país (em cuja existência a princesa Lara, por ter passado a vida toda em um luxuoso palácio, jamais acreditara) que exigiram a queda do rei em nome de um pouco de dignidade e justiça social e que foram recrutados à força pelo exército golpista apenas para dar volume. Edgar, como milhares de outros jovens sem perspectiva alguma, fora usado apenas como massa de manobra por pessoas mais poderosas do que ele que, provavelmente, haviam-no iludido, prometendo-lhe tudo o que queria e muito mais em troca de seus serviços e, talvez, sua vida (embora, provavelmente, essa segunda parte deva ter sido omitida no acordo informal fechado pelas partes).
─ Bem, se esse é o caso, eu gostaria de te ensinar a ler ─ a princesa sorriu animadamente para ele, tentando fingir não estar nem um pouco espantada com o que acabara de ouvir. – É bem fácil. Podemos começar amanhã depois do desjejum, se quiser.
─ Eu adoraria ─ Edgar sorriu encabulado, fitando o chão.
Por fim, ele levantou a cabeça e tornou a encará-la. Sem saber ao certo por que, a princesa sentiu suas bochechas queimarem. Ao mesmo tempo em que agradecia a Deus pelo fato de a fraca iluminação ambiente impedir Edgar de vê-la corar, a jovem desviou o olhar e bebeu um gole de chá na frustrada tentativa de esconder ser constrangimento.
***
Toda a família real estava à mesa. O rei estava sentado ao lado da rainha e essa repreendia o filho mais novo, sentado à sua esquerda, por não querer comer. As três filhas do casal imperial estavam sentadas do outro lado da mesa e pareciam conversar animadamente entre si. A mais velha das princesas passava geleia de amoras em uma torrada no exato momento em que se ouviu uma batida à porta. Um dos dois soldados que guardavam a família real dentro da sala de jantar se adiantou até a imensa estrutura de madeira o mesmo tempo em que o rei, a rainha, o príncipe e a princesa interromperam imediatamente o que estavam fazendo e se colocaram em pé. Quando a porta se abriu, uma mulher de lisos e brilhosos cabelos pretos adentrou o ambiente. Ela vestia a farda cinza do Exército, mas a peça de roupa que mais chamava a atenção era um nada discreto tapa-olho sobre o olho direito, que escondia parte de uma enorme ferida mal cicatrizada que ia da sua testa até o canto de seu lábio. Segundo Edgar, um dos soldados da guarda real a atingiu com um golpe de adaga no Dia Vermelho quando ela tentou adentrar o palácio.
A General Lyanna, então, adiantou-se com uma postura séria e ocupou a cadeira na ponta da mesa, exatamente entre o rei e a princesa Lara. No momento em que ela se sentou, todos os membros da família real repetiram o gesto e, apenas nesse instante, a mulher emitiu um educado e animado "bom dia". Aquela cena se repetia todos os dias desde que eles haviam sido levados presos até aquela casa: por ser a general responsável por fazer a segurança da família real, Lyanna julgava-se no direito de fazer toda e qualquer refeição com ela (uma petulância que deixou o rei abismado e chocado na primeira vez que isso aconteceu até que, mais tarde, a própria rainha o lembrasse de que ele não era mais rei de lugar algum e que estar vivo àquela altura já era um imenso privilégio). A general, contudo, era educada o suficiente para não deixar que o clima tenso de sua entrada se mantivesse por muito tempo: sabendo que teria que conviver com a família real naquela casa por muito tempo, ela, uma vez dispersada a formalidade de sua chegada, fazia questão de adentrar qualquer conversa que estivesse em desenvolvimento na mesa. Frequentemente, conversava com as princesas e, segundo o jovem príncipe, parecia tão amiga do rei quanto às princesas eram dos soldados (uma afirmação que fez a rainha sofrer em silêncio quando fora feita, quase um mês antes). Levantar-se para recebê-la durante as refeições não passava de uma simples formalidade.
Geralmente, ninguém se levantava da mesa até que todos tivessem terminado de comer. Em condições normais, a rainha jamais deixaria que seus filhos o fizessem caso estivessem em um baile ou recebendo algum chefe de Estado no palácio real. Mas não estavam: apesar de todos os eufemismos naquela casa, todos eram prisioneiros. Por isso, a princesa Lara não se sentiu nem um pouco constrangida em pedir licença para os presentes, levantar-se e deixar a sala de jantar após apenas dez minutos desde a chegada da General Lyanna. Mesmo não desobedecendo nenhuma das regras de etiqueta ensinadas por seus pais (afinal, nem o rei nem a rainha haviam sido educados para saberem se portar no caso de serem feitos prisioneiros), a princesa evitou olhar diretamente nos rostos dos presentes. Enquanto caminhava para fora da sala, ela apenas rezou em silêncio para que ninguém a questionasse sobre o gesto.
Os soldados que faziam a guarda da parte interna da sala de jantar abriram a porta assim que a jovem princesa se colocou diante deles e, alegre por não ter sido barrada ou ter que se justificar, ela avançou pelo corredor e dobrou a direita, chegando à biblioteca. Naquela manhã, os raios de sol, ao bateram contra a neve caindo, proporcionavam um brilho opaco, mas claro o suficiente para que não fosse necessário acender qualquer forma de luz artificial no ambiente. E, como combinado, Edgar estava lá. Sentado em uma das luxuosas poltronas vermelhas da biblioteca, ele já mantinha um caderninho em suas mãos e um lápis.
─ Bom dia, professora ─ ele brincou, mas manteve uma expressão severa e atenta em seu rosto.
─ Bom dia ─ ela respondeu, tentando, inutilmente, manter a mesma postura séria do rapaz. ─ Meu Deus... ─ ela finalmente se rendeu a pressão da situação e riu enquanto se aproximava para ocupar a poltrona ao lado de Edgar. ─ Você vai ser o meu primeiro aluno, sabia? E isso significa que existe um risco absurdo de eu falhar.
─ Duvido ─ Edgar rebateu imediatamente. ─ Você é o tipo de pessoa que deve ser boa em tudo que faz, tenho certeza.
Lara finalmente sentou-se ao lado dele. Sem nem ao menos saber como começar a ensinar uma pessoa a ler, ela resolveu abrir qualquer livro para mostra-lhe cada uma das letras do alfabeto individualmente antes de começar a criar em sua cabeça a ideia de fonemas.
─ O quê? ─ Edgar perguntou assustado quando ela abriu um exemplar de "Orgulho e Preconceito" na pequena mesa redonda entre os dois. ─ Nós já vamos começar com um livro desse tamanho?
─ Não, seu bobo ─ ela riu. ─ Não vamos ler nada hoje. Eu só quero começar pelo começo.
Sob o vento frio de dezembro, a manhã passou velozmente. Edgar era um aluno dedicado. Ligeiramente disperso, mas com vontade de aprender. Lara não precisava repetir mais do que duas ou três vezes para que ele pudesse compreender as informações que ela lhe passava. O fato era que, diante das risadas dos dois, nenhum deles percebeu que, por volta do meio dia, estavam sendo vigiados pelo olhar curioso do rei.
PARTE II
─ Mandou me chamar, pai?
─ Sim ─ disse o rei, levantando-se da cadeira que ocupava na ampla sala e caminhando até a filha, parada embaixo da porta. Com um gesto cordial e com o simpático e sempre presente sorriso que apenas ele sabia dar, o homem indicou para que a filha adentrasse o local.
A princesa Lara, então, adentrou a sala em silêncio e com a cabeça baixa. Era a sala que, em outras épocas, seu pai usava como escritório quando a família real estava na casa de veraneio, fugindo das intermináveis tensões da capital. E, mesmo a situação sendo outra completamente diferente, a sala ainda conservava o ar sério e conservador de outrora de forma que a princesa mantinha todas as regras de etiqueta que aprendera ao longo da vida: apesar de ser seu pai, ele ainda era o rei. Um rei deposto, mas, mesmo assim, um rei.
─Sente-se ─ pediu ele enquanto voltava a se sentar na cadeira que ocupava antes da chegada da filha.
A princesa obedeceu e, por alguns segundos, olhou para os próprios pés, evitando, por respeito, encarar diretamente o pai. Percebendo que ele se mantinha em silêncio, a jovem arriscou levantar os olhos em sua direção e pôde vê-lo encarando-a com um misto de preocupação e curiosidade em suas feições.
─ Está tudo bem com você? ─ perguntou o rei.
Sem entender a natureza da pergunta, a princesa Lara respondeu que sim e o bigode do rei se dobrou para cima, indicando que ele estava sorrindo.
─ Precisa de alguma coisa? ─ ele perguntou para a filha novamente. ─ Alguma reclamação dos soldados ou de outros funcionários? Sabe que a general Lyanna nos deu liberdade suficiente para falarmos a ela tudo o que quisermos e que ela tem autoridade para providenciar quase qualquer coisa para garantir o nosso conforte e bem estar, não é? Se precisar de alguma coisa, deixe-me saber, sim?
─ Sim, senhor ─ Lara respondeu imediatamente.
Um breve e curto silêncio se seguiu antes de, por fim, o rei voltar a falar. E, dessa vez, a espinha da princesa congelou, pois, ao ouvir o pai, ela soube quais eram as intenções dele com aquela conversa.
─ E aquele soldado... Edgar... ─ começou o rei. ─ Eu notei que vocês passam bastante tempo juntos, que conversam bastante... Tem algo que queira me contar?
-Não, senhor ─ Lara baixou os olhos, evitando contanto visual com o pai.
─ Tem certeza disso, filha?
Havia um tom sério e preocupado na voz do rei. Mas, também, ternura.
─ Sim, senhor ─ foi a resposta.
O mais constrangedor era que, mesmo não olhando para o pai, a princesa Lara sabia que ele a observava. Mas é claro que ele a observava! O rei estava praticamente debruçado sobre a mesa de madeira. Seu rosto estava a apenas alguns centímetros do da jovem princesa.
─ Olhe pra mim, filha ─ ele pediu.
Envergonhada, ela não obedeceu.
─ Olhe pra mim, filha, por favor.
"Por favor". Não era o tipo de coisa que se esperava ouvir de um rei. Bem, pelo menos era assim que a princesa Lara pensava (e, talvez, esse era o tipo de mentalidade que fazia com que sua mãe ficasse grata pelo fato de a princesa Lara não ser a mais velha das filhas do rei e, por consequência, não ser a herdeira do trono). Mas, diante da voz terna do pai, a jovem reuniu coragem para encará-lo.
─ Que tipo de relação vocês dois têm? ─ questionou o rei pacientemente.
─ Edgar é meu amigo ─ a princesa Lara respondeu quase que imediatamente.
O rei encarou a filha por alguns segundos, esperando que ela completasse a frase. Diante do silêncio da princesa, o homem apenas recuou e voltou a se sentar.
─ Quem é você? ─ perguntou o rei, mas completou sua pergunta antes que a filha respondesse. – Me responda de forma completa.
─ Eu sou a princesa Lara da casa von Houten ─ ela respondeu. ─ Duquesa de Chantensbury.
-E quem sou eu? ─ quis saber o homem.
─ Você é o rei Phillipe II da casa von Houten ─ Lara respondeu-lhe. ─ Rei do Império Solar, imperador das Ilhas Coralinas e conde de Northenshire.
─ Quem é a general Lyanna? ─ o rei não lhe dava um único segundo de descanso.
─ Uma traidora do reino.
─ E o que ela está fazendo?
─ Mantendo todos nós presos até que os militares golpistas decidam o que fazer conosco.
Pela primeira vez em alguns instantes, houve um longo silêncio. Mas, sabendo onde o pai estava querendo chegar, Lara precisou se esforçar para impedir que uma lágrima não escorresse de seu olho esquerdo, apesar de sentir um imenso nó em sua garganta.
─ E quem é Edgar?
─ Um soldado a serviço da General Lyanna ─ Lara respondeu imediatamente.
─ Um soldado a serviço da General Lyanna ─ repetiu o rei. ─ Não importa o quão educados e simpáticos os soldados sejam conosco. Não importa o quão educados e simpáticos nós sejamos com eles. Nossa situação ainda é a mesma: nós somos prisioneiros e eles estão aqui com o único propósito de nos manter presos. E, infelizmente, não há uma perspectiva de mudança para essa situação à longo prazo mas, em algum momento, algo será feito. Nosso destino está sendo decidido e nosso tempo aqui é limitado. Essa troca de simpatia e educação entre nós e os soldados tem o único propósito de garantir que a nossa estadia aqui seja o menos desconfortável possível. Eu não sei quanto tempo nós vamos continuar presos aqui, mas concorda comigo que é melhor passar esse tempo com um pouco do estilo de vida com o qual estamos acostumados do que apodrecer nas celas da capital sem ver a luz do dia? ─ a princesa Lara fez que sim com a cabeça. ─ Eu não me importo se você gosta de conversar com esse tal Edgar e não me importo que esteja ensinando ele a ler. Mas nunca se esqueça de que ele não é seu amigo. Ele é um dos soldados que invadiu a nossa casa, tirou o nosso poder e destruiu o nosso país. Ele é o guarda e nós somos os guardados. Nenhum deles são nossos amigos. São todos nossos inimigos.
Ao ouvir essas palavras, a princesa Lara sentiu como se um punhal a tivesse perfurado pelas costas.
─ Então por que você é tão amigo da General Lyanna? ─ ela se atreveu a perguntar, em tom de desafio, ao lembrar das conversas calorosas e amigáveis que os dois tinham durante as refeições.
-A General Lyanna não é minha amiga ─ respondeu o rei. ─ Ela é minha inimiga. Mas não quer dizer que nós não podemos ser civilizados um com o outro, não é? Educação é algo independente de postura ideológica. Mesmo entre inimigos, deve haver respeito.
A princesa, então, baixou os olhos e permitiu que uma única lágrima escapasse de seu olho esquerdo. E ela já não se importava com o fato de o pai estar à sua frente. Se fosse a rainha, Lara sabia que seria repreendida. Mas o rei não era assim: apesar de duro e firme, era uma das pessoas mais compreensivas que a jovem princesa conhecia. E ele permitiu que ela tivesse aquele momento, respeitando o silêncio que ela não ousava quebrar.
***
─ Entre ─ a General Lyanna disse em um tom severo e firme, sem levantar os olhos dos papéis que lia, quando alguém bateu à sua porta.
Instantes depois, um rapaz de cabelos pretos e cacheados vestindo o uniforme cinza do Exército estava parado diante dele, com as mãos atrás do corpo e em uma postura pomposa que apenas um soldado inexperiente adotaria. Sabendo de todas as condições que haviam levado aquele rapaz a estar naquele lugar e naquele instante, a General Lyana não o repreendeu por isso. Aquele menino não era um soldado. Era um camponês. As circunstâncias haviam-no obrigado a se tornar alguém que ele não era (e, talvez, nunca desejara ser).
─ Mandou me chamar, general? ─ perguntou Edgar.
─ Sim ─ ela respondeu, finalmente levantando os olhos para encará-lo devidamente. – Sente-se. Você, saia e feche a porta.
Um soldado no interior da sala e parado ao lado da porta, (esse sim um soldado treinado e de alto escalão), responsável por fazer a segurança pessoal do General Lyanna, pareceu chocado ao ouvir a ordem para abandoná-la. Mas, mesmo assim, após um único instante de hesitação, obedeceu à ordem recebida sem questioná-la. Apenas quando a porta se fechou foi que a general Lyanna se dirigiu para Edgar.
─ Algo novo a reportar? ─ a general perguntou em tom severo, encarando-o de forma a mostrar, apenas com seu olhar, a superioridade de sua patente.
─ Não, senhora ─ ele respondeu imediatamente.
A mistura de surpresa na voz dele devido à pergunta com o seu sotaque interiorano apenas fez com que a general percebesse o tamanho na inocência do rapaz à sua frente. Era apenas um pobre coitado. Um camponês. Um simples camponês. Jamais um soldado. Onde estava com a cabeça quando resolveu recrutar esse tipo de gente para o exército revolucionário? Não que ele fosse um inútil pelo fato de ser camponês. Não... Mas era uma verdadeira monstruosidade acabar com aquela inocência toda em nome de uma causa. Em nome da causa de outros. Mas o que estava feito não podia ser desfeito.
─ E quanto às suas interações com a princesa Lara? ─ a general Lyana questionou-lhe, mantendo o tom de voz severo e se esforçando ao máximo para evitar transparecer que ele estava destruída por dentro por ter mudado tão drasticamente a vida dele (e, com certeza, de outros jovens em situação tão semelhante e sem sequer saber se tinha mudado pra melhor). ─ Algo a reportar?
Nesse instante, um largo sorriso surgiu no rosto de Edgar. Animado, ele lhe respondeu:
─ Ela está me ensinando a ler! Começamos ontem e...
"O que foi que eu fiz?", pensou a general. O rapaz não pertencia àquele meio. Mal conseguia manter a postura militar adequada por alguns raros minutos antes de deixar aflorar seus verdadeiros trejeitos. Edgar nascera no campo e merecia morrer no campo. E a general Lyanna tinha total consciência de fora ela quem o retirara da terra, do seio da família e de sua vida. Ela o condenara a uma vida que não era para ele.
─ Fico feliz ─ a general sorriu para ele em uma tentativa quase falha de não lhe pedir desculpas por ter arruinado sua vida e seu futuro ao recrutar-lhe para a luta armada. – Bem, eu só queria lhe passar algumas informações, Edgar. Sabe, faz parte das minhas funções escrever relatórios aos meus superiores sobre a dinâmica dentro dessa casa e alguns deles não estão gostando dessa sua proximidade com a princesa ─ ela mentiu (jamais teria coragem de falar que era ela que não estava gostando; caso contrário, não conseguiria não se desculpar). – Então, eles me pediram para conversar com você para ter certeza de que você lembra o porquê de estar aqui e quais são os nossos objetivos.
─ Sim, senhora ─ diante das palavras da general, Edgar abandonou a postura descontraída que adotara segundos antes de voltou a usar um tom de voz sério que, de forma alguma, condizia com sua personalidade.
A General Lyanna, então, arrumou-se em sua cadeira e curvou-se sobre a mesa, juntando as mãos e encarando Edgar com seriedade com o único olho que ainda lhe restava.
─ Por que está aqui? ─ ela perguntou.
─ Para restaurar a dignidade e a glória do povo, trazer justiça aos oprimidos e resgatar os valores fundadores e sustentadores de nossa nação – foi a resposta.
Era o que a general temia: Edgar não fazia a menor ideia do que fazia ali. Aquela era apenas uma resposta decorada durante o rápido treinamento que os novos soldados tiveram antes do Dia Vermelho, o nome dado ao dia em que o palácio fora invadido, o rei fora deposto e a família real, aprisionada. A resposta pronta e direta de Edgar era a prova de que o Exército tinha mecanismos muito eficientes de manipular e controlar mentes, mesmo a curto prazo.
─ Muito bem ─ disse a general. ─ Mas agora, eu quero que me responda com as suas palavras. E quero que seja sincero. Tudo bem? ─ Edgar fez que sim com a cabeça. ─ Você quer estar aqui?
─ Sim ─ ele respondeu.
─ Por quê?
-Porque eu estou fazendo um bem para o país, não é? – ele indagou e, mais uma vez, provou que era apenas um rapaz inocente. – Tirar o rei do poder e colocar pessoas que se importem de verdade com a gente.
"Com a gente". Pronto. Essa era a prova cabal de que ele estava no lugar errado. Todos os militares que se ofereceram para iniciar a revolta e derrubar o rei haviam feito isso objetivando vantagens políticas e econômicas, mas, para garantir apoio popular quando a hora chegasse, haviam dito que estavam derrubando a dinastia von Houten do trono com o objetivo de trazer melhorias sociais e devolver dignidade a um povo oprimido por altos impostos e leis que não os protegiam. Mas Edgar não: Edgar acreditava em toda essa besteira de devolução de dignidade e melhorias sociais. E a prova era essas três palavras. "Com a gente". Edgar se inclui entre o povo. Ele era a massa enganada para causar a transformação que não ia cair sobre ela. Pobres continuariam em suas longas e exaustivas jornadas de trabalho, burgueses continuariam a retirar cada centavo deles. Nada iria mudar. Mas, para Edgar, iria sim. Porque ele estava ali, naquela casa, visando um amanhã melhor. Um amanhã utópico onde houvesse justiça. Mal sabia ele que a justiça era um mito. Um folclore inventado com o único objetivo de causar mudanças superficiais, apenas trocando um poderoso pelo outro. Apesar de ser uma mulher estudada, foi apenas nesse momento que a general Lyanna percebeu o verdadeiro significado por trás do conceito de "massa de manobra".
─ E por que você acha que o rei não se importava com a gente? – a general perguntou, sentindo-se secretamente envergonhada ao se incluir no mesmo patamar social que Edgar sem poder lhe contar a terrível, imutável e invencível verdade.
─ Ora, ele não se importa, não é? ─ Edgar rebateu. – Na vila onde eu morava, eu já vi sete crianças morrerem de fome. Meu irmão mais novo era um deles. Se o rei se importasse, não acho que ele deixaria isso acontecer, não é?
"Não, não deixaria", a general pensou, lembrando-se dos luxuosos jantares no palácio imperial dos quais ela participara no passado. Pessoas rindo, dançando bebendo e comendo até se fartarem enquanto crianças morriam de inanição em algum lugar do país. Não, o rei não merecia o trono. Nem o rei, nem a general, nem os militares que compunham a junta provisória ou qualquer um dos políticos envolvidos na revolução. Talvez, o trono deveria ser ocupado por alguém com a simplicidade e a inocência de Edgar. Porque, para pessoas assim, tudo era tão fácil. Tão simples. Tão puro... Mas, infelizmente, essa pureza seria corrompida rapidamente: o poder é venenoso e ludibria até a mais forte e pura das mentes. O momento histórico que viviam era apenas mais uma etapa de um ciclo vicioso que jamais terminaria: pessoas que (mentindo) afirmavam-se dignas de substituir um governante corrupto e ineficaz assumiam o poder e apodreceriam com os anos até que outros idealistas a tirassem de lá.
─ Então, pra você, o rei é um inimigo?
─ Sim ─ respondeu Edgar.
─ E a princesa Lara? Ela é uma inimiga?
─ Não! ─ Edgar pareceu indignado com a pergunta. ─ Ela não tem culpa dos erros do pai dela. Ela não tem culpa de ser filha dele.
─ Entendo ─ concluiu a General Lyanna. ─ Bem, fico feliz que tivemos essa conversa. Você pode retornar para as suas funções.
Imediatamente, Edgar se levantou e, voltando a assumir uma postura séria (tão não-natural para ele), deu às costas para a general. Ele estava quase chegando à porta do escritório quando a voz da General Lyanna ecoou pelo ambiente novamente.
─ Quantos homens você matou no Dia Vermelho? ─ ela perguntou.
Edgar, então, virou-se e olhou nos olhos dela para responder.
─ Sete, senhora.
─ Excelente ─ a general fingiu um sorriso. ─ Pode ir agora.
No mesmo instante, Edgar virou-se, girou a maçaneta e lançou-se ao corredor no exato instante em que o segurança pessoal da General Lyanna voltou a adentrar o escritório. Sem dizer nada, ele voltou a ocupar sua posição no canto do cômodo enquanto a general manteve-se em sua cadeira, pensativa.
Não... Edgar não era mais tão inocente quanto ela achava. Parte de toda a sua inocência havia morrido junto com aqueles sete homens no Dia Vermelho. Querendo ou não (mas achando ser um monstro por isso), a General Lyanna havia transformado o rapaz. Talvez, houvesse um pouco de soldado dentro dele, afinal...
PARTE III
Qualquer membro da família real tinha total liberdade para andar livremente pelo interior da imensa e luxuosa casa onde (apesar das aparências) eram mantidos prisioneiros até que o novo governo decidisse o seu futuro. Entretanto, para andar pelos terrenos nos arredores da casa, era necessário a companhia de um dos oficiais presentes. Sendo Edgar, para todos os efeitos, um soldado e diante do incômodo demonstrado pelo rei e pela General Lyanna com a proximidade do rapaz e da princesa, os dois jovens viram nessa regra a oportunidade perfeita para se afastarem de tudo e de todos.
Na manhã ao encontro da princesa com seu pai, ela e Edgar saíram juntos da casa sem serem vistos pelos outros oficiais. Estando a grande casa em uma clareira localizada no alto de uma colina, qualquer ponto de seu jardim oferecia uma vista completa da floresta que circundava o local. E, ali, os dois descobriram o lugar perfeito para desenvolverem seus estudos. Durante vários dias, uma grande pedra no jardim serviu-lhes de apoio para livros e cadernos enquanto a camada de neve revelava-se um assento confortável. Em uma manhã em particular, devido à pouca quantidade de neve que caia e à luminosidade permitida pela quase completa ausência de nuvens, era possível, inclusive, ver a fumaça produzida pelas casas de um vilarejo próximo, na orla oposta da floresta.
─ Ex... Exe...
─ "Execrável" ─ disse Lara, ajudando Edgar a prosseguir com a leitura do livro que tinha em mão. ─ Agora leia a frase de novo.
─ "Jamais poderei concordar com algo tão vil e execrável" ─ repetiu Edgar, com uma certa dificuldade após um tempo.
─ Viu? ─ Lara lhe sorriu alegremente. ─ Você está progredindo rápido! Tenho certeza que logo vai se tornar um excelente leitor. Você só precisa de treino e, principalmente, de tempo.
Tempo. Imediatamente, Lara se calou. Sim, Edgar teria todo o tempo do mundo. Dias, semanas, anos, décadas. Mais cedo ou mais tarde, a prática faria dele um leitor. Mas ela...?
─ Mas você vai precisar arranjar outra pessoa pra te ajudar ─ ela completou. ─ A general Lyanna gosta de você. Acho que ela gostaria de fazer isso.
─ O que quer dizer? ─ Edgar levantou os olhos do livro em suas mãos e olhou para a princesa.
Lara e o soldado se encararam por um rápido instante. Ela, por fim, suspirou e disse:
─ Por mais que eu não concorde com as coisas que meu pai disse sobre você, ele tem razão em uma coisa. O meu tempo aqui é limitado. Não acredito que vá demorar muito mais tempo até que o novo governo decida o que fazer comigo e com a minha família. Talvez, sejamos levados para uma prisão na capital ou, talvez...
─ Não! ─ Edgar a interrompeu quando percebeu aonde ela estava querendo chegar. – Nem pense em uma coisa dessas! Eu jamais deixaria alguém encostar as mãos em você! Nunca!
Havia um brilho estranho nos olhos do rapaz. Um brilho de fúria. Um brilho tão quente que, por alguns instantes, a princesa Lara se esqueceu do frio proveniente da neve ao seu redor. Um brilho de determinação. Um brilho que fez os pelos em sua nuca se eriçarem temporariamente por lembrar-lhe dos olhos marcados pelo ódio dos soldados que a visitavam em sonho todas as vezes que ela revivia o Dia Vermelho.
─ E ser julgado como traidor? ─ confrontou-lhe Lara. ─ E ser executado?
Apesar do tom de voz suave da princesa, isso foi suficiente para calar Edgar e o fez baixar a cabeça. Lara tinha razão: independente de qual fosse a decisão que a junta militar tomasse sobre o destino da família real, Edgar não tinha autoridade e poder para sequer tentar fazer alguma coisa.
─ Se for preciso ─ ele disse, por fim, voltando a olhar para ela.
A resposta fez a princesa recuar por um instante. O que Edgar estaria dizendo com aquilo? Se opor a uma decisão oficial era imprudente. Tentar impedi-la seria suicídio.
-Por quê? ─ ela resumiu todas as suas dúvidas nessas duas palavras.
─ Porque eu não consigo imaginar viver em um mundo em que eu não possa ver os seus olhos todos os dias ─ a resposta foi imediata.
E então, no exato instante em que os lábios de Edgar tocaram os da princesa, em alguma sala dentro da grande casa de veraneio da família real, a general Lyanna deixou cair a carta em suas mãos e as levou à boca para abafar o gemido de surpresa e decepção.
***
Era madrugada. Todos os soldados haviam sido retirados de suas camas e nenhum deles fazia a menor ideia do porquê haviam sido instruídos a vestirem suas fardas e irem em completo e total silêncio até a sala da general Lyanna. Obviamente, a discrição que lhes fora ordenada tinha um único motivo: nenhum dos membros da família real poderia saber que aquela reunião estava acontecendo. O sigilo de seus eventos era imprescindível.
A General Lyanna não estava na sala quando os soldados adentraram o local. Quando ela, finalmente, fez-se presente, ela ostentava um semblante muito diferente do habitual: parecia cansada e com olheiras. Nem de longe se assemelhava à mulher forte e autoritária que comandava aquele lugar com tanta eficiência. A general passou pelos seus subordinados (que haviam batido continência no exato momento em que ela surgiu) e sentou-se na cadeira que geralmente ocupava. Apenas quando ela disse "Descansar" foi que os soldados assumiram uma posição ereta, porém séria, enquanto olhava para frente.
─ Viktor, feche a porta ─ ela ordenou e um dos soldados ao fundo retirou-se de sua posição para obedecê-la.
O silêncio que se seguiu durou alguns segundos. Por fim, a general retirou uma carta do bolso de suas vestes e leu:
"Por ordem da Comissão Social Investigativa, é assumida como verdadeira, nesse dia dezenove de dezembro, a culpa do rei Phillipe II em crimes de ordem social e financeira, à saber: desvio de dinheiro público para fins particulares, assassinato de manifestantes, irresponsabilidade social e traição à bandeira. Como pena a esses crimes, a Junta Militar Provisória decreta a execução imediata do rei e de qualquer membro da família von Houten ainda vivo na esperança de que essas mortes tragam a tão necessária vingança clamada pelo povo injustiçado e, por anos, oprimido e iniciem um tempo de justiça e confiança de que as instituições públicas possam fazer a nação prosperar."
Imediatamente, ela dobrou a carta e colocou-a sobre a mesa antes de olhar para seus soldados, sujos rostos expressavam medo, tristeza, choque e espanto. Soldados... Nenhum deles era, de verdade, um soldado... Camponeses, pescadores, marceneiros, artesãos... Botaram-lhe rifles nas mãos e deram-lhes uma farda e uma patente. Mas isso nunca faria deles os soldados que os militares de verdade lhes diziam que eles eram.
─ A carta é bem maior ─ começou a general Lyanna. ─ E, acreditem, eu estou tão chocada quanto vocês. Mas isso é uma ordem e nós devemos cumpri-la, independentemente do que julgamos certo ou errado. O que quero discutir aqui se resume a uma pergunta. Quem vai puxar o gatilho?
Nenhum voluntário. Claro... Estavam todos em choque. Afinal, durante os meses em que a família real foram mantida em cativeiro, todos os soldados desenvolveram alguma forma de afeto por algum dos membros da família von Houten. Até mesmo a General Lyanna se afeiçoara ao rei e à rainha, mesmo sabendo que, nas posições que ocupavam, eles não passavam de inimigos. E foi exatamente por esse motivo que ela não se ofereceu para puxar o gatilho. Não conseguiria. Sabia que não conseguiria. Não via problema em matar pessoas. Ao longo de sua vida, ela matara homens, mulheres e crianças. Mas eram todos homens, mulheres e crianças. Sem nome, sem voz, sem sonhos, sem medos, sem alegrias, sem prazeres. Eram apenas alvos para aos quais, ela apontava o seu rifle e puxava o gatilho. Mas, mesmo assim, eram alvos cujos gritos iriam atormentá-la em pesadelos pelo resto da vida. Agora, matar o rei, a rainha, o príncipe ou qualquer uma das princesas seria ainda pior. Porque eles tinham voz, sonhos, medos, alegrias e prazeres. Ela fez refeições com eles, conversou com ele, riu com eles... Ela e qualquer um dos soldados à sua frente. Ninguém ali teria coragem de puxar o gatilho.
─ Foi o que pensei ─ disse a general. ─ Por esse motivo, eu tomei a liberdade de pedir que a capital enviasse soldados para cá para realizarem a execução. Chegarão amanhã de manhã. Quando estiverem aqui, encurralaremos a família real no porão. Vamos lhes dizer que manifestantes querem invadir a casa para mata-los de uma vez e que, por medida de segurança, eles devem permanecer no porão até que a situação seja resolvida. Nós vamos dar passagem para os soldados até o porão e, quando a execução for feita, nós iremos enterrar os corpos em uma vala na orla da floresta. Alguma pergunta?
Alguma pergunta? Claro que havia perguntas! A própria general Lyanna tinha centenas de perguntas a fazer aos seus superiores. Contudo, diante do choque nos rostos dos soldados, houve apenas silencia. Não querendo prolongar o sofrimento que tudo aquilo estava lhe causando, a general apenas lhes dispensou.
─ Edgar ─ ela chamou.
Da multidão que ser retirava da sala, um jovem deu meia volta e se dirigiu até a mesa da general. Estava com o rosto vermelho e os olhos encharcados em lágrimas.
─ Sente-se ─ pediu a general Lyanna. Partia-lhe o coração vê-lo daquela forma.
Obediente, Edgar se sentou na cadeira do outro lado da mesa no exato momento em que a general Lyana levantou-se e contornou a mesa, parando ao seu lado.
─ Você não precisa mentir pra mim ─ ela disse com um tom de voz maternal e calmo. ─ Eu sei o que sente pela princesa Lara e sei sobre vocês dois. Não se preocupe, não vou te punir por um beijo – ela acrescentou rapidamente quando ele a olhou surpreso. ─ Mas vou precisar te punir por outras coisas. Coisas que você ainda não fez, mas vai fazer se tiver a oportunidade. Sabe, Edgar, tentar impedir uma determinação da Junta Militar Provisória é considerado crime à bandeira e obstrução de justiça, e isso é punido com execução.
O espanto no olhar do rapaz era ainda maior.
-Eu gosto de você, Edgar ─ ela continuou. ─ Amo você quase como um filho. E é por isso que é meu dever impedir que você cometa alguma atitude irresponsável. Se eu precisar ordenar a sua execução por traição, eu vou. Mas eu não quero fazer isso. Você entende?
Em pânico, o rapaz não conseguiu dizer nada e nem sequer balançar a cabeça enquanto olhava no único olho da mulher ao seu lado. Não conseguia nem mesmo se levantar da cadeira. Imediata e sorrateiramente, a General Lyanna agarrou o peso de papel ao seu lado na mesa.
-Espero que me perdoe por isso ─ ela disse. ─ É para o seu próprio bem. Mas eu não posso deixar que você os ajude. Eu lamento, Edgar.
O rapaz não teve tempo de reagir. Antes que conseguisse se levantar, a general Lyanna desferiu seu golpe e o peso de papel o atingiu na lateral da cabeça. Ele desmontou imediatamente e seu corpo se chocou com o piso de madeira produzindo um baque surdo.
─ Claudius ─ ela chamou o seu segurança pessoal que ficava do lado de fora da sala. ─ Leve ele para um dos quartos. Trate do ferimento na cabeça, amarre ele à cama e coloque uma mordaça em sua boca.
─ Sim, senhora ─ disse o soldado enquanto, de forma ágil, colocava o corpo inconsciente de Edgar sobre suas costas.
Na manhã seguinte, quando a família real estivesse morta, a general Lyanna iria soltar Edgar. Assim, se ele quisesse, poderia ajudar a enterrar os corpos. Mas, de forma alguma, ela poderia deixar que Edgar atrapalhasse a execução. Doía-lhe o peto ter que tomar esse tipo de atitude, mas ela conhecia jovens inocentes e volúveis como ele: aproveitaria a primeira oportunidade para tentar impedir a ação. E ela não poderia livrá-lo das penalidades que isso implicaria.
PARTE IV
Todos (ou quase todos, pelo menos) os membros da família real pensaram que a general Lyanna deveria estar doente. Sim, era fato que aquela era, possivelmente, a manhã mais fria de dezembro até então. Mas, até onde a princesa Lara sabia, isso deveria proporcionar um aumento da fome. A general, contudo, mal tocara a comida em seu prato durante o café da manhã. E, diferentemente da mulher que se apresentava à mesa todos os dias, ela parecia fazer questão de se manter em silêncio.
A princesa Lara estava quase terminando de comer quando um soldado chamou a general. Ela pediu desculpas e se levantou da mesa abandonando a sala. Quando retornou, sua fisionomia estava completamente alterada: o semblante apático havia sido substituído por uma expressão de preocupação e ansiedade.
─ Venham comigo ─ ela disse de forma afobada. ─ É urgente.
Vendo o pânico na voz e nos gestos descoordenados da general, todos os membros da família real se levantaram e a seguiram para fora da sala. Enquanto caminhavam pelo corredor, sendo escoltados por quatro soldados, os membros da família real foram informados pela general da presença de populares que tentavam adentrar a casa de veraneio.
─ Não se preocupem ─ disse a general ao rei conforme as princesas adentravam o porão. ─ Já estamos trabalhando na contenção dos manifestantes. Vocês não têm com o que se preocuparem. Mas, por medida de segurança, eu preciso insistir que permaneçam no porão até a situação estar controlada,
Grato pela consideração, o rei assentiu com a cabeça e seguiu pela porta, descendo a escada de madeira em direção ao escuro porão da casa de veraneio. Quando a porta se fechou, a General Lyanna precisou usar de todo o seu autocontrole para impedir que uma lágrima escorresse de seus olhos na frente de seus soldados. Apesar de ter sido ela quem idealizara aquele plano, sua vontade naquele momento era abrir o porão e ajudar a família real a fugir. Mas não podia. Aquela revolução começara muitos meses antes e a General Lyanna sabia porque havia aderido ao movimento. Não era hora para hesitar. Não podia hesitar.
Com o queixo erguido e uma expressão de fúria e confiança gravada em seu rosto, mascarando os sentimentos que o convívio com a família real fizeram aflorar, a mulher caminhou até o hall da casa de veraneio. Lá, um homem com uma farda repleta de medalhas estava à frente de dez soldados, cada um carregando seus fuzis. Soldados que ela nunca vira na vida. Soldados que não obedeciam às suas ordens.
─ Eles estão no porão, General Hoyer – disse a mulher ao homem à sua frente.
Ele não respondeu. Apenas fez sinal para que seus homens o seguissem, avançando para o interior da mansão. Quando o hall, por fim, foi esvaziado, um dos soldados sob o comando da General Lyanna se aproximou dela com uma expressão de tristeza em seu rosto que ele não conseguia esconder por mais que tentasse.
─ A vala já foi cavada, senhora ─ disse ele.
─ Excelente – foi a única coisa que ela conseguiu responder.
O nó em sua garganta, contudo, era tamanho que ela a palavra saiu quase como um sussurro.
***
O som dos tiros ecoou pela casa de veraneio por alguns rápidos e poucos segundos. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze... Doze tiros. E, então, houve o silêncio. Um silêncio mórbido e cruel. Um silêncio agourento que parecia mais pesado que o pior dos sentimentos. Um silêncio que transformava em trevas até mesmo a intensa luz do sol que era refletida por todos os lados pela grossa camada de neve que se acumulava no lado de fora.
Da cama à qual estava amarrado e amordaçado, Edgar apenas conseguiu urrar e se debater. Mas, por mais que tentasse, não conseguiu se soltar. Ele não tinha escolha... Tão bem amarrado, ele jamais teria como fazer alguma coisa para ajudar a família real a fugir de seu inevitável destino. Mas, mesmo assim, mesmo com as mãos (literalmente) atadas, ele não conseguia sentir nada além de um remorso maior do que ele jamais sentira ao longo de toda a sua breve vida. Um remorso que consumia cada fibra do seu corpo.
"Retirem os corpos do porão levem-nos para a vala", ele ouviu, do lado de fora do quarto, a General Lyanna proferir a ordem. "Mas ninguém encosta-se ao corpo da princesa Lara. Eu fui clara?"
Um eco de "Sim, senhora" chegou aos ouvidos do soldado amarrado e, em seguida, ele pode escutar o som de passos caminhando pelo piso de madeira. Instantes depois, a porta do quarto onde estava se abriu e ele pôde ver a general Lyanna há poucos metros dele.
Quando a mulher fechou a porta, ela se apoiou na madeira e fechou o seu único olho. Nesse momento, Edgar jurou ter visto uma lágrima escorrer pela sua bochecha. Uma lágrima que ela, rapidamente, enxugou com a manga de sua farda. A General Lyanna se aproximou da cama e retirou a mordaça da boca de Edgar.
─ Como está a sua cabeça? – ela perguntou.
─ Você os matou...
─ Você sabe que eu não tive escolha – a general respondeu na defensiva. – Nenhum de nós tinha. E não seja inocente! – ela rebateu quando Edgar ameaçou começar a falar. – Você aceitou luar por essa causa com um objetivo. Você sabia como terminaria quando aceitou participar disso. Sabia que era só uma questão de tempo!
Os dois se encararam por alguns segundos. No rosto de Edgar, havia uma expressão mista de raiva e culpa que a general Lyanna entendia perfeitamente.
─ Você pode ver o corpo se quiser – ela disse. – Eu só peço que leve até vala comum depois.
Do cinto, a mulher retirou um punhal e cortou as amarras que prendiam o jovem à cama.
Em um caminhar poderoso, a general Lyanna conduziu o rapaz para fora do quarto e, então, em direção ao porão. Quando lá chegaram, a porta estava aberta.
─ Você tem o tempo que precisar. Um soldado na sala vai te instruir quanto à localização da vala comum – disse a mulher e, então, virou-se, desaparecendo na curva de uma porta adiante.
Edgar sabia o tipo de cena que esperava por ele no fim da escada, mas tinha certeza que não estava preparado para ver. Nem em um milhão de anos ele conseguiria se preparar para o que estava ali. Assim, ele engoliu em seco quando desceu o primeiro degrau. Estava quase no fim da escada quando precisou levar a mão à boca para evitar vomitar: as paredes estavam todas manchadas de sangue e as pérolas do colar da rainha estavam espalhadas pelo piso igualmente ensanguentado.
E, em um dos cantos da sala, virado de costas para a escada, estava o corpo sem vida da princesa Lara. Uma boa parte do vestido azul-celeste assumira uma coloração arroxeada devido à extensa mancha de sangue que havia se formado sobre o tecido. Era uma cena grotesca e, ao mesmo tempo, horripilante. Com uma lágrima escorrendo de seus olhos, Edgar caminhou até o cadáver, mal conseguindo ouvir o ranger do piso de madeira enquanto pisava. Incapaz de respirar, ele se ajoelhou e levou a mão ao rosto da moça.
No momento em que seu dedo tocou a bochecha da princesa, Edgar viu-a se contrair por um rápido instante. Estava viva! Não era possível... Era completamente impensável... Era surreal...
─ Lara? – ele sussurrou. – Sou eu... Edgar...
─ Mate-me, por favor – ela disse, sem abrir os olhos marejados. – Acabe com isso logo...
─ Eu... Eu não posso – ele disse. – Não consigo...
─ Então é assim? – a princesa rebateu em um tom firme. – Você não faz anda para impedir isso e ainda vai me deixar morrer nas mãos deles? Mate-me logo, seu covarde, enquanto eu ainda tenho um pouco de dignidade...
Ah, sim... Ela estava furiosa com ele. Da mesma forma que Edgar se culpava por não ter feito nada para impedir a execução (mesmo sendo impossível fazer alguma coisa), a princesa também o culpava. Naquele momento, mais do que nunca, foi que Edgar percebeu que aquilo sempre fora um trabalho. Vigiar a família real era uma tarefa dada à General Lyanna e aos soldados. O Exército e a família real eram polos extremos de uma longa discussão e Edgar e Lara eram representantes desses polos. Os dois, mesmo que não quisessem, estavam em lados opostos de uma guerra.
─ Não ─ disse Edgar, enxugando as suas lágrimas. ─ Eu vou te ajudar a fugir. Consegue se levantar?
─ Não encoste em mim! ─ a princesa bradou furiosa quando ele fez menção de ajudá-la.
Sozinha, ela se colocou em pé com alguma dificuldade. Por milagre, parecia ter tomado apenas um tiro de raspão na lateral do corpo e na perna. O sangue em suas roupas não era dela, mas de um de seus pais ou de um de seus irmãos.
─ Fique aqui ─ Edgar a instruiu e subiu correndo as escadas. No alto do último degrau, ele olhou para o corredor e constatou que o local estava vazio. – Venha.
Lentamente para evitar que seus passos ao subir as escadas a denunciassem, a princesa obedeceu a ordem. Edgar avançou até o fim do corredor e, constatando a ausência de pessoas na sala, fez um sinal com a mão para que Lara se aproximasse.
Caminhando com dificuldade devido ao tiro na perna, a princesa se apoiava na parede, deixando marcas de sangue no formato de sua mão.
***
Os corpos dos membros da família real foram enrolados em lençóis brancos e jogados em uma vala comum, cavada alguns metros adentro da floresta. No local, já se encontravam os corpos do rei, da rainha, das princesas e do príncipe. Mas ainda faltava um.
─ Onde está Edgar com o último corpo? – perguntou Claudius. – Ele está demorando demais.
─ Eu mesma vou verificar isso – disse a general Lyanna, dando meia volta. – Preciso de dois soldados para me ajudar a levar o corpo se Edgar não estiver em condições para isso.
Prontamente, dois rapazes se destacaram do aglomerado de soldados e acompanharam a general em direção à orla da floresta e, em seguida, em direção à grande casa de veraneio da família real. Estavam na metade do caminho quando o som de um tiro ecoou pelo ar.
A general e os soldados correram o mais velozmente que a camada de neve no chão lhes permitiu até chegarem ao interior da casa. Com o revólver em mãos, os três avançaram até o porão e um dos soldados que acompanhavam a mulher desceu os degraus.
─ Não estão aqui – anunciou quando retornou ao corredor.
─ General, acho que vai querer dar uma olhada nisso – disse o outro soldado.
A General Lyanna, então, desviou a sua atenção para ele, olhando para o que ele apontava: uma mancha de sangue na parede em forma de mão. Mas não era a marca de uma mão masculina. Era pequena e delicada... Do tamanho da mão de uma adolescente... Olhando adiante, a general observou várias marcas como essa na parede. Marcas que ficavam cada vez mais fracas conforme o corredor avançava em direção à sala.
A general e seus soldados correram pela extensão do corredor. Na sala, o soldado que deveria instruir Edgar quanto à localização da vala comum estava caído sobre o tapete. Um buraco escuro sobre a testa manchada de vermelho era a prova cabal de que fora assassinado.
─ Edgar... – sussurrou a general conforme sua mente chegava à conclusão do que havia acontecido.
***
─ Aqui... – disse Edgar ofegante quando chegaram à orla da floresta. Atrás deles, a neve estava tingida de vermelho. Uma trilha que levaria os soldados até eles. – Siga reto por aqui – ele instruiu a princesa. – Esse é um trecho curto da floresta. Devem ser seis ou sete quilómetros até você chegar a uma vila. Peça ajuda.
A princesa, ensanguentada, tremia de frio. Talvez, as baixas temperaturas iriam matá-la antes que conseguisse chegar à tal vila.
─ Existem lobos e ursos na floresta – Edgar continuou, entregando-lhe o revólver em sua mão.
A princesa Lara soube o que estava acontecendo: Edgar não iria com ela.
─ Você não vem...? – ela sussurrou.
─ Não – a resposta foi imediata. – Se eu ficar poderei atrasá-los. E você vai ter uma chance maior de sobreviver. Agora, vá... Vá!
A princesa jamais segurara um revólver em toda a sua vida. O peso do objeto era tamanho que ela mal conseguia se mover, principalmente devido à sua perna ferida. Mas precisava tentar...
A jovem o encarou por alguns rápidos segundos. Havia tanto a ser dito... Tanto a ser expressado. Mas não tinham esse luxo. Naquele momento, sob a nuvem da chacina de sua família, a princesa apenas conseguia odiar Edgar com todas as suas forças. Mas a tentativa dele em ajudá-la a fugir fazia com que ela se lembrasse do amor que sentia pelo rapaz. Tudo isso, contudo, jamais poderia ser dito.
─ Adeus, Edgar – ela disse, por fim.
A princesa Lara deu-lhe as costas e, instantes depois, desapareceu por entre as árvores.
***
─ Ali! – gritou um dos soldados.
A trilha vermelha sobre a neve conduziu a general Lyana até a orla da floresta, onde Edgar parecia esperar por ela. Assim que atingiram o rapaz, ele se jogou sobre um dos soldados, impedindo-o de continuar. O soco de Edgar arrancou dois dentes de seu adversário, que recuou. Retirando o punhal de seu cinto, Edgar brandiu-o sobre a cabeça, mas, antes que pudesse desferir o seu golpe, o segundo soldado puxou o gatilho de seu revólver e a bala foi enterrada na coxa do antigo camponês, que caiu sobre a neve com um urro de dor.
─ Vá atrás dela – ordenou a General Lyanna para o soldado que atirara em Edgar e, sem hesitar, ele correu para o interior da floresta.
A general e Edgar se encararam por alguns instantes e uma nova lágrima se formou no rosto da mulher. Mas, dessa vez, ela não fez questão alguma de enxuga-la para impedir que o rapaz ou o outro soldado vissem que ela estava chorando.
─ Ah, Edgar... – ela disse. – Eu tentei te avisar... Eu tentei te proteger...
Edgar sabia o que estava para acontecer. Sabia que aconteceria no momento em que decidiu tirar a princesa Lara daquele porão.
─ Me desculpe, Edgar – ela parecia prestes a chorar. – Mas você não me deixa escolha... Pela autoridade a mim concedida pela Junta Militar Provisória, eu te sentencio à morte pelos crimes de lesa pátria, traição à bandeira e obstrução de justiça.
Incapaz de olhar nos olhos do jovem, a General Lyanna deu meia volta no momento em que ouviu o soldado ao seu lado engatilhar a arma. Em nenhum momento, Edgar protestou ou tentou convencê-la e revogar sua decisão. Ele parecia aceitar com certa frieza o seu destino.
A General Lyanna havia dado apenas quatro passos para longe de Edgar quando ouviu o som do disparo. E apenas nesse momento foi que ela se permitiu enxugar as lágrimas que, acumulando-se em seu rosto, começavam a congelar.
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