CAPÍTULO TRÊS - FESTA
"Eu também acho você bonitinho, Nicholas"
E lá se foi todo o meu esforço mental que durou exatos cinco minutos até ele destruir tudo com uma frase de seis palavras. Seria sempre assim? Eu precisava sair de perto dele urgentemente então, pois não sabia até quando manteria minha sanidade mental, que já havia sofrido muitos danos desde que cruzei com ele.
Engoli a seco a provocação, tentando conter o sorrisinho estúpido que insistia em aparecer em meus lábios. Agarrei meu celular e me afastei dele o tão rápido quanto pude, enquanto ele ainda estava na cama, me fitando como se quisesse descobrir o que passava em minha cabeça, ou melhor, jogando com minha confusão, me colocando naquela posição acuada:
- Vamos? - desviei de seu olhar perfurante como um cristão de diamante não lapidado.
Estava decidido a me manter distante dele, o único problema é que estávamos dividindo o carro novamente a caminho da festa, com seus olhares insinuantes sobre mim. A música alta me fazia sentir ainda mais confinado em uma lata, como se as ondas sonoras reduzissem o espaço para nós dois dentro do carro, o ar que passava pelos meus pulmões fosse o mesmo nos dele e, de certa forma, estivéssemos conectados por isso: um fluxo invisível de pensamentos perturbadores sendo carregados pelo ar.
Quando parei o carro no estacionamento da boate, tudo em mim dizia para desistir daquela ideia maluca, ainda que em cima da hora. Gabriel provavelmente tinha amigos ali que poderiam o acompanhar até em casa, mas eu não tinha confiança suficiente em mim para me levar até o interior da boate, com todas as tentações tão próximas. Já não tinha mais certeza de nada. E mesmo assim sai relutante do automóvel, sendo quase arrastado para dentro por um Gabriel impaciente que só queria uma noitada com um desconhecido que lhe emprestara roupas.
Ele segurou minha mão como um pai levando seu filho a força para uma consulta ao dentista. Não havia nada inusual ou romântico no gesto, mas então por que meus pelos se arrepiaram daquela forma? Por que de repente minhas pernas pareciam perderas forças a medida que meus pés se moviam inconscientemente na direção que ele queria?
Perguntas complexas demais para serem respondidas sem álcool, descobriria mais tarde., a contragosto de meus pobres neurônios que não tinham um segundo sequer de descanso. Tico e Teco preferiram fechar os olhos para o que estava se desenrolando a sua frente:
- Você vai adorar isso aqui. - ele comentou animado, colocando a pulseira do evento em seu punho. - Não estava na organização, mas conheço gente que estava. Me garantiram que vai ser inesquecível, a não ser que você beba muito. - caçoou ele.
- É, vou sim... - mento descaradamente. Mal havia entrado e já sabia que não iria gostar. Poderia ser um pouco de preconceito com as pessoas ali? Sim, mas não conseguia controlar as primeiras impressões.
Eu deveria ter contado a ele que aquela era a primeira vez que eu ia a uma boate antes de estarmos nela. Nunca fez meu tipo de passeio ideal, porque não era meu lugar e eu me sentia como um peixe fora d'água batendo as nadadeiras na areia. Andar ao ar livre, tomar um sorvete, curtir a paisagem, sentar na grama dos parques no verão, isso sim valia meu tempo.
Apenas o segui para sabe deus onde ele estava indo naquele formigueiro de pessoas bêbadas dançantes. A falta de iluminação deixava aquele lugar claustrofóbico, fatigante. Queria voltar para olhar o luar, se é que havia uma lua no céu em pleno inverno.
Paramos na frente do bar, ele já estava tirando a carteira e pegando o Menu sobre o balcão escuro do lugar. Alias, tudo ali era escuro o suficiente para que vários casais fizessem sexo tranquilamente sem serem vistos. As únicas fontes de luz eram os painéis de luzes coloridas no alto:
- O que você vai querer, Nicholas? - perguntou por cima da música, aproximando seus lábios do meu ouvido para que conseguisse escutá-lo.
Ele estava jogando. Se restava em mim qualquer dúvida sobre isso, se esvaiu no momento que ele se afastou de mim, com um sorriso matreiro estampando, percebendo meu desconserto.
Onde foi que eu me meti?
- Eu não bebo. - Neguei com a cabeça, fingindo que não senti nada com sua proximidade.
- Está perdendo a melhor parte da diversão. - alertou ele ao pedir alguma bebida ao barman, cujo o nome não pude escutar.
Assim que o homem voltou com o corpo quase cheio de uma bebida acastanhada que se assemelhava muito a Whisky, mas duvidava que realmente fariam um open bar da bebida caríssima para tantas pessoas. Gabriel virou o copo até secar e então se virou para mim:
- Você dança pelo menos? - perguntou em tom de piada, se afastando do balcão como quem diz "venha comigo" em direção a pista de dança lotada de formandos.
- Ahm... - pausei - Não exatamente. - Confessei desconcertado.
- Cara, você é chato, viu? - ele riu e soltou um 'hasta la vista" antes de me dar as costas e ir para sua rodinha de amigos chapados, descontraídos e dançantes exatamente como ele era.
Aquele lugar não era pra mim, eu não gostava de nada que aquelas pessoas faziam: dançar loucamente, beber loucamente, trepar loucamente em público. O que eu achei que iria fazer quando aceitei o convite de Gabriel? Talvez alguma parte inconsciente do meu cérebro havia pensado que... sei lá o que eu pensei. Temia essa resposta mais que a própria morte, visto que o convite não me interessou, mas quem o fez, que naquele momento nem lembrava da minha existência quando se mexia no ritmo da música eletrônica, acompanhado de um homem que não reconhecia.
Ao menos isso não era invenção da minha mente. Gabriel era gay, mas isso não significava que era um gay que me queria, e muito menos que eu o queria também. Éramos colegas de faculdade que por acaso compartilharam um carro e apenas isso.
A música alta incomodava meus ouvidos como se tivesse uma caixa de som ao lado de cada orelha minha, sentia a vibração grave da batida dentro do meu crânio. Que lugar insuportável!
- Ei! - O barman me chamou - Você está acabando com o clima parado aí com essa cara de cu, afasta as pessoas do bar, essa é por conta da casa. - Deslizou um copo cheio de alguma bebida que eu obviamente não iria beber.
Bebi.
Depois desse momento de insensatez, meu corpo experimentou pela primeira vez de estar dopado, e posso dizer com todas as letras que odiei, mas só depois de ter feito tudo que eu queria. O único problema é que meu eu sóbrio não queria a mesma coisa que meu eu bêbado de primeira viagem.
Em questão de minutos aquela música insuportável se tornou agradável, me dava vontade de dançar e descontar todas as frustrações na pista de dança com desconhecidos chapados que pareciam muito amistosos a princípio, com suas mãos bobas que não se limitavam a barreira do espaço pessoal. Meu corpo se tornou uma extensão do corpo de quem estava a meu lado como em uma orgia.
Em algum momento, depois de uns três copos daquela bebida milagrosa, eu já escutava a música acima dos meus pensamentos, Tico e Teco entraram em coma, e então era apenas um Nicholas balançando ao som de uma música eletrizante, rindo, se divertindo, levemente enjoado e com a cabeça girando como um carrossel descontrolado. Mal sentia meus membros, era tudo parte de uma enorme troca de energia entre todos os corpos naquela pista e o som.
Senti uma mão tocando a minha enquanto pulava ao som de alguma batida muito agitada, segurando meus dedos como um menino segurando a linha de uma pipa para que não vá muito alto. Eu queria ir mais alto. Ele envolveu seus braços na minha cintura e colocou o queixo entre meu ombro e o pescoço. Meu corpo inteiro se arrepiou instantaneamente, joguei a cabeça para o lado deixando que ele explorasse meu pescoço, a barba rala me dava... gatinhos. Sim, gatinhos.
Mas então ele parou e levou seus lábios até minha orelha, fazendo com que todos os meus fios de cabelo se eriçassem:
- Achei que não soubesse dançar, Nicholas. - Ele sussurrou perto o suficiente para que eu pudesse escutar, mas também para que seus lábios tocassem o lóbulo da minha orelha, e seu rosto meu cabelo.
Percebendo que eu iria virar, ele me segurou ainda mais forte pela cintura. Parecia que a música havia parado de tão extasiado que eu estava. Não havia um pelinho sequer no meu corpo que não estivesse prestes a sair da pele de tanto se arrepiar:
- E que não bebesse. - Ele beijou meu pescoço.
Minhas pernas pareciam ter se tornado gelatina, estava em pé apenas porque ele segurava minha cintura com aquele braço forte enquanto com a outra mão segurava meu queixo para que eu não virasse a cabeça enquanto ele beijava meu pescoço. Eu queria beijá-lo.
Eu queria beijá-lo.
Testei novamente a frase nos meus pensamentos, soava muito bem. Eu gostei de como era sincera e dizia exatamente o que eu queria, eu o queria, só ele, não Giulia ou qualquer outra ou outro. Eu o queria.
Mas então a realidade me bateu como um soco no estômago, que também serviu para o meu fígado dizer "chega". Me desvencilhei dele e saí correndo, tropeçando em algumas pessoas e degraus até a saída. Já na rua abaixei a cabeça e deixei que meu corpo se livrasse de tudo que comi o dia todo e aqueles três copos que garantiriam minha ressaca no dia seguinte.
Me sentia quase como um morto-vivo naquele momento. Minha cabeça girava, minha visão estava turva, eu mal escutava qualquer coisa a minha volta, mas senti os braços dele ao meu redor quando terminei de vomitar:
- Sai de perto de mim! - Tico e Teco acordaram.
Mas não tiveram tempo de dizer muita coisa além disso, pois minha mente parecia estar deligando aos poucos, setor a setor, já não tinha mais controle do meu corpo para nada além de alguns espasmos.
Antes de todas as luzes se apagarem, vi seu rosto, preocupado. Então o escuro.
*
E então o senhor disse: que haja luz.
Não tanta luz.
Me virei lentamente para outro lado, sentindo os lençóis em volta do meu corpo, o colchão macio de molas, os travesseiros para todo lado, mas minha cabeça ainda estava latejando:
- Apaga a luz, por favor. - Murmurei ainda sem acordar completamente, quase como um ronronado.
- Acordou a cinderela. - Escutei a voz falar a uma certa distância, mas não conseguia abrir os olhos para ver o rosto do dono ou assimilar.
- Apaga a luz!
- Tá bom, princesa. - Ele zombou e automaticamente eu soube que era Gabriel, mas não entendia o que ele estava fazendo no meu quarto... de manhã.
Levantei-me subitamente, desesperado com a ideia que passou em minha mente ao ouvir sua voz. Eu era criativo e naquele momento toda a criatividade se virou contra mim, me fazendo ter repulsa a mim mesmo só de considerar a possibilidade:
- O que aconteceu? - minha respiração acelerada piorava a dor de cabeça em cem por cento, mas não era capaz de controlar.
- Fica calmo. - Ele veio em minha direção, e minha reação imediata foi tentar fugir, cair da cama, fazer minha cabeça latejar ainda mais.
Olhei para minhas roupas, não eram as mesmas que as de ontem, que estava usando na festa. A realidade me bateu como um duro tapa na cara, mas não me lembrava de absolutamente nada.
- Meu deus, me perdoa. - Murmurei quase em prantos.
- Você está bem? - ele perguntou com uma voz calma, ainda se aproximando.
- Não! Não está nada bem! - tentei me levantar do chão em vão, minha cabeça estava girando tanto quanto ontem a noite. Ele tentou segurar meu braço para me ajudar a levantar, mas eu o puxei imediatamente. - Sai de perto de mim! - esbravejei. - O que você fez comigo?
Ele soltou uma risada debochada, estava incrédulo, decepcionado com minha reação? Eu não estava nem aí. Tudo que eu queria saber era o que ele havia feito comigo enquanto estava alcoolizado e porque não lembrava de nada além de alguns flashes soltos de memória e depois nunca mais vê-lo na minha vida... e depois orar até a morte pedindo perdão.
- Do que você está rindo? - gritei. - O que aconteceu? Fala logo!
- Eu poderia não te contar só para você ficar com essa pulguinha atrás da orelha, se perguntando se feriu algum mandamento. - Sorriu torto, debochado. - Mas a verdade é que você bebeu até desmaiar e eu te trouxe para casa. Só isso.
Seu tom debochado de voz ao se referir a minha religião me feriu de alguma forma, não pelas palavras em si, mas pelas intenções que elas carregavam. Eu vi a raiva escapando pelo seu olhar como o petróleo derramado no mar chegando a praia, destruindo qualquer sombra de alguma amizade que poderia estar sendo construída:
- Você vomitou sua roupa inteira, então eu troquei por outra e te deixei na cama dormindo e fui para outro quarto. - explicou. - Não voltei para minha casa porque já sabia que você iria acordar sem saber o que aconteceu. Só não esperava que seria tão... - me olhou de cima abaixo, o que não era um percurso muito longo já que eu ainda estava no chão. - Isso aí.
- Me desculpa. - Murmurei envergonhado.
- O que você achou? - perguntou irritado, gesticulando como um italiano. - Que eu iria abusar de você enquanto estava bêbado? - cuspiu as palavras com nojo. - Você tem merda na cabeça porra?
- N-não... - gaguejei - E-eu não sei o que eu achei... - tentei me explicar em vão - Me desculpa, cara.
- Só essa sua cara já diz que é exatamente isso que você pensou e pra variar é um mentiroso de merda. - falou com calma, mas seu olhar dizia claramente em letras neon que se ele tivesse um metralhadora, eu seria um ralo lindo para a casa projetada dele. - Enfia suas desculpas no meio do seu cu, homofóbico nojento.
Suas palavras fizeram o mesmo estrago que a metralhadora faria em mim. Estava morrendo de vergonha do circo que eu fiz, da merda que eu pensei, da minha língua solta que soltou meus pensamentos sujos para o ar. As lágrimas surgiram os meus olhos e escorregaram pelo meu rosto não por tristeza, raiva, mas por vergonha. Não sabia mais onde enfiar minha cara e se eu realmente queria enfiá-la em algum lugar que não fosse um saco preto e fechar todas as entradas de ar.
O olhar de desprezo de Gabriel sobre mim era cortante, um aviso para permanecer em silêncio que eu ignorei:
- Eu sinto m...
- Vai pro inferno. - Ele me cortou e saiu do quarto batendo a porta com força atrás de si.
Senti a vibração na parede em que estava encostado, e então fechei os olhos, deixando as últimas lágrimas caírem antes de enxugá-las. Eu nunca deveria ter saído de casa ontem, ou do útero da minha mãe vinte e cinco anos atrás.
- Homofóbico... - sussurrei a palavra que para muitos é um grande orgulho, muitas pessoas do meu convívio inclusive. Soa horrível para mim, principalmente saindo da boca dele nessa situação. - Eu sou um merda.
Tico e Teco se calaram em consenso.
Me arrastei até a cama completamente bagunçada, alguns lençóis e travesseiros vieram comigo para o chão e, ainda com a cabeça latejando, peguei meu celular para ver as horas, mas acabei nunca prestando atenção nisso. Assim que desbloqueei meu celular só havia uma notícia em todos os meus chats de conversa e nos jornais online.
"Cadáver de jovem universitária, Letícia Paglazzi, foi encontrado em uma vala no interior do estado."
💚🧡💜💙💚💛🧡💜💙💚💛🧡💜💙
OI, GENTE! GOSTARAM?
O capítulo ficou um pouco mais curto e dinâmico porque a autora teve um surto de preguiça e insônia causado por visitis indesejables kkkkkk
O próximo vem maior, prometo💙
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top