C A P Í T U L O 75
O florescer do sol
― Estou ouvindo.
Ela também se endireitou, o semblante compenetrado exibindo a ponderação de alguém prestes a iniciar um assunto importante.
― Quero sorvete de pistache. ― Sorvete? O riso alcançou a garganta, mas tão rápido se perdeu à conclusão de que eu nunca havia lhe negado sorvete, e foi nesse instante que o golpe fatal veio: ― E quero que você conceda o dom de andar ao sol à Francesca. Não precisa ser nessa ordem, você pode ajudar ela primeiro e então conseguir o meu sorvete depois. Mas tem que ser de pistache. Eu quero muito as duas coisas.
Os lábios rosados deslizaram sobre os dentes brancos, e outra vez o sorriso, outra vez aquela visão que redefinia o sentido de prazer, e mais uma vez o ar abandonava meus pulmões em completa derrota. A sensação era alarmante diante do insólito poder que ela tinha de tornar minhas decisões atípicas. A vampira era tão relevante quanto a um inseto morto, mas era no desejo tremulante daqueles dois céus onde morria toda a minha fodida resistência e objeção.
― Mande chamar a garota.
O que era um sorriso se desfez, mas sua boca se manteve aberta e os olhos grandes se abriram mais.
― Isso é um sim? Você vai ajudar ela? ― Um aceno afirmativo, um pequeno grito, então a deliciosa forma curvilínea envolta de seda pulando sobre mim, fios loiros espalhando a doce fragrância pelo ar, a volúpia dos seios descansando em meu tórax e a dos lábios no meu rosto, numa de suas típicas explosões de alegria que, na maioria das vezes, me deixava atordoado. ― Muito obrigada.
Dispensei seu agradecimento, pois implicava que estava fazendo algo meritório, quando eu estava longe de ser uma pessoa reconhecida pela generosidade ou benevolência. Na verdade, era tão pouco por tudo aquilo entre os meus braços, que cabia o esforço.
― Como vamos fazer? ― indagou, sentando-se, as coxas expostas ao lado das minhas e os quadris nos meus em um alinhamento tão preciso, que o calor da sua fenda terminou de inflamar o que era apenas uma rigidez parcial. E ela sentiu. ― Anton! Estou falando sério e você assim...
― Você está por cima, então me isento de culpa.
Mordendo o lábio em um ricto malicioso, apertei a carne farta dos seus quadris, e um rubor adorável se espalhou pelas suas bochechas antes que subisse a bunda gostosa para a minha barriga. Movimento que me arrancou um rosnado diante da piora da situação, porque agora eu tinha a vulva macia e quente na minha pele, resguardada somente pelo fino tecido da calcinha. Até considerei descê-la de volta e arriscar uma rapidinha, mas o furacão loiro estava obstinada em seu propósito.
― Vou chamar a Francesca aqui, e então?
Era uma promessa, não tinha como protelar o inevitável. Passei uma série de instruções, a maioria dispensável, mas parecia ser relevante para ela. Enquanto a fada vestia um robe por cima da camisola e ia até a porta pedir para que trouxessem a garota e os ingredientes que designei, enchi um copo com BlackOpus e me dirigi ao sofá.
O céu escurecia e o lanche que eu solicitara já havia sido servido no terraço quando Rose retornou com os ingredientes. E como se estivesse fazendo algo proibido, o que me suscitou um meio sorriso, a fada se certificou de que todas as portas estivessem fechadas e as cortinas cerradas, para só então se encaminhar ao aparador e pegar a garrafa de RedOpus.
― Devo colocar tudo em um copo e misturar? ― Anuí com um gesto, assistindo-a despejar uma dose do Opus, uma porção do sal, mas ao pegar a pimenta vermelha em pó, titubeou. ― Tem certeza de que vai pimenta? Porque vocês têm o paladar sensível e não me lembro da Rose colocando pimenta na comida.
Ela estava se tornando cada vez mais perspicaz, e talvez eu devesse ficar mais atento a isso. A pimenta e o sal eram desnecessários ao que o RedOpus sozinho conseguia disfarçar, dado que, a princípio, a bebida havia sido desenvolvida para este fim. No entanto, já que eu estava cooperando, era mais que merecido ter algum tipo de diversão no processo.
― Por causa do paladar sensível que é preciso camuflar o gosto. ― Sem pensar outra vez, ela verteu uma fração da pimenta. ― Mais ― exigi, e após um olhar enviesado, mais uma porção foi despejada, seguido pelo misturar do conteúdo.
― E agora?
Gesticulei para que se aproximasse e esperei, observando-a com seus passos fluidos e os dois oceanos muito vivos e expectantes quando se sentou ao meu lado com a taça nas mãos. Tanta curiosidade quase me fez sorrir, mas me retive em deixar o copo que segurava na mesa lateral, antes de levar o polegar à boca e rasgá-lo em uma das presas.
Sob um escrutínio muito cativo e meticuloso, virei o dedo sobre a taça e, após o escorrer de uma gota acarminada, suguei o restante com os lábios, mas foi ao retirar o cordão de platina do meu pescoço que a fada se mostrou mais intrigada. Ou talvez já suspeitasse do que viria, condizente ao reluzir de suas íris em direção ao relicário de pedra bruta em minhas mãos, lugar onde eu armazenava uma ínfima parte da minha reserva do sangue de Vincent e Eleonora.
O que me lembrava de como eram estúpidos.
O excesso de benevolência fingida de ambos havia feito com que esgotassem suas reservas do meu há quase um século, e o qual eu deixara de fornecer há trezentos anos. Sem a tríade completa não podiam conceder o dom a mais ninguém e até mesmo usaram de Avigayil para tentarem conseguir alguns mililitros comigo sob o subterfúgio de que seria para um "bem maior". Bem maior, menor ou que fosse para manterem suas máscaras perante a decadência que chamavam de ordem, o infortúnio deles era que eu pouco me importava e desejava precisamente o contrário. Que as máscaras ruíssem, que camada por camada de suas mentiras fossem aniquiladas, queria a humilhação, a flagelação e a dor enclausurante da loucura até que seus verdadeiros desejos, vícios e podridão pudessem vir à luz. E estava próximo, muito próximo, de acontecer.
Retirei a pequena tampa do relicário e deixei que uma gota caísse junto do conteúdo da taça.
― Faça a garota beber tudo ― falei, fechando o objeto e voltando-o para o pescoço.
Com um sorriso reluzente, a fada se esticou aos meus lábios e após tocá-los com os seus, levantou-se. A visão da bunda roliça e empinada, acentuada pela cintura fina, despertou-me o desejo pulsante de puxá-la para o meu colo e sentir a abundância daquela carne no meu pau, mas me abstive em ajeitá-lo na calça enquanto contemplava a seda lhe acariciando as curvas conforme seu corpo se movia com uma graça etérea até o aparador, onde, com muito cuidado, depositou a taça antes de se dirigir à porta, quase saltitante.
Tsc, tsc... Que atração era essa que desestabilizava as minhas convicções e fodia com meu autodomínio? Eu me via diante de uma figura que, com sua intensidade vibrante e natureza passional, poderia levar qualquer existência, sobretudo a própria, a um verdadeiro desastre. Ameaçava até mesmo a desestruturar o inabalável equilíbrio da minha, ou ainda mais, talvez até eu já estivesse sentindo os efeitos desse desastre.
Abri os braços apoiando-os no encosto do sofá, assistindo a tempestade chamar a vampira que já a aguardava à porta, e então se afastar para que a garota passasse. Acuada e com os olhos arregalados como uma ratinha desvalida diante de um gato, ela se encolheu sob a minha presença e continuou com a cabeça baixa enquanto a fada a incentivava a acompanhá-la.
― Eu te chamei aqui porque queria pedir desculpas por hoje mais cedo. Na verdade ― dirigindo-me um breve olhar e apontando de mim para ela, a fada completou: ―, nós queríamos.
― Eu não queria nada, se ela está viva deveria agradecer unicamente a você ― intervi, e de súbito os oceanos se transformaram em brasas vulcânicas crepitando na minha direção.
― Anton!
― Não precisa se desculpar, senhora ― a garota apressou-se, os olhos desviando-se para ao chão. ― Eu agradeço a...
― Não, Francesca, eu sinto muito mesmo e como pedido de desculpa, quero te dar algo. ― A vampira balançou a cabeça numa negação efusiva, mas a fada encerrou qualquer objeção buscando a sua mão e entregando-lhe a taça com a bebida, antes de se virar e servir-se de uma dose de licor. ― Eu proponho um brinde.
Contra a minha vontade, um dos cantos da minha boca se elevou. Certamente, minha sedutora esposa poderia aprimorar seu poder de influência e autoridade com as palavras, no entanto, a manipulação que lhe faltava através delas, transbordava a cada milímetro de seu corpo. Quem resistiria à face delicada, confiável, aos gestos gentis e elegantes, e ao olhar ofuscante da tentação?
Com as duas mãos, a vampira ergueu a taça em direção à que a fada estendia, e após o tilintar dos cristais, a levou aos lábios, hesitando no último segundo.
― Por favor, se me desculpa, então beba tudo ― a tempestade pediu, um sorriso terno e destruidor florescendo em seu rosto como o nascer do sol, em incentivo à outra.
A garota havia sentido o cheiro da especiaria sobressalente ao Opus e sabia o que a esperava, mas como previsto, ninguém conseguia recusar a afabilidade da tentação, e foi no seu primeiro gole que a diversão começou. O sabor incendiário a induziu a um engasgo instantâneo, fazendo-a expelir parte do líquido pelas narinas e boca enquanto a mão corria até os lábios para reter a sucessão de ânsias, e enquanto lágrimas brotavam em seus olhos.
― Francesca, você... céus! Anton, faça alguma coisa!
Limitei-me a curvar o rosto para cima, precisando de todo controle para refrear a pressão violenta em meu diafragma e em todos os músculos da minha face, que começavam a formigar. Em uma tentativa de distração, reprimindo qualquer ímpeto de riso, capturei minha bebida e virei o que sobrara dela.
A fada abanava as mãos em frente ao rosto da vampira, encarando-a com o cenho retraído como se a dor fosse dela, mas a aflição virou assombro quando a garota, muito rápido, suspendeu a respiração e entornou o que restava do líquido entre novos engasgos, ânsias e refluxos. O furacão loiro me lançou um olhar tão desesperado quanto mortífero assim que a garota, com o rosto avermelhado e encharcado de lágrimas, depositou a taça vazia sobre o aparador.
― Francesca, me desculpa ― sussurrou ela, com a voz abafada ao abraçar a vampira, e só não interrompi o contato inapropriado dando fim à cena desnecessária, porque tinha de reconhecer, a ratinha era valente, e se conseguisse manter a bebida no estômago, seria digna do dom. ― Eu prometo que é para o seu bem, confia em mim.
Um ruído vibrante ressonou, atraindo meus olhos para a mesa ao lado, onde meu celular se encontrava desde aquela manhã. O peguei, vendo uma mensagem de Kranz: "Ela chegou.", e era essa a informação de que precisava para dar início à noite.
Cheguei ao corredor central da ala leste e deparei-me Soames parado à porta do salão principal à minha espera. Nenhuma palavra precisou ser emitida, o sorriso oblíquo exteriorizava a problemática iminente; uma daquelas que eu havia me tornado mestre em conduzir ao limite, submeter e reajustar.
Empurrei a porta e adentrei o salão. O odor herbáceo de fundo terroso chegou às minhas narinas antes mesmo que meus olhos pousassem na figura delgada e singular, arrastando os longos dedos pela pedra esculpida da lareira. Seus movimentos cessaram e, no silenciar de um batimento cardíaco, ela voltou-se para mim. Olhos escuros em uma intensa assimilação, medindo-me com a igual urgência em que seu sangue começava a pulsar.
Aproximou-se com cautela, o inclinar exultante da boca ganhando outros significados ao parar a alguns metros adiante enquanto sua inspeção se aprofundava e o desafio velado era lançado.
― O famoso Anton Skarsgard, bem aqui, na minha frente ― o timbre enrouquecido ecoou com uma nota vibrante, parte irônica, e eu me abstive a levar as mãos aos bolsos. ― Tenho que admitir, você é muito mais bonito pessoalmente. O que é um problema, porque ouvi dizer que a sua beleza equivale à sua periculosidade.
― Devo entender isso como um elogio?
Sem qualquer discrição, ela desceu o olhar pelo meu corpo em um examinar intencional e lento, enchendo-se de um fulgor incisivo à medida que retornava ao meu rosto.
― Pelo que vejo, com certeza.
Inclinei minha cabeça para o lado, e a analisei.
Sua aparente sinceridade até seria digna se não estivesse impregnada de segundas intenções; apenas mais do mesmo com que eu havia lidado durante toda a minha existência, portanto, tediosa. Ela exibia a exaustiva arrogância e afetação de uma jovem rebelde e inexperiente, e naquele momento eu duvidava se de fato me seria útil para alguma coisa. Todavia, por todas às vezes em que Kranz se provara habilidoso em detectar perfis e encontrar com exatidão o que eu precisava, decidi por um voto de confiança.
― E pelo que percebo, o boato mais importante não chegou aos seus ouvidos. Elogios não me afetam.
Mais uma vez ela sorriu, como se confiante de uma sedução que, aos meus olhos, não existia. Em parte desejei ser direto e terminante para acabar com o teatrinho típico, mas também desejei vê-la murchar aos poucos como uma fruta podre.
― Está dizendo que não é nenhum pouco vaidoso? ― Ergueu a sobrancelha, a incitação presunçosa reforçada pelo morder do lábio.
― Ninguém está livre desse pecado e sei o que vejo no espelho ― admiti, minha entonação soando tão indolente quanto meu elevar de ombros. ― A diferença é que a minha vaidade não vem do que as pessoas pensam de mim, mas do que sei que sou capaz.
Sua exalação rápida acompanhou o tremor sonoro de um riso curto e o brilho resplandecente das íris negras.
― Quer que eu acredite que é tão confiante quando há tanta burocracia pra chegar até você? Não faça isso, não faça aquilo, não faça perguntas pessoais, não se aproxime demais, até mesmo detiveram o meu ônix. Confesso que pelo que me falaram e para um imortal, eu esperava mais autoconfiança em suas habilidades.
E lá estava, o desespero em ser validada, a necessidade de ocultar o medo sob a máscara de cinismo, autoafirmação e desafio. Talvez pela carência de ser a filha do meio ou por nascer sob o peso de sua descendência, ou ainda poderia ser um efeito motivado pela minha presença. De todo o modo, ela era tão previsível que chegava a ser frustrante, e pela primeira vez em muitos séculos, sequer a ideia de mostrar quem eu realmente era, pareceu-me atraente.
― Essa é uma tentativa de provocação ou algum tipo de desafio? ― indaguei, e como pretendido, atingi o alvo. Seu ego se inflou de tal modo que se arriscou a se aproximar mais dois passos.
― Se sentiu desfiado? ― O olhar pedante e o sorrisinho vitorioso entregaram a verdade do intuito. ― Por mim, uma simples bruxa de vinte e nove anos?
Eu nunca falhava em minhas percepções iniciais e como observado, a pouca idade e a inexperiência a tornava tola e imprudente, uma real testemunha da involução decadente da nova geração, na qual nem mesmo a sua progênie pôde evitar.
― Na verdade ― falei, um passo após o outro, até parar diante dela e fitar a obscuridade penetrante dos seus olhos. A mesma de Avigayil, a mesma de todos que carregavam o sobrenome Na'amah ―, você precisaria de muito, muito mais para este feito, então não.
Distanciando-me, caminhei até o sofá e após abrir o botão solitário do meu blazer, me sentei.
― Eu diria até que se expôs ao ridículo ― prossegui, gesticulando para que se sentasse na poltrona à frente ―, ao acreditar que, como uma simples bruxa de vinte e nove anos, seria capaz de desafiar ou enganar um vampiro de três mil anos. Ambos sabemos que um colar de ônix é apenas o mais óbvio, e que no seu cinto ou até mesmo nos saltos de suas botas pode conter um amuleto escondido. ― Embora tentasse impedir, a curva pretensiosa de sua boca se desfez em constrangimento, o qual muito rápido tentou dissimular, sustentando o ar soberbo ao dirigir-se à poltrona e se sentar, coluna ereta, pernas cruzadas. ― Além do mais, se não tinha conhecimento, sei que sentiu ao chegar aqui que o castelo foi selado pela sua tia-avó, e que magias não podem ser realizadas aqui dentro.
― E o que te garante que não posso reverter o sigilo de proteção?
Eu riria se estivesse disposto a desperdiçar ainda mais o meu tempo com tão pouco, mas quanto antes eu jogasse às claras com aquela bruxa, mais rápido findaria o problema.
― Tsc, tsc... ainda não percebeu que insultar a minha inteligência não é a melhor escolha, Demedra?
― Não foi um insulto, só curiosidade.
A óbvia curiosidade de descobrir o quanto de informação eu possuía e poderia usar contra ela. Ela não era de todo estúpida, afinal, e começava a entender o processo e suas consequências. Se estivesse disposto, até poderia revelar que sabia desde o que ela havia comido, dos lugares frequentados, ou do exato número de vezes que seu coração batera nos últimos seis meses; ou ainda dos extravios ilegais de corpos do necrotério e dos rituais regados a orgia, sangue e sacrifício. Sem dúvida, Letlo e Nina Na'amah não ficariam felizes com as predileções da filha, e se Avigayil não tinha conhecimento ou só ignorava o fato, não me importava.
― Você apenas não pode ― afirmei, minha convicção fazendo-a recuar ―, nem se dominasse todas as nuances de magia oculta seria capaz de reverter um sigilo de Avigayil.
De novo eu havia atingido o seu ego, mas de uma maneira diferente. Pela primeira vez desde que entrara naquele salão, vi seus olhos estremecerem e o maxilar tensionar por detrás da máscara altiva. Então era esse o seu segredo sujo. Não os estudos de magia oculta que mantinha escusos da família e um dos motivos que a fizera aceitar ir até ali, mas o desejo secreto e imprudente de se tornar uma bruxa tão poderosa quanto Avigayil Na'amah.
Um inútil e tolo desejo, já que o completo domínio das sombras havia sido uma consequência da imortalidade que Chraos concedera a Avigayil, por isso só ela o possuía. O que havia desenvolvido e repassado às suas descendentes, era apenas o que o limite de suas vidas finitas permitia. Um erro que a própria Avigayil tentou reparar proibindo o estudo e decorrente uso, ao perceber o quanto o poder oculto podia corromper e destruir mentes mortais.
― Então por que sou eu que estou aqui, e não ela?
Ela havia se ressentido e a relevância disso era tão inexistente quanto a possibilidade de ouvir que, desde a primeira recusa, mantive Avigayil longe dos meus assuntos.
― Não nos conhecemos, Demedra, mas em consideração ao meu histórico com a sua tia-avó, lhe darei o benefício de uma informação a meu respeito. ― Apoiando o cotovelo no braço do sofá, cruzei uma perna sobre a outra e fixei meus olhos nos dela, dando tempo para que a tensão a despertasse. ― Abomino mentiras e bajulação, então não espere ter a minha atenção com joguinhos, provocações ou presunção. Não tente me enganar ou desafiar porque não irá conseguir. Só se mostrará estúpida e pessoas estúpidas não sobrevivem na minha equipe. ― Ela engoliu, o movimento visível tão árduo quanto a tentativa de manter o contato visual. ― Deve entender que aqui sou eu quem escolhe o tabuleiro e distribui as peças, e elas só se movem ao meu comando. Você está sendo avaliada para ser contratada como uma dessas peças, e nada mais. Se estiver disposta a jogar conforme as regras, será bem recompensada pelos seus serviços, mas caso acredite ser demais ― inclinei os dedos em direção à porta ―, pode escolher ir embora.
O som da minha voz se dissipou, deixando um eco silencioso no ar. A figura sentada à frente permaneceu imóvel, os olhos retraídos como se buscasse além do que foi dito.
― E você vai apenas me deixar ir embora, sem qualquer consequência?
Ah, o medo. O medo despido e inevitável, intensificado pela angústia moral, a incerteza do que eu possuía em mãos e a convicção da gravidade. Era quase decepcionante que não tivesse conseguido segurar a máscara por mais tempo, no entanto, vendo-a naquele segundo, pude entender as razões da escolha de Kranz. Demedra podia ser inexperiente em lidar com alguém como eu, mas estava muito ciente das circunstâncias em que se envolvia e a temeridade a levaria até o fim.
― Ninguém te sequestrou ou coagiu, se veio até aqui foi por livre vontade, além disso, ainda não temos um acordo, então por que haveria?
Só não haveria porque me faltava vontade, pois o mero ato de ter tomado o meu tempo seria motivo suficiente para uma retaliação. Entretanto, no momento eu possuía outros assuntos para resolver e uma tempestade geniosa para lidar.
― Também me alertaram que qualquer acordo com você equivale à vida ou a morte ― pontuou, e não era uma pergunta, mas existia o desejo subtendido de uma confirmação.
O ar convencido havia se convertido numa expressão séria, e a postura orgulhosa, se tornado tensa. Ela tinha compreendido os termos, e percebi que a conversa migrava para uma averiguação de território, visto que eu possuía a minha fama, embora algumas poucas vezes distorcida.
― Morte ― repeti a palavra ponderando se deveria enfatizar o sofrimento e a humilhação que a precediam e que poderia durar décadas. Concluí que este acabava sendo o único destino, talvez não tão significativo para aqueles desapegados da vida, mas ainda assim, o único. ― Meus acordos equivalem à lealdade absoluta ou à morte.
Outra vez o silêncio se ergueu, rompido somente pelo ruído arrítmico de seu coração.
― E o que eu teria que fazer?
― Kranz deve tê-la alertado de que o assunto é privado, portanto, só terá mais informações após fecharmos o acordo. ― Subindo a manga do meu sobretudo, verifiquei o relógio. Eram quase vinte e uma horas e a fada já devia estar no salão de refeições para o jantar. ― Imagino que esteja devidamente instalada em um dos quartos, então pense a respeito e decida, você tem até amanhã às oito da manhã para dar uma resposta ― finalizei, levantando-me e fechando o botão do blazer.
― Eu aceito.
Muito devagar, detive meus movimentos, as mãos descendo e meu olhar retornando para ela sob um arquear de sobrancelha.
― Sabe que não há mais volta, não sabe? ― indaguei, e a sua deliberada confiança ao anuir me confirmava: sua audácia a levaria até o fim. ― Kranz também deve ter te repassado algumas das regras principais.
Voltei a me sentar, ouvindo-a repetir e enumerar com os dedos:
― Verdade. Lealdade. Discrição. Ele também me deixou ciente das consequências caso não cumpra a minha parte. ― Acomodei as costas no estofado, meus dedos em um tamborilar lento sobre acolchoado de veludo enquanto a estudava. ― Acordo feito, nos termos e nos valores que o barbudo me passou. ― Sim, o dinheiro. Outro grande incentivador para alguém que iniciava a vida e não podia contar com a fortuna da família para realizar o condenável. ― O que preciso fazer?
― Rastrear magia.
Quase pude ouvir o gritar triunfante de sua mente com a certeza de que receberia uma pequena fortuna por um serviço tão banal para uma bruxa de sua estirpe. Contudo, o que aprendera com a nossa breve conversa, ou talvez a lembrança do fator determinante pelo qual fora requisitada, deve tê-la refreado, pois bastou alguns segundos em um frenético processar de pensamentos para eu tornar a ouvir sua voz:
― É um trabalho simples que qualquer bruxa pode fazer...
― Não quando envolve magia oculta ― a interrompi, vendo os olhos atilados se aguçarem. ― Os rastros foram encobertos com magia oculta há trezentos anos.
― Impossível ― ela riu, um riso incrédulo, quase nervoso.
― Está sugerindo que não é capaz de realizar o serviço? ― provoquei, e ela não hesitou em engolir o anzol.
― Eu não disse isso, só que será muito difícil...
A porta se abriu e, sob os protestos de Soames, um furacão loiro passou por ela detendo-se em três passos; lábios afastados e olhos dilatados, alternando sua inspeção entre mim e a bruxa.
À semelhança de outras vezes, experimentei a dormência surda que se equiparava ao efeito de um narcótico enquanto a assimilava. Tão destoante da restrita iluminação e da decoração soturna da sala, era como se os primeiros raios do amanhecer tivessem invadido o ambiente, com seus longos cabelos dourados, a pele acetinada e o corpo voluptuoso desenhado pelo vestido claro. E esse era um dos momentos em que eu me pegava inteiro perdido, olhando-a e me perguntando se tudo aquilo era real.
Demedra Na'amah (feita por IA)
⭐ + 💬 = 💓
Queridas leitoras,
Confesso que ao postar a primeira parte deste capítulo, não esperava que tantas leitoras ainda continuassem por aqui. E bem, fui surpreendida positivamente e só tenho a agradecer a cada uma de vocês que esperaram e continuam aqui comigo. Meu mais sincero e profundo obrigada, de todo coração. Obrigada pelos comentários, pelos votos, pela manifestação de alguma forma. ❤️
Quanto ao capítulo, acho que tem gente que está mais entregue do consegue assimilar rs... E sim, temos uma personagem nova... 👀
O próximo já está sendo escrito, sem data, mas será o mais breve.
Beijos!😘
Kass Colim
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