C A P Í T U L O 7
A superestima da gentileza
Nós... nós podíamos fazer isso dar certo. Ele havia sido gentil comigo, e conseguimos manter um diálogo por mais de meia hora, sem implicarmos e sem desejarmos a morte um do outro.
Minha cabeça pesava em meio a agitação de uma profusão de pensamentos, imagens e sensações desconcertantes motivadas pela noite anterior. Tudo estava sendo tão diferente do que eu havia imaginado antes do casamento, que as circunstâncias pareciam ser um mero sonho, mas os meus músculos doloridos de tanto me virar na cama nas últimas três horas, me garantiam que não era.
Sentei-me na cama e acendi o abajur.
Só me restavam mais três horas até ter que me levantar para ir trabalhar, mas eu não havia conseguido pregar olhos, e sabia que continuar deitada não ajudaria naquele caso. Talvez só precisasse beber um copo de água ou andar um pouco, isso poderia atenuar o desconforto do meu corpo, além de clarear a minha mente.
Calcei meus chinelos e saí do quarto me deparando com o corredor escuro. Involuntariamente meus olhos pousaram na porta ao final dele, onde segundo a Rose, era o quarto do Anton. Eu só havia entrado ali uma única vez, quando a casa nos fora apresentada. Ignorando aquele leve aperto no estômago, caminhei até a sala e alcancei as escadas. Todas as luzes estavam apagadas, e o ambiente estava sendo iluminado somente pela luz da lua que adentrava através das paredes de vidro, e que refletia por todo mármore do chão.
Após descer o primeiro lance de degraus e fazer a curva que me levaria do segundo até o térreo, meus olhos foram atraídos para o que acontecia lá fora. No mesmo instante meu corpo paralisou, e os meus sentidos se expandiram em alerta tal como um radar quando vi entremeio à escuridão da noite, a silhueta negra que caminhava pela ponte em direção à porta. O ar vibrou e se tornou denso assim que ela foi aberta e o ser adentrou a casa.
As minhas sensações diziam que era o Anton, mas conforme a silhueta se aproximava, sobreveio a dúvida diante do que meus olhos viam, e por um momento, eu já não sabia mais se estava acordada ou em algum sonho. Todo de preto, ele sustentava um casaco com o capuz cobrindo a sua cabeça, e talvez esse detalhe tenha agravado a percepção de que o seu modo de andar era igual ao do desconhecido dos meus sonhos. Tal análise me transbordou uma súbita vertigem entremeio à desorientação, fazendo-me apertar os dedos no corrimão de vidro da escada em busca de alguma estabilidade.
Tentei respirar, apenas respirar.
Eu não sabia dizer se havia sido notada, pois ele parecia concentrado nas suas mãos que se movimentavam sobre tórax e abdômen como se estivesse abrindo o casaco. Só quando o estranho chegou aos pés da escada que senti o seu olhar em mim seguido de uma breve parada hesitante, mas tão logo ele passou a subi-la lentamente, um degrau de cada vez, enquanto continuava me observando.
A sua imponência, o seu calor e o seu cheiro se mesclavam à tensão, e aos poucos foram me envolvendo e desdobrando uma chama nervosa dentro de mim. Sua essência singular, inebriante, era a mesma, mas parecia ainda mais perturbadora, pois se misturava a um leve odor de carne crua, ou seria sangue? Eu não sabia ao certo, e antes que a plena desordem do meu cérebro pudesse acompanhar, o vi se colocar à minha frente, um degrau abaixo que me permitia ficar quase da sua altura, mas ele ainda ficava mais alto.
Era quase como se eu já tivesse vivenciado aquilo. Estávamos tão perto, e o feixe de luz proveniente da parede às minhas costas, iluminava apenas os seus lábios. Os seus lábios... moderadamente finos e bem delineados, que formavam uma perfeita linha tênue, e os quais eu tomava consciência naquele segundo que já havia experimentado. Meu coração acelerou enervado fazendo o meu peito doer com o ritmo caótico, e a minha garganta se apertou que nem consegui manter a respiração.
Não... não fazia sentido. Era o cara dos meus sonhos, eu podia ver, mas ao mesmo tempo também era o Anton.
Desejei retirar aquele capuz e tocá-lo para ter a certeza de que era real, mas eu me encontrava tomada por uma letargia fascinada, dissonante. Segundos ou minutos se passaram, já não sabia ao certo, até que ele subiu o último degrau do primeiro lance ficando ainda mais alto, mais próximo, mais intimidador.
― Nunca te falaram que não se deve encarar a boca de um vampiro? ― murmurou a voz profunda, e eu senti o meu coração paralisar. ― A não ser que queira ser mordida.
Os seus lábios se curvaram no que pensei que seria um sorriso, mas ao invés disso, eles se abriram, e a sua língua deslizou lentamente ao longo dos dentes superiores, de uma presa a outra conforme elas desciam. Uma gota de sangue escorreu da sua língua e lhe tingiu de vermelho o canto da boca. Foi um movimento tão sombrio, mas em igual tão sedutor e hipnotizante, que cheguei a pensar que tinha me projetado para cima dele, mas não, foi ele quem havia se aproximado mais.
Suas mãos alvas se elevaram até o capuz e o puxaram para trás permitindo o brilho prateado da lua revelar os intensos e revoltos abismos vermelhos. Meu peito se comprimiu, e as cores se tornaram ainda mais esmaecidas como se eu tivesse em uma espécie de nevoeiro confuso, delirante e cálido. Não consegui falar nada e nem desviar meus olhos dele, mal conseguia inspirar sob aquele olhar tórrido e todas aquelas sensações que giravam dentro de mim e se uniam entre as minhas pernas.
― Quer uma mordida, fada? ― Anton passou a língua pelo canto da boca limpando o sangue dali. ― Hum? ― Seu olhar quente desceu para os meus seios sob um arquear de sobrancelha incitador. ― Talvez você queira uma mordida nos seus cupcakes. ― Sua cabeça se inclinou ligeiramente para o lado. ― As cerejas deles parecem felizes em me ver.
Num segundo meu instinto rompeu as barreiras adormecidas da minha mente, como se eu tivesse levado um choque de dois mil volts. Desci os olhos para os meus seios, estes pareciam maiores e estavam pressionados contra a pequena blusa do meu pijama branco com estampas de cupcakes, a qual denunciava o quão rijo meus mamilos estavam. Rapidamente os cobri com os braços dando um passo para trás, encostando-me na parede de vidro. Fechei os olhos sentindo o apoio frio refrescar um pouco a ardência da minha pele, no entanto, a minha face ainda queimava, e eu podia ouvir as ligeiras e curtas exalações que me escapavam pelos lábios.
Ainda com uma fugaz esperança de que aquilo fosse apenas um sonho, arrisquei abrir os olhos devagar, mas logo eles quase saltaram para fora quando focaram no abdômen à minha frente. Só naquele momento eu havia reparado que o Anton não usava nenhuma camiseta sob o casaco, e que a sua pele exposta estava com algumas marcas avermelhadas que subiam até o seu pescoço. Aquilo era sangue grudado?
Por que ele estava daquele jeito?
Desviei minha atenção para os seus olhos que já haviam voltado ao seu natural azul cristalino, tentando abstrair qualquer informação que pudesse me fazer entender, mas não havia nada ali além de um brilho perigoso, letal. Anton se virou me lançando um último olhar provocador, e então voltou a subir as escadas enquanto descia o casaco pelos ombros, mas parou três degraus depois.
― Não deveria usar tão pouca roupa, fada. Pode ser que encontre vampiros mal-intencionados por aí, loucos para cravarem as presas em você enquanto te fodem com força contra essa parede.
Céus!
Ele continuou a subir me deixando lá, com os lábios entreabertos e em um estado atordoado e imaginativo. As minhas pernas tremeram e eu me deixei escorregar até o chão. Era ele, eu tinha certeza. Anton era o desconhecido dos meus sonhos, e isso explicava a atração impulsiva e visceral que eu sentia por ele.
Não sei dizer por quanto tempo fiquei lá sentada no chão, mas só me levantei quando senti que o meu corpo havia voltado ao normal e que poderia me levar para o quarto sem que eu desabasse no meio do caminho. Já no meu quarto, fechei os olhos e me joguei sobre a cama, mesmo sabendo que seria impossível dormir, não depois do que acontecera, e não com a minha cabeça girando e fervilhando um milhão de novos pensamentos. Se eu soubesse que aquele breve passeio iria custar mais uma parte da minha sanidade, não teria saído dali antes que amanhecesse.
Com tantos homens pelo mundo, por que o desconhecido tinha de ser logo ele? Não fazia sentido que a minha maior personificação de proteção e conforto fosse justamente o ser mais perigoso e insano que eu havia conhecido. Se antes já ficava completamente atordoada em sua presença, depois do que eu acabara de descobrir, o que seria de mim?
Eu estava ferrada.
Meu despertador ainda nem havia tocado quando me levantei. Tomei um banho morno e me vesti para mais um dia de trabalho, me sentindo péssima e com o cansaço acumulado da noite em claro evidente nas marcas arroxeadas abaixo dos meus olhos. No entanto, não era nada que uma maquiagem não pudesse esconder.
Peguei a minha bolsa e saí do quarto me recusando a olhar na direção do quarto dele, e tentei ignorar a parede da escada quando passei por ela. Eu manteria a minha cabeça no lugar descartando aquela noite como um mero sonho confuso, assim não teria de lidar com as emoções incompreensíveis que estava sentindo. Caminhei em direção à porta da cozinha, com os olhos grudados na mesa de jantar parcialmente arrumada para o café da manhã.
― Você.
Congelei com a mão na maçaneta ao ouvir aquela voz, parecia mais rascante do que o normal. Virei-me devagar quase tendo um pequeno infarto com o que via. Anton vinha da escada que descia para a garagem, trajando um elegante terno preto de três peças, perfeitamente alinhado, com uma camisa cinza-claro e uma gravata também preta, mas texturizada.
Seus cabelos estavam úmidos do banho, e ele parecia sério demais, a expressão, indefinível. Seus olhos azuis estavam ainda mais tempestuosos, quase cinzas, e a princípio eu não saberia dizer se era por causa do seu humor incompreensível ou apenas um reflexo do seu terno.
― Suponho que aquela lata velha parada na garagem é sua ― proferiu ele numa voz muito calma, porém, recriminadora.
― Lata velha? ― Ele tinha uma coleção de carros antigos e o meu que era uma lata velha? Tudo bem que os dele de velho só tinham o modelo, só que eu não iria deixá-lo menosprezar o meu carro desse jeito. Cruzei os braços e ergui o queixo em desafio. ― Não, provavelmente é sua. Na verdade, você parece ter uma coleção delas lá.
Anton apertou os olhos e, me lançando um olhar mortal, se aproximou devagar, com passos leves, calculados, dignos de uma pantera negra. Quase me encolhi quando ele se colocou à minha frente, sua cabeça abaixou-se sutilmente e os seus olhos se fixaram nos meus, me examinando de cima.
― Saiba que o valor da sua lata velha não daria nem para pagar o espelho retrovisor do meu clássico mais barato. ― Grande coisa, eu ainda preferia o meu carro. Troquei o peso do corpo de um pé para outro, tentando disfarçar o tremor que aquele olhar algoz me causava.
― Sorte a minha que uso um carro ao invés de um espelho retrovisor para ir trabalhar ― falei e tão logo me virei para porta da cozinha, antes que o meu corpo denunciasse o seu efeito sobre mim. Eu sempre me sentia vulnerável perto dele, mas dado os últimos acontecimentos, aquela sensação havia piorado drasticamente.
― O quero fora da minha garagem. ― No mesmo segundo me virei para ele e me forcei a rir disso, porque só podia ser brincadeira. ― Quando eu retornar, espero não o ver mais lá.
Ele não estava brincando. Anton deu as costas e saiu em direção às escadas, me deixando de boca aberta tamanha era a minha indignação. O que significava aquilo agora?
― Espera aí! ― gritei indo atrás dele. ― O que você supõe que eu faça? Preciso de um lugar para guardar o meu carro!
― Isso é um problema seu, faça o que quiser desde que o mantenha fora da minha propriedade. ― Eu não conseguia acreditar no que estava ouvindo, a ira crescente só podia estar me deixando surda.
Ah, mas eu não deixaria ficar por isso mesmo.
Ele começou a descer as escadas e eu continuei o seguindo, mas parei no segundo degrau.
― Eu também moro aqui, portanto, tenho direito a pelo menos uma vaga na garagem! ― Praticamente berrei, e ele parou.
Anton se virou com a mesma calma fria, subiu os dois degraus que nos distanciava, e se aproximou até quase encostar seu nariz com o meu. A raiva não me deixou afastar, só prendi a respiração para impedir que aquele maldito cheiro me desestabilizasse ainda mais.
― Você mora, mas a casa é minha e eu que faço as regras por aqui. Se estiver insatisfeita, fique à vontade para ir embora.
Suas palavras me afetaram, me afetaram tanto, e de um jeito que eu não compreendia ou esperava. Pensamentos me faltaram no vazio atônito que se instalara na minha cabeça, apenas o assisti sumir do meu campo de visão conforme ele descia as escadas.
Qual era o maldito problema dele?
Aquele vampiro era odioso, era pura frustração. Eu nunca havia conhecido alguém tão dúbio, obscuro e problemático. Anton me despertava os melhores e os piores sentimentos e sensações que eu já havia sentido, e todos em intensidades tão profundas e subversivas, que poderiam me levar do céu ao purgatório em questão de segundos.
O meu coração não só se encolheu, mas também pesou com a cruel e recente percepção de que eu estava começando a vê-lo de outra forma, e que eu esperei mais... eu desejei mais, embora não soubesse exatamente o quê. A sensação era como se eu tivesse acabado de perder algo precioso, e na verdade, havia perdido. De maneira tão efêmera, a bolha com todas as boas impressões recém-criadas sobre ele, acabava de ser estourada.
Depois da noite anterior, uma parte de mim, passou a acreditar verdadeiramente que havia algo de bom nele, mas naquele momento, outra só queria vociferar pelo desgraçado infeliz que ele era, por toda a perturbação que me causava, pelo quanto eu o odiava e o quanto desejava fazê-lo desaparecer da minha vida. Eu só queria gritar e gritar até me esquecer do quanto me sentia confusa, e até que aquele aperto no peito desaparecesse.
― Bom dia, Sra. Skarsgard, já posso servir o café? ― A voz de Rose rompeu o silêncio, e eu não consegui me virar para encará-la, francamente, eu nem sabia como estava conseguindo me manter em pé.
― Eu... ― Inspirei fundo forçando-me a desfazer o aperto em minha garganta. ― Estou atrasada, Rose. Sinto muito por você ter arrumado a mesa em vão.
Apertei minha bolsa contra o corpo e desci as escadas. Respondi um "Bom dia" apressado ao passar por Mike enquanto corria até o meu carro. Ao entrar nele e após várias tentativas falhas de colocar a chave na ignição, por causa das mãos vacilantes, consegui sair de lá o mais rápido de pude. Já fora condomínio peguei a rodovia principal, mas não consegui ir muito longe, pois mal conseguia enxergar a estrada à minha frente. Fui obrigada a parar no acostamento.
― Droga! ― gritei batendo as mãos no volante. Meus olhos ardiam, e estavam ficando cada vez mais carregados e turvos.
Eu estava mesmo chorando?
Maldição! Era isso o que aquele vampiro era, uma maldição na minha vida. Não fazia sentido toda aquela perturbação, não por ele. Todos aqueles pensamentos, todas aquelas emoções que eu não queria sentir... eu... eu estava exausta.
A vontade de voltar naquela casa e buscar as minhas coisas para ir embora, era grande. Ele não merecia as minhas lágrimas, não merecia nenhum daqueles sentimentos que estavam me sufocando, e não merecia que eu permitisse as suas palavras me afetarem daquela forma. No entanto, a dor da decepção e da humilhação estava lá, como garras selvagens lacerando o meu coração, e pela primeira vez, eu estava disposta a desistir de tudo.
Peguei o meu celular, e as lembranças que ele trouxe à tona só piorou o meu choro e a minha raiva. Encostei a testa no volante apertando o aparelho entre as minhas mãos trêmulas. Uma ligação, só precisava fazer uma ligação para Avigayil falando que eu estava desistindo, e tudo estaria acabado.
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