C A P Í T U L O 67
Sentimentos desconfortáveis
Uma vez no corredor, busquei a coluna mais próxima e me apoiei, a mão sobre meu estômago embrulhado, e os meus pulmões queimando e trabalhando como loucos para absorver alguma coisa.
Rastejei até o outro lado por entre as sombras e acomodei minhas costas e cabeça na pedra fria. Meus olhos ardiam, e mesmo no escuro as formas começavam a ficar turvas, forçando-me a fechá-los. Engolindo aquele nó amargo, tentei respirar um pouco de cada vez, inspirando devagar e expirando pela boca. Segundos se passaram assim, talvez minutos, até que consegui recuperar minhas forças para continuar andando, continuar fugindo, sabendo que precisava de um tempo sozinha para digerir e controlar aquelas emoções.
Segui até o fim do corredor e subi a primeira escada que encontrei. Passos reverberaram atrás de mim, uma olhada de relance e veio a confirmação de que era o James. Claro que ele não me permitiria ficar sozinha, até esses momentos me eram privados e essa constatação, acumulada a aquela angústia crescente, subverteu-me a uma hostilidade que não me pertencia.
― Eu quero ficar sozinha, James! ― bradei apressando meus passos, e ao perceber que ele insistia em me escoltar, esbravejei ainda mais alto: ― Pare de me seguir agora!
Não era culpa dele, droga, mas na agonia do instante e na necessidade de ter a minha vontade respeitada, pouco me importava. Eu só queria alguns minutos de paz, e os teria nem que precisasse me enfiar no lugar mais escondido daquele castelo.
Ainda apressada, cortei um salão todo aberto, aliviada por não ouvir mais os passos de James. E continuei atravessando cômodo após cômodo, seguindo corredor após corredor, me afastando dos salões iluminados e me embrenhando na escuridão cada vez mais profusa, até me sentir suficientemente distante, até o protesto dos meus pés diminuir os meus passos e uma ardência insuportável em meu tórax, obrigar-me a parar.
Mais uma vez me vi apoiada na coluna de um corredor, de frente para um terraço a céu aberto que margeava um dos seus lados, puxando o quanto conseguia de ar e sentindo meus batimentos desesperados latejando em minha cabeça. Inspirei uma sucessão de vezes olhando em volta. Uma quietude soturna prevalecia naquela parte, a luz da lua lá fora era intensa e havia dilatado as sombras das colunas tornando-as maiores e mais assustadoras, mas não tanto quanto o vento uivando ao longe pelos salões vazios.
Em outra ocasião eu até sentiria medo, mas no momento o meu coração estava tomado por tormentos que descobri serem piores. Suprimindo a dor dos meus pés que na correria por um milagre tinham se mantido firmes naqueles saltos, caminhei para o terraço em direção ao parapeito rochoso. Uma brisa gélida soprava, mas em contraste com a minha pele suada e entorpecida, pouco me afetava, mesmo assim abracei o meu corpo, mais pela solidão do que pelo frio.
Enfim eu estava sozinha, sozinha e perdida, com um turbilhão de pensamentos minando minha mente, tão opressivos e nimbosos quanto a aura noturna caída sobre o vale que se estendia lá embaixo. O aperto no peito ainda era presente, evidência do quanto as minhas emoções insistiam em reprimir a minha razão. Céus, por que era tão difícil ignorar aquele sentimento? Aquela vontade de destruir alguma coisa e ao mesmo tempo de me encolher em um canto e chorar?
Eu devia manter o meu bom-senso, droga!
De nada adiantaria enlouquecer por algo que eu nunca poderia mudar ou impedir. Eu só queria que as circunstâncias tivessem sido diferentes, que minhas emoções não tivessem me cegado e fugido ao controle ao ponto de transformarem aquela experiência num martírio. Não era como se o Anton estivesse beijando a boca delas ou apalpado sexualmente seus corpos, mas maldição, precisavam ser mulheres? Eu não o queria perto de nenhuma mulher! Nenhuma!
Sufoquei um grunhido fechando os olhos e, erguendo o rosto ao relento, inspirei fundo. A sutil vibração do ar ao meu redor me fez abri-los de novo, reavendo a minha atenção para o castelo. A atmosfera começava a se tornar espessa, e não demorou para que uma sensação gelada me percorresse a espinha e se concentrasse na minha barriga, reagindo à força que me golpeava o peito e que se intensificava à cada passo firme e cadenciado que se aproximava.
Era ele. Anton havia me encontrado e eu ainda me sentia abalada demais para desenvolver uma conversa decente. Apertei ainda mais os braços sobre meu estômago congelado, ouvindo quando seus passos se detiveram no corredor. Mantive-me de costas e por mais que estivesse me revirando por dentro, assim permaneci por intermináveis e aflitivos segundos em total silêncio, mas consciente de que ele analisava cada mínimo movimentar do meu dorso nu ou o menor ruído da minha respiração.
Inquieta e com as costas já formigando, comecei a andar ao longo do resguardo resistindo arduamente à vontade de me virar para olhá-lo, mas com todos os sentidos voltados para ele. Pela visão periférica, eu acompanhava a sua sombra me seguindo de longe, coluna a coluna, em meio à escuridão do corredor.
Eu tentando fugir, ele tentando me intimidar.
Por que raios ele estava fazendo isso? Era só dizer logo o que queria ou então respeitar a minha vontade de ficar sozinha!
Parei e outra vez lhe dei as costas, tentando sem nenhum sucesso, me concentrar em qualquer outra coisa que não a sua presença.
― Vai me dizer o que aconteceu ou vai continuar me ignorando a noite inteira?
Por pouco não saltei sob o efeito daquela voz profunda e exigente, e o tempo que levei para me recuperar do susto e assimilar a pergunta, foi o mesmo que cogitei não o responder, mas ele não desistiria fácil, e concluí que por mais que não me sentisse pronta para aquela conversa, estaria sendo muito infantil.
― Não estou te ignorando.
O que era uma mentira em meio à confusão da minha mente? Àquela altura era somente proteção, a minha, a do nosso relacionamento. Apertei os braços à minha volta desejando me encolher, desejando sumir, mas do mesmo jeito que eu estava, permaneci, tão logo sentindo um palpitar agudo me rompendo por dentro, quando uma rajada de vento perfumoso me sobrepôs. Um segundo, e Anton havia se aproximado em sua velocidade vampírica, parando às minhas costas.
― Vire-se e olhe para mim.
Eu não queria, não estava preparada para encará-lo e a minha mente relutou de todas as formas para não ceder ao seu tom autoritário, mas o meu corpo sempre reagia a ele sozinho e antes que eu pudesse evitar, o obedeci, e como eu temia, o meu coração foi submetido à força daquela visão excêntrica.
Não era justo o modo como me afetava, como apenas olhá-lo podia me desestabilizar, e como eu sempre precisava de alguns instantes para assimilar o que parecia ser demais para os meus olhos. Era quase irreal o quanto a noite realçava tudo de mais perfeito e singular que ele possuía. Sob a luz da lua e sem qualquer resquício de sangue, o seu rosto havia ganhado um aspecto mais alvo, enigmático, era quase uma visão sagrada, daquelas sublimes e imperturbáveis que te hipnotizam até que você se angustie o bastante para confessar seus piores segredos.
― Vou perguntar pela última vez. O que aconteceu?
A maneira como aquelas íris frias e inquisitivas me avaliavam reafirmando o quanto ele detestava as minhas mentiras, tornou-se muito para suportar. Desviei meus olhos, deixando-os cair para o lado, tentando engolir aquelas emoções, aquela vulnerabilidade, tentando raciocinar e reaver a coerência que a sua proximidade havia subvertido dos meus pensamentos.
― Não foi uma coincidência, não é? ― indaguei, e reunindo a pouca coragem que me sobrava, busquei os seus olhos. ― Todas elas serem mulheres.
Muito lentamente, Anton inclinou a cabeça e elevou uma sobrancelha, a expressão intensa sendo suavizada. Por um momento acreditei que ele ironizaria o meu ciúme, mas não houve nenhuma provocação, nenhum toque de humor quando a sua voz soou clara e objetiva:
― Não, não foi. Eu prefiro um rebanho feminino.
Maldito! Ainda tinha coragem de admitir isso na minha cara como se não fosse nada!
Por maior que fossem as minhas suspeitas, eu nunca estava preparada para aquela sinceridade crua e inflexível dele. Veio tudo junto ao mesmo tempo, a raiva se convertendo em mágoa e ambas me levando àquele limite cruel capaz de despertar o pior de mim, de onde se derivavam a maioria as minhas fraquezas e inseguranças, e o qual ao menor descuido, me faria desabar.
Eu tentei não desabar. Mas por maior que fosse o meu esforço em me manter firme, não pude impedir as lágrimas que me queimaram os olhos. Apenas busquei disfarçá-las forçando minhas pálpebras para cima, fingindo olhar para o céu enquanto me virava para o outro lado.
Como, como eu o faria entender que algumas das suas escolhas e atitudes me machucavam? Era inútil tentar fazê-lo compreender o que se era incapaz de sentir.
Em silêncio, Anton terminou de fechar a distância entre nós, o súbito aumento da temperatura revelando o quão perto estava, e a oscilação enérgica entregando o movimento da mão que ele elevou para me tocar, mas antes que pudesse fazê-lo, me afastei. Ele não tentou se aproximar outra vez, mas ouvi seu exalar extenso, meio cansado, de quem não parecia estar disposto a se envolver em uma discussão àquela altura da noite.
― Eu estava me alimentando, fada.
Era o que eu tentava me convencer, mas que não mudava absolutamente nada.
― Eu sei que estava, mas isso não tornou mais fácil te ver tocando nelas, ver a sua boca nelas. ― A sensação de sufocamento ameaçou voltar, mas engoli todos os soluços de volta e limpei rapidamente os rastros úmidos das minhas bochechas. ― Eu odiei, droga!
Por que sempre tinha que ser tão difícil?
Até a sua passividade era opressora e me descontrolava. A indiferença com que ele tratava os nossos problemas, como se não existissem, me reduzia a uma completa imbecil imatura por não ter um milésimo da sua experiência, ou uma perturbada por ver coisas onde aparentemente não havia. Não importava qual a barbárie que Anton tivesse aprontado, era sempre eu quem saía como a louca inconsequente da situação.
Pelo menos era assim que eu me sentia, e à cada nova discussão, ao invés de ficar mais fácil lidar, parecia mil vezes pior. Conseguir controlar meus sentimentos nunca era uma escolha, eu simplesmente não conseguia, sobretudo porque ele não me oferecia nenhuma segurança emocional.
― Você se casou comigo sabendo o que sou. É assim que me alimento há três mil anos e...
― Não ― neguei virando-me e o interrompendo a tempo de impedir que suas conclusões invertessem os fatos ―, não é esse o problema e você sabe disso. Não estou recriminando a maneira como você se alimenta, sou perfeitamente capaz de entender e aceitar, mas também não sou idiota, Anton. Não sei até onde iam as suas intenções com aquelas mulheres, mas a beleza delas comprova que foram escolhidas para atender a alguma exigência.
Numa contradição irritante à toda tempestuosidade que fervilhava dentro de mim, ele enfiou as mãos dentro dos bolsos da calça, e com toda calma do mundo, deu os últimos passos até o parapeito, observando as sombras que se estendiam lá fora.
― Beleza é uma percepção relativa ― afirmou, e ao girar o rosto para mim, procurou meus os meus olhos. ― E para aqueles que já possuem um ideal de perfeição, é ainda mais difícil enxergá-la em outros lugares. ― A minha tentativa de entender aonde ele queria chegar, foi inútil, e parecendo perceber isso, Anton repuxou um sorriso discreto, mas discretamente pretensioso. ― O que quero dizer é que bonitas ou não, pouco me importa desde que tenham sangue quente e abundante transbordando nas veias.
― Se é só o sangue que importa, então por que você não se alimenta de homens? Por que não escolheu um dos funcionários que nos serviram, ou o James e Dacian que já estavam lá?
Deuses. Se eu havia conseguido impedir que meu exaspero transpusesse a minha voz, com certeza o havia entregado com aquela pergunta. Prova disso foi a cadência espontânea de sons roucos e vibrantes que Anton soltou, e que me fez arquejar perdida entre o forte desejo de calá-la com a minha boca ou gritar para que me explicasse qual era a maldita graça.
― Isso não tem graça! ― Cruzei meus braços fitando-o com firmeza. Aos poucos a sua risada cessou, até ser reduzia a um sorrisinho burlesco que me fez sair em minha defesa numa tentativa de parecer menos boba. ― Está bem, talvez eu tenha exagerado ao sugerir James ou Dacian. Eu nem sei se vampiros se alimentam uns dos outros, mas seguindo a lógica, sangue é sangue e não deveria importar a espécie ou o sexo.
― A sua lógica é pertinente, mas existem alguns fatores que transcendem o nosso livre-arbítrio, portanto, a anulam.
― Do que você está falando?
Anton virou-se de costas para o resguardo e, apoiando os quadris nele, cruzou as pernas à frente, a sua atenção pairada sobre mim.
― O que estou falando é que assim como o sangue de animais, o sangue de outro vampiro não me sustentaria nem por duas horas.
Certo, a sua resposta definitivamente havia me intrigado. Vampiros eram os seres mais fortes e resistentes que existiam, e era contraditório que a longevidade que guardavam em seu sangue, não tornassem seus efeitos também superiores ao sangue das outras raças. A curiosidade falou mais alto e foi essa dúvida que levantei.
― É fiel a sua observação. O poder de cura e regeneração que o nosso sangue possui, o torna superior ao de vocês, no entanto, não nos nutre da mesma forma.
Foi mais forte do que eu, sem que me desse conta já havia perguntado o porquê, e me peguei ainda mais atenta e interessada, apenas ouvindo enquanto ele, com aquele ar inabalável e muito racional, explicava que nada do que Chraos fazia era acidental ou impensado, e que a sua inteligência considerada insana pela maioria, era na verdade muito lógica e tão perspicaz, que subjugava a dos outros Deuses, o que eu não podia discordar.
Lembrei-me do que havia lido no livro de Avigayil, quando Chraos se revoltara por não o deixarem criar uma companheira para sua cria. E Anton acabava de me confirmar que para despertar o interesse de Dracaos pelo sangue das raças superiores, ele precisou subtrair os efeitos do sangue das raças inferiores. Era por isso que vampiros não se alimentavam de animais, e aqueles que optavam por esta dieta, logo a abandonavam ou viviam uma vida de sacrifícios que na maioria das vezes os levavam à loucura.
No entanto, a sagacidade do deus dos vampiros não havia parado por aí. Ninguém sabia afirmar suas razões, se era pura dominação sobre as outras raças, se era autopreservação da sua espécie, ou ainda se era uma forma de garantir que outros vampiros fossem criados, ou apenas uma maneira de sustentar a longevidade deles, mas Chraos criara seres para se nutrirem unicamente da vida, portanto, o sangue que já havia passado pelo processo da morte, como o dos vampiros, também não os sustentavam. Com exceção do sangue do Anton, Eleonora e Vincent, que guardavam a imortalidade e que poderiam suprir qualquer outro vampiro, exceto eles mesmos.
Tudo fazia tanto sentido que chegava a ser assustador. Muitas vezes conforme ele falava, me peguei abrindo a boca sem saber realmente o que dizer. Anton ainda mencionou que alguns vampiros costumavam alimentar suas crias com seu próprio sangue por algum tempo, mas somente para reforçar o laço entre cria e criador. Contudo, essa prática tinha sido proibida há séculos por Vincent e Eleonora, por acarretar num tipo de escravização e subserviência que ia contra os preceitos de dignidade, respeito e consciência adotados por eles.
Eram tantas informações novas, que levei um tempo digerindo-as, por isso demorei a me dar conta de que Anton havia parado de falar. Seus olhos atilados permaneciam em mim, cheios de vigor e graça, provavelmente por ter percebido o quanto conseguiu me impressionar, e foi essa presunção que me fez perceber que eu havia caído em uma armadilha, e agora eu me encontrava ainda mais irritada por ter me deixado desviar tão fácil dos verdadeiros motivos daquela conversa.
O maldito era ardiloso, era um manipulador nato, espantosamente genial e experiente, o que o tornava ainda mais perigoso. Não era a primeira vez que eu me deixava cair na sua lábia, só que ele estava enganado se acreditava que com algumas palavras, me faria esquecer. Eu poderia não ser tão inteligente quanto ele, mas era determinada, e estava disposta a vencê-lo pelo cansaço.
― E onde que nessa história explica o fato de você não poder se alimentar de homens, humanos, qualquer um, mas homens?
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