C A P Í T U L O 21

Uma péssima espiã

          ― Ontem à noite quando cheguei, eu o vi no mesmo lugar que havia deixado mais cedo. Edgar me disse que chegou para trabalhar às seis da manhã, e que o meu carro já não estava lá, ou seja, quem quer que o tenha pegado, o levou de madrugada. Então preciso das imagens das câmeras externas durante esse período, especificamente as que ficam próximas ao portão.

          ― Sinto muito, Sra. Skarsgard, mas as únicas câmeras que possuímos capazes de captar imagens de fora, se convergem somente para o portão e um pedaço da estrada que fica exatamente na frente dele ― afirmou Mike afrouxando o colarinho da camisa preta. Era a terceira vez que ele fazia isso desde que eu entrara na sala de segurança. ― Veja. ― O vampiro apontou para um monitor em que a câmera estava virada para o lado oposto de onde eu parava o meu carro, pegando apenas uma parte do portão, uma parte da estrada à frente dele, e a pequena caixa do interfone do outro lado. ― Onde a senhora parava o carro, é um ponto cego para as câmeras.

          Aquilo era loucura! Tive vontade de gritar.

          Primeiro cheguei a pensar que o meu carro tivesse sido colocado dentro da garagem por algum dos seguranças, mas ele não estava lá e em nenhum outro lugar. Como algo do tamanho de um carro havia simplesmente sumido? E como podia ter sido roubado de dentro de um condomínio de alta segurança? Ainda mais um carro popular, velho, e com um dos lados amassado. Não tinha lógica.

          ― Isso não faz sentido! Você tem certeza de que não viu nenhum movimento suspeito, Mike? ― Virei-me para ele, vendo-o rapidamente bloquear o celular e colocar dentro do bolso do terno. ― Não tem nada fora do comum nessas câmeras?

          ― Não, Sra. Skarsgard, sinto muito.

          Mais essa! Que espécie de chefe de segurança era ele, que não sabia nem o que acontecia nos arredores da propriedade? Mike levou a mão à nuca desviando o olhar para os monitores, o corpo robusto parecia mais rígido do que o normal, e a expressão, apesar de estoica, tinha alguns traços de nervosismo. Alguma coisa estava acontecendo com ele, e eu iria descobrir.

          ― Mike ― um tanto irresoluto, seus olhos escuros pousaram em mim ―, o Anton tem alguma coisa a ver com o sumiço do meu carro?

          ― Não, Sra. Skarsgard, claro que não. Como eu disse, não houve nenhum movimento suspeito essa noite. O Sr. Skarsgard nem saiu de casa pela madrugada.

          Com coisa que ele precisava ter saído para estar envolvido.

          Era óbvio que Mike não o entregaria. Anton tinha o domínio e a lealdade de todos os seus funcionários de uma maneira quase surreal, e eu sabia que não obteria uma confissão do chefe de segurança, mas precisava avaliar a sua reação à minha pergunta, e o estranho era que, apesar dos gestos suspeitos, a sua resposta viera rápida e nem um pouco hesitante.

          ― Certo, obrigada de qualquer forma.

          Saí daquela sala ainda mais intrigada do que havia chegado lá, mas não menos determinada, e muito raivosa. Eu ia descobrir o que tinha acontecido com meu carro, nem para isso eu tivesse que dar fim à minha relação pacífica com o Anton, porque se o próprio estivesse envolvido com o sumiço, ele iria se arrepender, ah se ia. Já na porta do seu escritório, não bati, apenas entrei e segui para o laboratório. A música alta, desta vez uma instrumental com um violino sobressalente, cessou quando eu o adentrei.

          ― Tsc, tsc... ― Anton murmurou com um menear restritivo, sua atenção sobreposta ao motor à sua frente. ― Isso está virando um péssimo hábito, fada. Não quero você entrando no meu escritório quando bem entender, e sem bater na porta.

          ― O meu carro sumiu e você é o culpado! ― o acusei logo.

          ― Mesmo? ― Anton inclinou uma sobrancelha e, muito lentamente, moveu os olhos da peça de metal, para mim. ― Você me acusa com base em que?

          Já havia previsto que ele não assumiria nenhuma responsabilidade, e que, muito menos, mudaria sua expressão imparcial ante uma acusação. Contudo, àquela altura, eu já via essa sua reação comum como uma afronta. E droga, eu não tinha nenhuma prova para incriminá-lo, e nem ao menos sabia por que ele faria isso, a não ser que fosse só para me irritar.

          ― Não tenho provas de que foi você, mas por sua causa, tive que deixá-lo do lado de fora, e agora ele simplesmente sumiu! Ou você fez isso, ou alguém o roubou. Quero o meu carro de volta, e você vai conseguir isso pra mim.

          Em um movimento tão calmo que chegava a ser irritante, Anton abandonou a peça metálica que segurava sobre a mesa, então respirou fundo e exalou o ar devagar.

          ― Primeiro, quem iria querer roubar aquela lata velha? ― Eu estava pronta para devolver o seu insulto quando ele me interrompeu, a voz branda e o olhar imperturbável. ― Segundo, não me responsabilizo pelo que acontece fora da minha propriedade. Porém... ― suas palavras cessaram, e os seus olhos adquiriam leve vestígio de humor, ou seria ironia? ―, já que você pediu tão educadamente pela minha ajuda, liberarei o James para que fique à sua disposição até que o encontre.

          ― Ótimo, vou precisar que ele me leve até a administração do condomínio, hoje e agora. ― Cruzei os braços e elevei o queixo, atenta a qualquer mínima reação fora do normal que ele pudesse ter. ― Se você não é o responsável pelo sumiço, então o condomínio será responsabilizado.

          Anton franziu a testa suavemente, e tão breve o desfez, aquelas íris exceleram insultuosas. Por um momento ele apenas me observou, quase como se me desafiasse abaixar o olhar e recuar. Mas não o fiz.

          ― James está de folga hoje ― articulou ele, levando uma das mãos ao bolso.

          Maldito! Aquele cretino era o culpado, e agora estava me enrolando!

          ― Eu sabia...

          ― No entanto ― interrompeu-me capturando o celular de cima da mesa, no qual começou a digitar algo. ―, pedirei ao Howse que a leve até lá.

          Certo, agora ele não parecia mais tão culpado, pois se fosse, ele não me deixaria ir até a administração do condomínio, ou deixaria? Ah droga, a verdade era que com a trégua das últimas horas, eu havia perdido o meu senso de julgamento no que dizia respeito a ele, e já estava quase acreditando que Anton não estava envolvido.

          ― Mike a espera na garagem ― finalizou largando o celular de lado.

          ― Obrigada ― agradeci relanceando uma olhada duvidosa para ele, então saí e segui direto para a garagem.

          Poucos minutos depois, Mike estacionava o sedã em frente à escadaria de granito polido de um pequeno prédio moderno de três andares, que ficava próximo à entrada do condomínio. Desci do carro esfregando as mãos suadas na calça jeans, com a determinação correndo quente em minhas veias, e aquela tensão me corroendo os nervos.

          Subi os degraus e, ao perceber que subia sozinha, parei e me virei para trás encontrando Mike parado na calçada, olhando despreocupadamente para o céu limpo do meio da tarde como se não tivesse outra coisa mais importante para fazer.

          ― Você ― o chamei me apoderando da sua atenção ―, vem comigo.

          Ele me olhou incerto, os dedos puxando e ajeitando os punhos da camisa por debaixo do paletó, de um lado e de outro, denotando uma certa ansiedade.

          ― Tem certeza, Sra. Skarsgard? Seguranças não são bem-vindos nesses lugares. ― Que absurdo era esse? Me pareceu uma desculpa das mais descaradas.

          ― Você será bem-vindo onde eu for bem-vinda. Além do mais, preciso intimidá-los. ― E com toda certeza eu conseguiria com o Mike ao meu lado.

          Sorrindo fraco, ele se aproximou, e então entramos juntos no edifício. Ao me identificar para a morena da recepção, não demorou muito para que eu fosse recebida pelo síndico, um senhor de meia-idade com cabelos e olhos acinzentados, rosto pálido marcado pelas linhas de expressão, mas que lhe dava um ar muito complacente e carismático, e que me foi apresentado como Arnost Perrault.

          ― Sra. Skarsgard, é um enorme prazer conhecê-la. Em que posso ajudá-la?

          Sentei-me na cadeira que me foi oferecida em frente à sua mesa, enquanto Mike permaneceu em pé ao meu lado. Expliquei tudo o que havia ocorrido, deixando-o visivelmente indignado, pois, segundo ele, coisas como essa jamais aconteceram no condomínio, e que todo o lugar era rigidamente monitorado por câmeras.

          Ao final daquela conversa, eu estava arrasada pela segunda vez no dia, tentando me reerguer e acreditar no otimismo daquele senhor, que me garantira que iria resolver o caso com prioridade, por se tratar de algo muito sério e inadmissível. Deixei o número do meu telefone com ele para caso descobrisse algo, agradeci a atenção e disponibilidade, e assim segui para fora dali, de volta para casa.

          Uma hora depois, eu já havia ligado para a Sophi e dado uma desculpa qualquer por não poder ir. Ela não acreditou, claro, mas também não me exigiu detalhes, finalizando a nossa conversa com um severo "Temos muitas coisas para conversar, e você não vai conseguir fugir de mim por muito tempo.".

          Não sabia a razão de não ter contado a verdade à minha amiga, provavelmente fora porque era algo que nem eu mesma acreditava estar passando. Eu estava me sentindo triste, e terrivelmente perdida, sem saber o que pensar, acreditar ou esperar. Poxa, era o meu carro, o meu único bem material de relevância, e nem sequer tinha seguro.

          Minha blusa e calça jeans já haviam sido trocadas por um vestido confortável, quando me deitei na cama imaginando mil e uma coisas sobre o que poderia ter acontecido. Teorias e teorias, e em todas elas me aparecia a imagem daqueles perturbadores olhos azuis.

          Ah, Anton, por que você tinha que ser uma incógnita tão grande?

          Me peguei relembrando de cada segundo que passei ao seu lado naquele dia, da nossa conversa, do incrível riso dele, e até mesmo do gosto delicioso da sua comida. Comida... Só de pensar nela, eu já sentia fome novamente, e foi este o motivo que me levou a sair do quarto.

          Eu andava distraída pelo corredor a caminho da escada, quando, ao passar pela sala, reparei através da parede de vidro, uma movimentação incomum na piscina do pátio. A curiosidade falou mais alto, e eu me aproximei para ver melhor. Lá embaixo, sob o céu avermelhado do fim da tarde, uma silhueta forte e musculosa se projetava de dentro das águas turquesas, enquanto braços se esticavam para frente, um após o outro, num movimento habilidoso e constante.

          Aquele vampiro era tão perfeito que não consegui desviar meus olhos dele, me perdendo completamente no tempo e espaço, apenas o observando. Os segundos começaram a passar devagar, e cada movimento parecia demorar uma eternidade, uma que eu desejava secretamente que nunca acabasse. Mas então ele parou, e pude ver aqueles ombros e costas definidas emergindo da água, à medida que ele subia a escada que se lançava em direção à borda.

          Anton parou a poucos passos da beirada, ainda de costas, passou a mão sobre os cabelos para retirar o excesso de umidade, e desceu as mãos pelo tórax até a sunga preta que usava. Sem que eu pudesse prever, ele passou os polegares para dentro dela, e a puxou para baixo até se livrar totalmente da roupa de banho.

          Senti aquele baque forte no peito, mas mal tive tempo de absorver a visão da sua bunda desnuda, pois ele virou a cabeça para o lado e olhou para cima na minha direção, como se soubesse o tempo todo que eu o espiava. No susto, dei um pulo desajeitado para trás e acabei esbarrando na mesinha que ficava ao lado da poltrona, derrubando a escultura que se encontrava sobre ela e caindo de bunda no estofado macio.

          Droga! Eu quis esbravejar, mas me contive em apenas ouvir as pequenas esferas metálicas da escultura, que ainda quicavam e se espalhavam pela sala, ecoando a minha culpa pelos quatro cantos.

          Apressadamente me joguei de joelhos no chão e capturei o conjunto de metal flexuoso, o voltando para o lugar, e em seguida, comecei a procurar pelas esferas. Primeiro encontrei três das cinco que existiam, a quarta estava debaixo da poltrona, e tive que me contorcer toda para pegá-la. Por último, a quinta, só a encontrei porque ao esbarrar o meu pé, ela saiu rolando e eu tive de sair engatinhando atrás dela.

          Num simples piscar de olhos, a vi ser parada na minha frente por um pé branco de veias azuladas, dedos longos e unhas bem cortadas. Naquele segundo, tudo que havia dentro de mim se contraiu, e todo o sangue das minhas veias, congelou, enquanto uma onda súbita de desespero e vergonha me engolfavam.

          Eu queria me mover, queria me levantar, mas a minha mente estava integralmente voltada para o que os meus olhos viam, à medida que eles se arrastavam sem pressa pelo corpo magnífico à minha frente, com uma toalha preta enrolada nos quadris, abdômen nu, braços cruzados e aquelas transparências azuis me fitando cheias de prepotência.

          Maldição.

          Num sobressalto me coloquei de joelhos, e eu não saberia dizer por quanto tempo fiquei assim, presa àquelas sensações quentes e impulsivas que somente ele era capaz de me provocar. Só quando precisei inalar mais ar, que me dei conta da posição estranha em que eu estava. Meus olhos caíram sobre o volume delineado por debaixo do tecido felpudo, e tão rápido se abriram espantados, tão rápido caí para trás de bunda no chão.

          O meu corpo estava dormente demais para sentir o impacto, as minhas forças insuficientes demais para me levantar, e a vergonha era grande demais para eu conseguir falar alguma coisa. Anton, que continuava me observando com aqueles olhos transcendentes e sensuais, abaixou-se devagar, e pegou a esfera do chão. O objeto me foi estendido, ao passo que sua atenção desceu insolentemente para as minhas coxas, especificamente para o meio delas.

          Na iminência do momento, fechei as penas e puxei o vestido para cobrir a minha calcinha, e só então peguei a esfera da sua mão.

          ― Da próxima vez, tente ser discreta, e eu fingirei não ter percebido você me espionar. ― O tom enrouquecido e sussurrante sugeria uma promessa, que me fez corar ainda mais, se era possível.

          Anton se levantou e, com a mesma calma, seguiu rumo ao corredor.

          ― Fada ― chamou-me parando a um passo de sair da sala, e eu, ainda sentada no chão, só consegui sibilar um murmúrio para que soubesse que eu o ouvia. ― Você está com fome?

          O que era isso agora? Só faltava aquele vampiro poder ler mentes. Se bem que dado o vexame dos últimos minutos, eu já nem sentia mais fome, mas por alguma razão, resolvi confirmar.

          ― Um pouco... por quê?

          Ele ficou calado durante um longo tempo, e eu já estava prestes a repetir a pergunta, quando sua voz ressonou com uma casualidade esmagadora.

          ― Me encontre daqui a quarenta minutos na garagem, vamos sair para comer alguma coisa.

          Assisti seu corpo se mover elegantemente corredor adentro, até desaparecer do meu campo de visão. "Vamos sair para comer alguma coisa". Suas últimas palavras embaralharam o meu cérebro até darem um nó, tamanha era a minha surpresa. Aquilo havia sido um convite assim como a minha mente insistia em me dizer, ou era apenas um delírio?

          Ah céus.

          Respirei tão fundo que o meu corpo todo estremeceu.

          Coloquei a esfera em seu devido lugar e corri para o meu quarto. Quarenta minutos, era o que eu tinha. Trinta após o banho, e todos eles, passei tentando escolher uma roupa. Por que de repente nenhuma delas parecia me agradar? Eu nunca me importava com essas coisas e nunca tivera problema em escolher algo para vestir, mas naquele momento, nem as minhas melhores roupas caíam bem em mim, e o fato de não saber aonde iríamos, só piorava a situação. 

          Não, eu não era tão tola a ponto de acreditar que seria um encontro. Jamais. No entanto, eu não queria sair de qualquer jeito. 

          Faltando apenas cinco minutos, consegui escolher uma roupa casual, nem muito simples e nem tão chamativa. A saia preta de cintura alta que me abraçou os quadris até a metade das coxas era elegante, e combinava com a delicada blusa de seda pérola, cujas alças desciam trançadas pelas minhas costas, deixando boa parte delas à mostra. Em meus pés, calcei sapatos pretos de bico arredondados e saltos bem altos.

          Não pude deixar de me lembrar da Sophi, se ela me visse naquelas roupas, ficaria orgulhosa de mim.

          Perfume, bolsa, cabelos soltos, e em quarenta minutos exatos, eu descia o último degrau da escada da garagem. Logo à frente, exalando toda a sua energia e poder dentro de coturnos, calça preta rasgada na região dos joelhos, camiseta, e uma jaqueta de corte militar que só aumentava o seu impacto fatal, estava ele, encostado em uma moto grande.

          Espera aí, uma moto?

          ― Péssima escolha de roupa, fada ― advertiu ele se endireitando e subindo habilidosamente no veículo de duas rodas.

          ― Nós... nós vamos nisso? ― questionei perplexa apontando para o objeto sob seus quadris. Anton me lançou uma olhadela impaciente, numa óbvia resposta à minha pergunta. Quase não pude acreditar. Nunca nem havia visto aquela moto ali, e agora ele queria me colocar sobre ela! ― Espera, vou subir pra colocar uma calça.

          ― Nem pense nisso, não vou esperar. ― Mas que cretino! Meus passos se detiveram no meio do caminho de volta para escada, virei-me e cruzei os braços. ― Sobe.

          ― Não vou subir nesse negócio de saia, já que você não pode me esperar, então não vou.

          Anton balançou a cabeça com uma expressão de falsa lástima.

          ― É realmente uma pena, terei que ir sozinho à Tuffi's Cioccolato ― falou ele pegando o capacete.

          ― Na Tuffi's? ― A minha voz havia se tornado um sussurro abalado, mas carregado de desejo só de pensar nos doces maravilhosos que existiam lá.

          Aquela confeitaria era simplesmente a melhor do mundo, e analisando melhor, percebi que perder essa oportunidade era como um atestado de loucura. Além do mais, o meu carro havia sido roubado, e eu precisava de algo para me alegrar.

          ― Tchau, fada.

          ― Espera! ― gritei correndo até ele. ― Como eu subo nisso? 





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