C A P Í T U L O 13

Os extremos do (des)controle

          Após o jantar, Nicolae e eu continuamos nossa conversa na sala de estar. Outra diferença que acabei descobrindo, era que ao contrário do Anton, ele era um livro aberto. Até tentei fazer perguntas sobre aquele ser que era uma incógnita na minha vida, mas Nick falava demais e não me dava qualquer oportunidade. Ele me contou vários fatos importantes sobre a sua vida, suas desilusões, suas crises existenciais, entre outras coisas, mas sempre sem perder o humor, fazendo piadas e rindo de si mesmo.

          ― Então essa foi a decisão mais importante da sua vida, adotar um cachorro? ― questionei ainda me recuperando do riso ante a sua expressão exageradamente sentimental.

          ― Na verdade, essa foi a segunda decisão mais importante de toda a minha vida. A primeira foi decidir se eu queria me tornar um vampiro. ― Amorteci no mesmo segundo, porque era um assunto que tanto me instigava quanto atordoava.

          ― Eles te deram opção de escolha?

          ― Absolutamente. Tanto eu, quanto os meus irmãos, escolhemos nos tornar vampiros. Todavia, ao contrário deles, quando escolhi, eu não estava à beira da loucura ou da morte. ― Eu não sabia por que ainda me surpreendia à cada coisa que me era revelada sobre eles.

          ― E por que você escolheu se tornar um vampiro?

          ― É uma longa história, está disposta a ouvir? ― Anuí num gesto premente. Nick pigarreou e, sem desfazer o sorriso, prosseguiu. ― Vivi os meus primeiros sete anos de vida com os meus pais biológicos e cinco irmãos, em uma vila situada no que chamamos hoje de Irlanda. Não obstante, nosso ínfimo e modesto vilarejo sofreu um ataque dos bárbaros meridionais que estavam limpando a costa do, até então, canal de Brogan, hoje conhecido como mar Céltico e mar da Irlanda. A vila estava cercada, eles estavam saqueando tudo e queimando o que não queriam, incluindo os moradores da nossa vila. O meu pai, que estava lutando com os outros, fora o primeiro da nossa família a morrer. No desespero, minha mãe nos arrastou para casa, e escondeu os meus três irmãos mais velhos debaixo das palhas da cama. Já os meus dois irmãos do meio foram colocados atrás da madeira da mesa que fora encostada na parede, e eu fui colocado dentro de um balaio. A minha mãe foi a segunda a morrer, depois os meus irmãos foram encontrados e assassinados um a um, enquanto eu permaneci escondido, inteiramente suspenso e paralisado, assistindo a tudo por uma fresta existente entre as fibras do cesto. E assim fiquei, até eles sumirem, e os gritos pararem.

          Foi inevitável, uma lágrima acabou me escapando.

          ― Oh, não chore, sweetie, o meu passado devasso não é merecedor das suas lágrimas. ― Nick apoiou o braço no encosto do sofá, numa atitude natural e relaxada. ― Prepare-se, pois a parte mais indigna vem agora. Fiquei um bom tempo sem conseguir me mover, ainda dentro do cesto, e acredito que só saí de lá, porque tinha me urinado todo e estava começando a feder. ― Limpei o rosto e acabei rindo, mas só porque não tinha como não rir da sua expressão espirituosa. ― Quando saí, não encontrei ninguém vivo, e a nossa casa era uma das únicas que ainda permanecia em pé. Apenas fiquei sentado por um tempo incontável, em meio aos restos queimados, sem saber o que fazer. Até que ao anoitecer, fui encontrado pelo Anton.

          ― Ele... ele que te encontrou? ― Meus lábios se entreabriram. ― Ele te ajudou? Te salvou? ― Nick riu da minha exasperação, e automaticamente fui tomada por uma onda de vergonha.

          ― Bom, ele estava caçando, e eu era uma possibilidade de alimento...

          ― Ah não... ― o interrompi rapidamente ―, não quero saber o resto. ― Meu coração se contraiu com todas aquelas imagens terríveis do Anton mordendo uma criança de sete anos.

          Nicolae não hesitou em soltar uma gargalhada de contemplação.

          ― Fique tranquila, ele não me mordeu, apenas me abandonou lá. ― Apenas? Isso era tão ruim quanto mordê-lo. ― No entanto, voltou para me buscar quando o dia estava amanhecendo. ― Certo, o Anton não era tão terrível assim, e talvez isso tenha motivado o maior dos meus sorrisos daquela noite. ― Porém, devo confessar, ele quase me abandonou no meio do caminho, mas não posso condená-lo por isso. Eu era um moleque chato, o que me rendeu o apelido de pirralho irritante. O importunei durante todo o percurso, e só parei quando ele me amarrou de cabeça para baixo no dorso do cavalo. ― Não consegui segurar o riso espontâneo que me sobreveio ao imaginar a cena, Nick precisou esperar alguns segundos até que eu me controlasse para poder continuar: ― Fui levado para Eleonora e Vincent que, embora nunca tivessem feito tal coisa, me adotaram sem qualquer restrição. Eles optaram por esperar pelos meus dezoito anos, para me fazerem a inevitável e tão aguardada pergunta.

          ― Pergunta?

          ― Se era o meu desejo ser transformado. ― Nicolae correu a mão pelos cabelos lisos, despreocupado, se desmanchando em um sorriso. ― Claro que era uma pergunta para qual eu já tinha uma resposta expressa e indubitável. Eles eram a minha família e eu queria ser exatamente como eles, um vampiro.

          Ao final da sua história, seus olhos brilhavam com tantas emoções genuínas, que o meu peito pareceu pequeno para conter toda a admiração que senti por eles. Antes eu já gostava do Nick, mas ouvir seu relato de vida, e ver o carinho e consideração que ele tinha para com a sua família, só aumentara a minha estima por ele, uma estima verdadeira, daquelas que eu imaginava que alguém teria por um irmão.

          ― Nossa, Nick, eu nem sei o que dizer. É uma história trágica, mas é linda.

          ― Não é necessário dizer, eu sei, sweetie. Esta foi a mais digna, mais importante e a mais satisfatória decisão da minha vida. Ao contrário do cachorro, o qual adotei, e que logo morreu me deixando com o coração despedaçado.

          O meu riso se aflorou outra vez, mas só durou até o segundo em que os pelos da minha nuca se arrepiaram, enquanto a atmosfera se tornava intensamente quente e rarefeita. Consciente da presença dele, a minha respiração se interrompeu e, involuntariamente, meus olhos pousassem em sua figura parada próxima escada que descia para a garagem.

          Seus olhos estavam escuros, apontados para mim, e a sua expressão, rígida como o mármore sob os nossos pés. Ele segurava o paletó pendurado nos dedos, jogado por sobre os ombros, sua camisa cinza estava para fora da calça preta, a gravata solta, mas ainda no pescoço, e o seu colete todo aberto. Dada a sua postura tesa, e a dureza do seu olhar em mim, eu poderia pensar que Anton estava irritado com alguma coisa, mas eu sabia que era apenas uma ilusão da minha mente, porque ele nunca deixava qualquer emoção o dominar.

          ― Ora, ora, se não é o meu caro irmão dando o ar da sua digníssima graça em sua própria casa ― gracejou Nick se levantando. Reparei que ele enchera os pulmões de ar e, após soltá-lo de uma vez, deu uma risada um tanto satírica. ― Outra noite anônima de carne fresca?

          Anton nem se dera o trabalho de olhar para ele, seus olhos continuavam em mim.

          ― Só perguntarei uma única vez, o que você está fazendo aqui, Nicolae? ― inquiriu ele num tom profusamente autoritário, fazendo com que a sua voz soasse ainda mais cavernosa e sombria.

          Houve uma mudança repentina no clima, ele se tornara ainda mais estranho e pesado. Se antes eu tinha somente a impressão de que Anton estava nervoso, naquele momento, quase tive certeza. Alguma coisa me dizia que era hora de me retirar, por isso, mais do que depressa me levantei do sofá.

          ― Vim fazer companhia para a sua graciosa esposa ― respondeu Nick num tom zombador andando em sua direção, a passos muito cautelosos.

          Anton permaneceu parado no mesmo lugar, mas percebi quando a sua mão se fechou, e o seu maxilar ficou ainda mais pronunciado com o apertar dos dentes. Naquele segundo eu senti, senti vivamente a sua vibração imperiosa misturada com uma tensão que parecia ser pura fúria, e isso me causou alguns tremores.

          O que estava acontecendo com ele?

          Eu não tinha ideia, mas sentia que precisava sair dali antes que aquela apreensão asfixiante aumentasse e acabasse rendendo alguma briga que me envolvesse. Dei meus primeiros passos em direção a escada, sentindo minhas pernas vacilarem à cada centímetro que me aproximava dele.

           ― Boa noite, Nicolae, foi um prazer revê-lo. ― Me despedi de longe, mas Nick fizera questão de me puxar para um abraço e um beijo na bochecha.

          ― O prazer foi todo meu, minha cara ― despediu ele, abrindo aquele sorriso meio infantil que, ao contrário de mim, demonstrava que ele não parecia nem um pouco preocupado. ― Tenha uma ótima noite.

          Virei-me e segui direto para a escada, me controlando para não olhar para o Anton ao passar por ele. Comecei a subir os degraus, e ainda estava na metade deles, quando ouvi o som de algo se quebrando, um ruído muito parecido com o da perna da vampira que o Anton quebrara. Parei bruscamente no último degrau, sentindo a apreensão me travar e o desespero consumir a minha mente.

          Céus, o que estava acontecendo?

          Uma das gargalhadas de Nick ecoou alto.

          ― Porra, essa doeu ― protestou ele sem perder a entonação gozadora. ― Qual o problema? A quantidade de dignidades descartadas hoje não foi o suficiente?

          ― Vá embora, e não ouse voltar aqui sem ser convidado por mim ― Anton rosnou ignorando a pergunta do mais novo.

          Ouvi passos retumbar, e então, o tilintar de um copo.

          ― Meu caro irmão, foi você quem solicitou a minha ilustríssima presença. Estive na Skar por volta das seis horas da tarde, todavia, Ezra me disse que já havia ido embora, então, aqui estou, o aguardando a exatas cinco horas. Não que isso tenha sido um martírio, pelo contrário, foram horas intensamente prazerosas com uma companhia deleitável, e convenhamos, de uma beleza demasiado excitante.

          Um tipo de trincar estrondoso reverberou seguido de um ressoar vibrante, como se o mesmo copo que eu ouvira anteriormente, tivesse sido apertado até o seu limite e se desfeito em vários pedaços. Outra risada do Nicolae não demorou para surgir, e então o seu tom jocoso voltara no mesmo ritmo, sem pressa.

          ― Deveria ter tomado banho antes de voltar para casa, você está fedendo às suas raposas. A propósito, elas foram suficientes? Ou agora há um "mas" ao final de noites como esta? ― Raposas? Do que ele estava falando?

          Eu mal conseguia me mover do lugar, mas com muito custo me encostei na parede para tentar diminuir as trepidações das minhas pernas. Alguns cacos de vidro pareciam estar sendo jogados em alguma superfície metálica, a qual deduzi ser a da pia do bar, logo veio o barulho de uma torneira aberta, e então, o silêncio sem qualquer resposta do Anton.

          Nick não se intimidou em prosseguir.

          ― Tem certeza de que não está confundido sentimentos com compulsão? Reação com controle? Talvez garotas facilmente manipuláveis, que se calam, rastejam e sangram aos seus pés, tenham perdido a graça. Talvez agora a sua necessidade seja diferente da fisgada do pecado, ou o pecado apenas tenha se tornado outro, um mais sensível, vulnerável, ainda mais atraente e desejável.

          ― Acredite, você não vai querer começar isso agora, Nicolae, então pegue as suas suposições de merda e suma da minha frente antes que seja tarde. ― A voz do Anton soara cortante, e ao mesmo tempo, desprovida de qualquer emoção, o que não impediu o Nick de rir.

          ― Tão claro quanto uma manhã de verão, e tão insano quanto uma tempestade de gelo. Muito sei, foram apenas suposições de merda ― replicou ele em tom zombador. ― Contudo, já que preciso sair da sua frente, estou disposto a ir atrás da beldade loira que me proporcionou uma noite tão agradável. Onde fica mesmo o quarto de...

          A voz de Nicolae fora interrompida pelo ruído de um engasgo.

          O meu instinto de proteção dizia que eu deveria correr para o meu quarto, mas o meu coração dizia que eu devia descer. O último falou mais alto, e acabei descendo sem pensar, sem prever nenhuma consequência ou horror que poderia encontrar lá embaixo, e fora algo muito próximo disso que encontrei. Quase entrei em pânico quando vi Anton, com apenas uma mão, segurando o Nicolae pelo pescoço. Os pés do mais novo balançavam no ar, suas mãos tentavam diminuir o aperto dos dedos dele, e uma mancha de sangue lhe escorria do nariz até o queixo.

          ― Solta ele, Anton! ― gritei atordoada, fazendo com que ambos me olhassem.

          ― Irmão... ― ofegou Nicolae, que apesar da situação, ainda ria. ― Você sempre exigiu a verdade, por que agora ela o incomoda?

          Anton nada disse, apenas me olhou nos olhos e devolveu o Nicolae ao chão, mas em um movimento muito rápido, segurou sua cabeça entre as mãos virando-a bruscamente para o lado. O meu estômago embrulhou, e eu perdi completamente o ar, quando o corpo do Nick caiu duramente no chão sem qualquer sinal de vida.

          Pisquei algumas vezes balançando a cabeça, tentando trazer meu cérebro de volta à realidade, mas aquela maldita imagem não saia da frente dos meus olhos. Estes, que turvaram e transbordaram lágrimas instantâneas. Me vieram à mente as imagens do Nick sorrindo orgulhoso, acompanhadas da sua história triste, e do amor refletido em seus olhos. Tudo embaralhou, se somou, transformou-se em angústia, e quando acreditei que não havia espaço para mais nada além daquele desespero, olhei para o Anton, e sobreveio uma dor ainda mais profunda, mais devastadora, que quase me fez desabar no chão.

          Não havia arrependimento em seus olhos, não havia nenhuma sombra de qualquer sentimento, qualquer emoção, não havia nada lá, e esta foi a primeira vez que percebi que já estava completamente tomada pela escuridão. Eu me sentia como se estivesse sozinha no fim do mundo, me afogando naquela dor aguda, tentando lidar e lidar para tentar reagir, para tentar respirar enquanto tentava entender.

          ― Ni... Nick... ― solucei buscando forças em algum lugar, e indo até o seu corpo sem vida.

          ― Vá para o seu quarto ― Anton ordenou, e eu apenas o ignorei me deixando cair até o chão. ― Vai para a porra do seu quarto, fada.

          Não consegui olhá-lo, eu estava completamente inerte, sem reação, apenas sentindo. Mas então o meu corpo fora levantado por ele, obrigando-me a encarar de tão perto o vazio que aqueles abismos azuis refletiam. Fechei os olhos e solucei fundo, expulsando as poças de lágrimas que se formavam.

          ― Por... por quê? ― Minha voz tremeu, mas não me importei, eu só precisava libertar um pouco daquelas emoções dentro de mim. ― Só um monstro sem coração faria isso com a própria cria... Você o salvou, você o ajudou quando ele só tinha sete anos. ― Senti suas mãos, que ainda me seguravam os ombros ficarem tensas, e o seu aperto se intensificar fazendo-me abrir os olhos. Anton parecia confuso ou talvez tomado por uma urgência que eu não soube distinguir. ― Ele te amava por isso, eu vi, eu vi nos olhos dele o quanto ele te admirava...

          Tão rapidamente, ele reassumiu o controle e os seus olhos retomaram a sua indiferença perpétua. Anton não me deu tempo para organizar todo aquele conflito de sentimentos, logo me encontrei jogada em seu ombro enquanto ele subia as escadas. Não fora diferente da outra vez, eu não tinha mais forças. Ele me carregou até o meu quarto, me trancando lá dentro sem que eu pudesse fazer nada.

          Eu só me perguntava o porquê, por que ele era assim. Anton tinha uma família, tinha amor, tinha pessoas que se importavam com ele, tinha tudo para ser normal, mas não era. Naquela noite, Anton se tornou a personificação de tudo de ruim que cresci ouvindo sobre vampiros. Ele era tudo o que eu devia temer e me manter distante, e parecia que todo o tanto que eu conseguisse odiá-lo, nunca seria o suficiente, e não era o suficiente, porque apesar do que ele era e do que havia feito, eu não era mais capaz de odiá-lo.

          Foi então que percebi que o ódio, mesmo sendo um sentimento subjugado às coisas ruins, naquele momento não definia o que eu sentia por ele, e me desesperei por isso. Me desesperei por descobrir que apesar de tudo, eu ainda buscava razões para entender o Anton, como se essas desculpas pudessem diminuir a minha dor, como se fossem vitais para me manter respirando.

          Sentei-me no chão deixando que uma dor lutasse contra a outra, sendo obrigada a destrancar e confrontar uma parte da minha cabeça, onde eu havia escondido o que eu realmente sentia por ele. O que era muito assustador para estar acontecendo, mas também era doloroso demais para não ser verdade. Deixei as lágrimas caírem como chuva, até que não houvesse mais nada para sentir.




Canal de Brogan – Nome fictício dado ao canal situado entre a Irlanda e o País de Gales, que une o Mar da Irlanda e o Mar Céltico. 



+ 💬 = 💓



Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top