C A P Í T U L O 22

     Beatriz conferiu sua aparência pela última vez. Com o climatizador local, não se deu ao trabalho de vestir mais do que um social terno feminino branco. A mulher prendeu elegantemente seus fios loiros acima da cabeça e caprichou o vermelho em seus lábios conforme se movimentava pelo local de trabalho.

    O clima estava claro, o sol fosco e a noite não demoraria a chegar. Seus saltos ecoavam pelo piso escuro e sua mente planejava a entrada na sala de reuniões.

    Toda a sala é um cubículo de vidro que a impedia de disfarçar um discurso apropriado. Ela apenas chegou, abriu a porta e desejou um boa tarde a todos os homens presentes.

    Havia apenas Camy de mulher, além dela. A amiga estava vestida elegantemente com sua calça social escura, ressaltando os cabelos recém pintados para um castanho amêndoa.

— Sou a Dra. Beatriz Pietra, principal diretora da SBL. Pesquisa de Comportamento Lhycan.

— Sejamos direto ao ponto — os olhos da loira recaíram ao fundo da sala. É onde estava o coronel rigidamente autoritário ao lado de alguns diretores e departamentos pelo qual ela não se recordava. — Com o que, exatamente, estamos lidando?

— Para essa pergunta, uma resposta: acasalamento.

     Antes de prosseguir, Beatriz primeiramente pousou uma maleta rosa no canto da mesa. Abriu e de lá tirou seu notebook dourado. Camy se levantou para conectá-lo corretamente aos arquivos.

— Explique, por favor. — Um dos oficiais ordenou. Eram cinco, ao todo. Beatriz deveria ter pesquisado sobre a patente deles e como se dirigir… por um momento, suas mãos suaram.

    Ela respirou, se acalmou e então começou.

— A raça que estamos lidando são chrynnos. É o tipo mais famoso nas lendas pela aparência meio homem, meio besta e também pelos avistamentos frequentes em seus hábitos.

— Que seria?

— Ao contrário dos lhupus que não toleram aproximação indesejada e, pelo grande número de membros em alcateia torne o monitoramento muito arriscado, ou dos hisppos que pelo comportamento nômade nunca estão no mesmo lugar com frequência, essa raça, chrynnos, assume um território próprio em lugares elevados como montanhas e planaltos. Não se incomodam de viverem ao lado de uma cidade populosa de humanos e a quantidade de lobisomens por bando raramente ultrapassa os trinta. Encontrá-los é mais fácil.

— Também sabemos, pelas suas pesquisas, que lobisomens são muito reservados. Isso não é diferente para a raça chrynnos — lembrou o coronel, a voz áspera e descontente com a situação.

    Todos sabiam que, entre todas as criaturas não humanas, ele detestava os lobisomens. Alguns rumores dizem que já esteve cara a cara com um Alpha Genuíno. E essa seria a razão pela qual é viúvo.

— Tão reservados que as demais alcateias chrynnos do Alaska não demonstram sinal algum de comportamento anormal — acrescentou o oficial ao seu lado. Aparência mais velha e as medalhas era o único indício de sua posição conforme lia os papéis. — Os ataques predatórios a humanos continuam mínimos.

— Para haver um acasalamento, é preciso de fêmeas — disse o coronel. — Se há fêmeas no Alaska, por que apenas a alcateia Sukakpak está demonstrando essa… anormalidade?

— Por causa dessa garota! — Camy interveio bem a tempo, ligando o monitor e revelando a imagem de Camilla.

    A sala ficou quieta.

    Longos cabelos vermelhos, lábios volumosos, pele morena, olhos alaranjados e um sorriso divino.

— Ela é uma…

— Não — interrompeu Beatriz, quem quer que tenha começado. — Tudo leva a crer que essa mulher, Camilla, é uma humana. Uma brasileira. Ela chegou a pouco tempo no Alaska para uma viagem com o namorado residente em Utqiaġvik.

— Estou confuso… — alguém disse.

— Poderia esclarecer, doutora? — pediu o coronel.

— De alguma forma, acreditamos que essa mulher atraiu a atenção dos chrynnos da alcateia Sukakpak — Camy começou. — E que sua presença os atraiu para Utqiaġvik.

— Utqiaġvik fica a quase 500Km de Sukakpak. Como isso é possível?!

— Talvez o olfato — chutou Beatriz. — Lhycans tem uma sensibilidade única e nunca foi comprovado até onde conseguem sentir o cheiro de algo.

    Os oficiais suspiraram, pasmos.

— Não podemos esquecer que eles gostam de lugares altos. O cheiro da mulher pode ter vagado por quilômetros e foi sentido pela alcateia Sukakpak.

— E as demais alcateias?

— Talvez simplesmente estejam longe demais, o cheiro tenha sido contaminado pela distância, a direção do vento não seja favorável… pode haver muitas razões.

— Tudo bem. Prossiga. — Um dos homens mandou. — Por que ela estaria atraindo os chrynnos?

— Desde que ela chegou a cidade, os chrynnos de Sukakpak demostraram mais hostilidade. Foi quando os ataques dispararam na região. — Beatriz clicou no botão seta em seu notebook e a imagem foi alterada. — E quando encontramos os corpos, estavam todos assim.

    Um homem e uma mulher. O homem quase completamente devorado e a mulher com os órgãos para fora do corpo.

— Concluímos então que o ataque não era simplesmente predatório — concluiu Camy.

    Beatriz tomou a frente da palavra:

— Os homens, eles comem todos os órgãos internos e deixam braços, coxas e músculos intactos. A morte é rápida e violenta enquanto as mulheres, ou eram estupradas e mortas ou simplesmente mortas. Mas o que chamou a atenção da autópsia foi a presença de órgãos reprodutores, na maioria, fora dos corpos.

— Uma equipe de campo foi tentar averiguar mais de perto e nenhum retornou — disse Camy.

    A sala continuava em silêncio. Os olhos de todos estavam fixos nas mulheres, atentos e esperando mais explicação antes de iniciarem as perguntas.

    Beatriz terminou:

— Isso me fez suspeitar de que estavam se preparando para algo.

— Por exemplo?

— Quando queremos viajar, nos preparamos. Quando vamos competir, nos preparamos. Alguns, quando querem filhos, se preparam — diz Beatriz. — Eles estão comendo mais, muito mais do que antes. Não apenas pessoas. O ataque a animais tem aumentado e isso nos leva a crer que estão acumulando energia e força. Se preparando. Talvez para o ato de acasalamento ou lutar pela fêmea, tendo em vista o quão agressivos são, independente da raça.

— Por que não se preparando para simplesmente massacrar uma cidade? — sibilou o coronel.

    É isso que Beatriz temia… eles verem algo além do ponto dela, estarem errados e irem atrás dos lobisomens. E morrerem.

    Beatriz estremeceu.

    E olhou para a amiga num pedido silencioso de socorro.

— Segundo o estudo arqueológico de algumas lendas confidenciais da história de nossa civilização, alguns povos como os antigos egípcios, os gregos e até mesmo os Incas deixam a entender que um lobisomem fica muito selvagem e territorial ao se tratar de fêmeas e filhotes — Camy começou tímida ao início e ganhando confiança ao completar: — E a alcateia Sukakpak está demonstrando um nível de agressividade fora do comum ao mesmo tempo em que estão muito cuidadosos com essa mulher. Camilla.

    A imagem no monitor mudou, mostrando fotos da situação em Barrow. Uma casa em particular, cercada por pontos vermelhos e amarelos, indicando o calor corporal.

    Foi tudo que Beatriz precisou para voltar a liderança.

— Nessa casa está a mulher presa com alguns homens. Enquanto as demais casas foram brutalmente invadida e os residentes mortos, eles cercam a moradia — Beatriz pegou uma régua se aproximou do monitor, mostrando os e pontos de calor — Em sua forma bestial, os lhycans tem um maior calor corporal que se destaca facilmente na em climas negativos.

— O Alpha, por um motivo que não conhecemos, parece ter mais calor que os demais membros — Camy apontou para um ponto em especial onde estava o maior dos vermelhões, embaçado com dourado. Era como um floco de incêndio.

    A criatura estava em frente da casa, como era óbvio. Todas imagens que se prosseguiram mostram as bestas cercando a casa. O Alpha mal se movia em busca de brechas.

— Há vários homens dentro da casa e sempre que uma oportunidade surge, eles atacam. Mas como podem ver, não invadem — esclareceu Beatriz e, então, prosseguiu para um vídeo. — Esse vídeo mostra um dos ataques.

    A gravação por drone se iniciou com a mulher sendo arrastada pelos homens, cercada e tentando escapar. Ela lutou, mas não conseguiu escapar. Embora não haja som, estava explícito as más intenções que tinham para com ela.

    Camilla gritou e estapeou.

    Havia pessoas em algumas casas que, ao escutar os gritos, invés de ajudar, entraram.

    Um outro vídeo dividiu a tela, mostrando o calor ambiente conforme a noite deixava a filmagem mais difícil. O som preencheu a sala.

    "SOCORRO!"

    Ninguém respondeu seu pedido.

    Não humano.

    Eles vieram por todos os lados, lentamente. Ao menos dez cercaram o grupo através da neve. O vídeo parou.

— Concluímos que o motivo de não se revelarem logo ao princípio seja por não saberem exatamente o que está acontecendo e…

— Ou seja, fazendo reconhecimento do local? — O coronel interrompe.

    Beatriz precisou de três segundos para se conectar novamente onde parou.

— Avaliando os riscos…

— Para a mulher, provavelmente — Camy completou.

     Beatriz prosseguiu:

— Entender a situação e decidindo a melhor abordagem que, como minha colega disse, não ofereça grandes riscos para a mulher.

    Os oficiais se remexeram em seus assentos e olharam um para o outro. Era apenas uma suspeita a coordenação dos lobisomens, mas nunca foi realmente comprovado o fato deles pensarem antes de agir, principalmente ao matar.

    Isso significa que se tentarem atraí-los para uma armadilha em qualquer confronto, será bem mais difícil. Eles avaliam a situação.

    Porém, enquanto avaliavam a situação, a mulher estava sendo arrastada. Caso se importem realmente com ela, como reagiriam a uma situação mais urgente com poucas chances para pensar?

    O vídeo prosseguiu.

    O som marcava o fim dos gritos. Os homens parando e então olhando para a neve. Uma distração que revelou a maior brecha para o ataque.

     O Alpha atacou.

     E os homens se refugiaram dentro da casa. O Alpha teria arrebentado aquela porta se algo não tivesse o feito parar.

    Um grito de mulher.

    Estava óbvio para todos o quanto eles se preocupam com ela. O macho demonstrou frustração e a descarregou em cima da vítima. O vídeo acelerou a morte até o momento em que a criatura namorou a porta, avaliando e dando grunhidos quase mansos.

    Beatriz suspirou.

    E prosseguiu.

— Nesse momento, a casa está cercada e tudo nos leva a crer que mais forte que o instinto de matar é o de acasalar. — Beatriz sentiu o celular vibrar em seu bolso e jogou uma mecha de seu cabelo para trás da orelha — Se estivermos certos e ela é humana, suspeitamos que estão buscando formas de tirá-la de lá sem oferecer qualquer tipo de dano que possa prejudicar o ritual de acasalamento.

     A vibração no celular é diferenciada.

     Um olhar de ajuda foi dado a Camy, pedindo para assumir. A morena tomou a dianteira.

— Por tanto, se estiverem realmente com intenção de acasalar com essa mulher, Camilla, não sabemos o quão perigosos eles podem se tornar para defender a fêmea e os futuros filhotes — uma pequena pausa para preparar a garganta. Beatriz precisava de mais tempo. — Para reforçar a teoria, nos atentamos a uma curiosidade peculiar aos ataques das mulheres.

— Que seria? — Indagou o coronel.

— Se me permitem, os senhores estão familiarizados com a nobreza dos lhycans, certo?

— Sim, os lhupus — respondeu um dos oficiais.

    Basicamente não dava para esquecer daquela raça em específica, a mais perigosa dos lobisomens. No mínimo, uma das mais perigosas.

    Diferente dos chrynnos que assumem uma forma meio homem-meio lobo, os lhupus se transformam completamente a forma de um gigantesco lobo com quase dois metros de altura. Todos genuinamente magníficos.

    E vivendo em bandos volumosos e tendo uma certa classe, eles se dividem em alcateias de grande impacto nas demais, independente da raça. A nobreza é composta por Alphas Genuínos e seus Bhettas. E a realeza, pela Supremacia Alpha. É onde está o rei deles.

— Vocês já devem conhecer a influência que a realeza tem com os plebeus. Como no século XIX, quando a rainha Vitória, da Inglaterra, desejou casar de branco e, com isso, mulheres do mundo inteiro começaram a fazer o mesmo. Algumas famílias e igreja até agregam, na atualidade, o vestido branco a uma tradição para definir o casamento de uma mulher virgem e casta — exemplificou Camy e, para completar, deu outro exemplo: — Ou como o rei Luís XIV da França que desejou ver seus filhos nascerem e obrigou suas mulheres a parir numa posição em que pudesse ficar claro a visão da vagina. A posição em que a mulher está deitada. Além disso, provavelmente para compartilhar a perversão, quis que fossem homens a realizar auxiliar o parto invés de parteiras habituais. O hábito foi pego pela população e até os dias de hoje, muitas mulheres dão à luz nessa posição.

— Tudo bem — o coronel interrompeu. — O que isso tem a ver com os lobisomens?

    Beatriz desliga o monitor. Camy responde:

— Não temos motivos para acreditar que o mesmo possa se aplicar a eles.

— Explique — exigiu um dos homens.

— Algumas pinturas rupestres de antigos templos sugerem que as mulheres da realeza dos lobisomens costumam dar à luz com auxílio unicamente do pai da criança — revelou, enfim. — Não temos mais do que isso para comprovar. E nem sabemos como isso é feito, mas se for real, não há motivos para alcateias comuns. Plebeus, como os chrynnos não acompanham o costume da realeza. E como a alcateia Sukakpak é composta apenas de machos pode ser que estejam tentando aprender como funciona a região reprodutiva das mulheres, o que poderia explicar o fato de todos os órgãos internos serem devorados com exceção daqueles responsáveis pela reprodução como útero e ovário.

    Os homens avaliaram o que a profissional disse. Há um ponto ali, visto que eles remexem o corpo delas, arrancando e reconstruindo. A vagina de certas mulheres estava completamente desfigurada, aberta de forma tão monstruosa que dava a impressão de ter sido estuprada por um gigante. Mas não havia vestígio de esperma. Eram apenas eles averiguando de modo mais íntimo a sensibilidade e funcionalidade dos músculos.

— Claro, isso é apenas uma curiosidade. As pinturas que sugerem isso são tão antigas e únicas que só temos uma lasca de pedra escavada em Yucatán, no México.

    Beatriz estava no computador quando interrompeu:

— Senhores, chegou nesse instante um arquivo que, aparentemente comprova nossa teoria.

    A mulher voltar ligar o monitor.

    E um vídeo começou a rodar.

    O som preencheu a sala, rouco e sonoro, poderoso e medonho:

    "Entreguem a bruma!"

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