C A P Í T U L O 03
A temperatura estava paralisada aos -37°C naquela noite. O ambiente escuro tinha apenas uma ou outra luz fosca para complementar a paisagem angustiante. O vento estava forte e o odor não era agradável.
Nunca foi.
E por isso ele — eles — se mantinha distante… até aquele momento.
As estradas estavam cheias de marcas, seja de pneus ou pegadas. Os mais variados tamanhos de calçados vinham e iam na movimentação do dia a dia. Mas quando o sol se punha no horizonte e a escuridão reinava, Barrow estava deserta.
E fria.
E medonha.
Contudo, naquele momento, Barrow ganhou uma nova marca quando pés anormais afundou na neve mais baixo. Branco, sem calçados, com apenas dedos emplumados e almofadas suaves.
Ficou lá… imóvel e solitário. Com nada para intimidar conforme algo em seu olfato o atraia para aquela moradia. As casas sem muito luxo faziam dúvidas de como poderiam se aquecer vir à tona. Os sons eram mínimos.
E para lá ficou olhando, trabalhando em seus ouvidos sensíveis.
— Ah, amor, vai ficar brava com essa besteira mesmo? — Camilla sentiu os lábios do namorado em sua bochecha.
E sorriu maliciosa.
Estava noite. Um inferno de frio. A janela batia e batia e batia incansavelmente com a ventania e ela, uma brasileira que já se envolva no cobertor com +5°C, estava mergulhada numa bola de tudo que encontrou pela frente — incluindo o namorado — com aqueles mil graus negativos do inverno do Alaska.
Um sexo bom poderia aquece-la com mais facilidade.
Se tivesse com quem fazer mesmo se aquela minúscula cama de solteiro aguentasse ela a toda potência.
Até uns beijinhos no cangote seria nada mal…
— Vai me negar mesmo? — Ele fez um bico.
— De onde veio isso? — Ela riu. — Tá falando igual brasileiro, agora?
Nicolas chiou, dramático e pidão.
— Nem uma rapidinha, meu bem?
— Tá de castigo! — Camilla disse, por fim.
— Só por causa daquela besteira, meu bem? Faz assim não!
— Já que é uma besteira… — seu sorriso ampliou — não tem porque eu também te fazer gozar, não é? Besteira!
O olhar de Nicolas ficou obscuro e apenas o sorriso provocador de Camilla aliviou a tensão.
— Tudo bem! Como desejar… — Restava aceitar a decisão da namorada.
O que não era nenhum sacrifício para ela. Evitaria correr para o banheiro e terminar o trabalho sozinha. Camilla é uma mulher que já cansou de exigir dos demais. Dos homens, principalmente. E sabe que um homem do sexo jamais será um bom namorado.
E um bom namorado jamais seria um pica das galáxias.
Ao escolher apenas um lado, será julgada pelo outro.
A puta que fode em orgias nas boates mais obscenas ou a perfeitinha chata e comportada do papai e mamãe.
Ela encontrou seu equilíbrio.
E não se arrependia.
Cansou de esperar pelo mundo e, por tanto, criava em seus sonhos. Uma obsessão? Um fetiche? Camilla não se importava quando fechou os olhos e imaginou…
Debruçada.
As roupas arrancadas. Um apertão severo na bunda e um tapa. Promessas que ela sabia que seriam cumpridas e, por isso, as temia.
O maldito frio na barriga. Camilla se perguntava como seria a sensação de saber que está realmente ferrada depois de provocar o namorado.
Não Nicolas. Mas alguém ideal que não lhe trás apenas conforto emocional, mas instiga para algo mais… algo que ela não sabia o que era. Só tinha a certeza de ser essencial.
Ela queria uma família. Filhos, até. Mas não queria abrir mão daquela luxúria tão condenada pela sua família. Pela igreja onde foi criada… e pelo trabalho.
Camilla estava cada vez menos conformada. Ir para o Alaska passar um tempo com o namorado romântico não estava ajudando sua inquietude.
Até que em determinada parte da noite, se pegou lembrando das fodas mais insanas da sua vida. Como aquela na igreja lotada… o padre cantando e ela gritando.
Os momentos mais excitantes e malucos. Como quando seu ficante da faculdade olhou para a multidão no ônibus, garantiu que ninguém via e aproveitou o longo trajeto para se masturbar. Ali gozou um minuto antes de um grupo de jovens entrar e ele ter que esconder o pênis ainda tendo espasmos.
Camilla tinha as fotos como lembrança. Um verdadeiro ensaio porno de última hora.
Boom!
Era metal em colisão. Um estrondo moderadamente baixo como um eco incomum.
Camilla pulou na cama, dando um estalo no estrato.
Nicolas caiu no chão, levando o cobertor junto.
— O que foi isso?
Um minuto depois, a cama quebrou. Camilla foi ao chão num grito de susto.
Nicolas a encarou. Camilla o encarou. Ambos estavam com os olhos arregalados.
E então desabaram a rir.
Camilla não se aguentava da cara do namorado, o susto que ele havia tomado depois de bater o nariz no chão. E ele, claro, jamais esqueceria daquela face assustada antes da cama literalmente quebrar e sua namorada quicar no colchão de mola.
Track!
Silêncio.
Um maldito silêncio mortal quebrado apenas pelo vento. Seu corpo estava completamente tenso…
Um medo primitivo de não conhecer o ambiente onde estava. A noite e o frio. Imaginar todo tipo de criatura medonha apenas ao concluir que há algo lá fora.
Track!
Camilla saltou em direção ao namorado encarando com os olhos arregalados o teto da casa. É de onde vinha o barulho.
— O que foi isso, Nicolas? — Ela sussurrou ao seu ouvido.
Track!
Era como lage amassada ou telha quebrada. Passadas longas e suaves. Um oscilador que a fazia lembrar de pedreiro consertando telhado.
Mas estava de madrugada sendo o horário de seu celular no chão. Quase três da manhã!
— Eles só descem aqui na longa noite… — sussurrou ele de olhos arregalados. Camilla teria um treco, assim!
Track!
— Eles quem?
Nicolas a encarou, enfim. O corpo estava tenso… o aperto firme e a face de pânico. Medo.
— Temos que sair daqui, Camilla!
Brank!
O som veio alto, poderoso e rouco. Camilla gritou.
E Nicolas desabou.
Saíram lágrimas dos olhos do rapaz com o susto da namorada. Ele curvou o corpo e agarrou a barriga antes que sufocasse em meio a própria gargalhada.
Camilla o encarou paralítica e altamente confusa.
— Tá rindo do quê?
Nicolas bateu no próprio peito e tossiu.
— É só o vento na laje, amor! — Ele segurou o riso. — Esses barulhos são comuns aqui em casa. Não tem nada lá fora!
Track!
Camilla olhou para o teto.
— E aquele negócio da longa noite? Quem desce aqui?
— É só uma lenda local, meu amor — ele se recompos. — Utqiaġvik fica um mês em total escuridão no meio de um rigoroso inverno. Acha mesmo que a mente fértil do povo não ia inventar histórias de terror?
Primeiro ela ficou encarando o rosto do namorado.
Sua pele pálida.
Seus olhos azuis brilhando divertimento.
Os lábios se contendo com a gargalhada.
Ela explodiu:
— Por que fez isso, cara?!
— Por ter me negado e me jogado para fora da cama em plenas três horas da manhã!
Camilla avançou contra o namorado e Nicolas mal se importou em correr. Apenas defendeu o rosto e gargalhou com a namorada tentando o bater.
— Vou te processar por agressão, amor! — Camilla ferveu ainda mais.
— Vou te processar por tentativa de assassinato!
Plof!
O barulho veio alto na janela, arrepiando completamente seu corpo. Ela parou, tensa.
E atentou ao ouvido para o que ocorria no lado de fora. Uma ventania sem igual, se chocando contra a janela e toda a superfície da casa.
E mais alguma coisa.
Algo mais discreto, suave e calmo.
— É só o vento, amor — tranquilizou Nicolas. — Pode ir lá ver. Não tem nada!
O homem deu um beijo na bochecha da namorada e a tirou de cima dele, se levantando.
— Vou ao banheiro e depois vou ver se tem como arrumar a cama. Volto já!
Nicolas saiu.
E a deixou sozinha com aquele barulho na janela. O vento que parou de bater na laje agora era forte ali…
Não tinha nada. Ela se convenceu. Ela está no mundo real, afinal! Não em um maldito filme de terror…
Mas o som persistiu.
Um ressoar que não era apenas na janela, mas em volta da abertura triplamente reforçada para evitar a mínima entrada de vento. E isso incluída uma cortina densa em volta não dando brechas do que poderia haver.
O quarto estava parcialmente escuro. Apenas três velas queimavam no final para iluminar o ambiente. Não era adequado confiar totalmente na energia elétrica e Nicolas preferia economizar o máximo possível.
Camilla se levantou do chão.
Quase em reconhecimento, ouve um som mais leve.
No outro cômodo, ela conseguia ouvir o som da urina do namorado calmamente. Sem pressa ou preocupações.
Não havia nada demais…
Ela se aproximou da janela e não houve outro barulho. Nenhum além do vento.
Camilla estendeu e suspirou fundo. Seu coração batia descontroladamente. Ela puxou a cortina revelando o que havia atrás daquela vidraça reforçada.
Uma enorme cabeça de lobo.
Branco como a neve, com intensos olhos azuis cintilantes e um nariz rosado. Estava agarrado a janela com longos braços humanoides. O vento assoprava sua pelagem graciosamente.
A besta piscou.
Camilla piscou.
Nicolas deu a descarga.
E a besta moveu a cabeça com os olhos vitedros na humana. Sua pele morena, seus traços estrangeiros, os cabelos de fogo e os lábios carnudos. Ele abriu a boca e passou a língua negra como ônix pelo grande focinho branco, dando relances de presas afiadas. Gostosa.
Foi quando Camilla gritou.
Mais do que em toda sua vida, berrou como se a morte tivesse chegado, afastou-se apressadamente da janela e correu em direção a Nicolas.
— Um lobisomem! Tem um lobisomem lá fora, Nicolas! Eu vi! Tá. A janela! Olhou pra mim como se eu fosse uma franga assada!
O homem só viu a mulher invadir o banheiro enquanto mexia no celular. Só teve tempo de guardar e presenciar aquele escândalo todo com palavras desconexas.
— Como é? Oh! Calma aí! Que lobisomem?
— É um bicho todo branco! Parece que mergulharam no cloro! Ele tinha olhos de cão com sarna e boca cheia de dentes enormes e queria me comer!
— Ah, parou, Camilla! Não existem lobisomens! E por que com tantas pessoas ia vir justo pra cá atrás de você?
— Não acredita em mim?! Vai lá, vai lá ver! Ele tá que nem um macaco com cara de cachorro branco pendurado na janela!
Nicolas cruzou o braço.
— Você está ouvindo o que tá dizendo? Quer mesmo que eu leve a sério?
— Eu estou com medo! — Grunhiu desesperada.
— Ok, vou lá ver! — Ele suspirou e saiu do banheiro.
Camilla se recusou a fazer o mesmo.
Até Nicolas voltar e puxá-la para junto dele, alegando que não cairia nesse truque.
O homem apontou para a janela completamente limpa. Havia apenas a escuridão além da vidraça.
— Que lobisomem, Camilla?
— Ele tava ali! Eu juro! Acredita em mim! Tem um lobisomem lá fora!
Nicolas revirou os olhos e foi até a janela mais uma vez. O coração de Camila quase saiu pela boca quando ele abriu e colocou a cabeça lá fora.
Uma lufada de ar frio ajudou a congelar seu corpo.
— OLÁ! LOBISOMEM!? Minha namorada disse que você tava que nem um macaco grudado na minha janela! Tem alguém aí?! — Gritou do lado de fora. Apenas a brisa para diminuir os berros. — OLÁ?!
— Nicolas, você está louco! Sai daí! — Camilla não tinha coragem de se aproximar daquela janela quando Nicolas saiu e encarou a namorada com os cabelos loiros congelados.
Ele riu e olhou para ela.
— Viu? Nada de lobisomem!
Mas a mulher estava encarando paralisada aquela cabeça espiando dentro da janela. Uma orelha e olhos azuis no lado de cima da janela.
Ela estremeceu, apontando e Nicolas olhou bem no momento que a criatura levantou a cabeça.
— Ah, tá bom! — Ele foi e colocou novamente a cabeça para fora. — Oh lobisomem! Minha namorada está com medo de você morder a bunda gostosa dela! Então que tal ir lá mijar num poste e deixar ela em paz!?
— Nicolas!
— Calma aí amor, num terminei… — ele preparou a garganta. — Vamos! Aparece covarde! Te desafio a aparecer e me matar! Cachorro sarnento! Vai pendurar na janela do vizinho e para de querer comer a gostosa da minha garota! Vai arrumar uma cadela na floresta, cuzão do caralho!
E assim, o homem fechou a janela deixando, no telhado, uma besta com cara de besta. Pasmo.
Nicolas fechou corretamente a cortina e conferiu se tinha alguma brecha de ar antes de se virar e chacoalhar o cabelo.
— Nada de lobisomem. Viu?
Ela se recusava a responder.
— Acabei de lembrar que minha irmã tá dormindo na casa da amiga dela. Podemos dormir no quarto dela e amanhã eu vejo essa cama aí — comentou e, então tossiu. — Se eu ficar gripado por essa brincadeira de lobisomem, você vai me dar comida na boquinha, Camilla!
E assim ele saiu.
Camilla ainda estava incrédula.
Como algo lá fora.
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