C A P Í T U L O 10

Nuvens densas fazem com que as estrelas brilhem timidamente no céu, lançando uma fraca e distante luminosidade sobre a paisagem. Com o coração acelerado, Dandara corre sem rumo, sentindo o medo respirar quente em seu pescoço.

Os galhos retorcidos e emaranhados das árvores mais próximas estendem-se como dedos esqueléticos, ameaçando agarrá-la e os sons da floresta ecoam perto, misturando-se aos seus passos apressados.

Adentrar aquela densa e peculiar vegetação é a última coisa que a mulher deseja. Porém, não há escolha, é o único caminho a seguir.

Ela sente a sinistra presença da fera lhe perseguindo e a sensação de ser observada aumenta sua aflição. Na mente, a imagem do monstro é uma mancha escura e que implacavelmente a persegue. Incansavelmente.

A floresta continua a se estender como um véu de segredos sombrios. A névoa se tornou mais densa, mas a bioluminescência a impedia de colidir com as árvores. Talvez ela pudesse encontrar abrigo temporário e perder a fera de vista. No entanto, o tempo parecia se arrastar, como se o próprio universo conspirasse contra o seu sucesso.

De repente, uma dor excruciante atingiu seu tornozelo. Ela caiu. Seus joelhos se ralaram e, em algum momento, seu mindinho torceu ao tentar amenizar o impacto. Nada disso importava! Dandara arfou, sentindo o coração querendo saltar pela boca, e olhou para trás, esperando ver dentes afiados e uma boca salivante pronta para devorá-la.

Nada.

A névoa se dissipou repentinamente.

A neblina agora estava distante, como uma parede intimidante que ela atravessou. O ambiente, apesar de natural, lembrava um quarto escuro com as chamas da lareira prestes a se apagar.

Uma única folha caiu das copas das árvores, e foi só isso.

Sem besta. Sem fera. Sem monstro. Apenas ela e a natureza.

E o coração disparado.

Poderia ser uma alucinação, mas os acontecimentos recentes eram um gatilho de pavor. Dandara não conseguia ficar parada, pensando no que poderia surgir daquela parede nebulosa. Ela se levantou e correu.

A cada passo que dava, ela sentia a fera — real ou não — se aproximando. Seus sentidos captavam o som das garras afiadas arranhando a terra, o farfalhar da pelagem escura ao vento.

Então aconteceu.

Dandara correu para a beira de um barranco escarpado, seus pés patinando no solo úmido. Ela perdeu o equilíbrio e seu corpo inclinou-se para frente. O desespero tomou conta enquanto tentava agarrar-se a qualquer coisa que pudesse impedi-la de cair no abismo abaixo.

Ela caiu.

Dandara bateu a cabeça em alguma coisa… macia. Braços fortes lhe rodearam. Uma lufada de ar remexeu seus cabelos e o mundo ao seu redor desapareceu em um borrão de dor e escuridão.

*

Um mar calmo e um oceano de complexidade.

Simples.

Um encanto peculiar envolvia o interior da floresta. Uma infinidade de detalhes diferentes compunha as árvores, as flores vibrantes, os galhos entrelaçados e as raízes serpenteantes, formando um cenário de beleza incomparável. Até as formigas desempenhavam seu papel nessa intricada.

Dandara sabia que ao longo do dia ela mudava de uma maneira peculiar, mas era durante a noite que tirava seu fôlego.

Inicialmente, ela não sabia quando ou como adormecera. No entanto, ao abrir os olhos, sua visão se preencheu com cores vibrantes de um paraíso noturno. Ela recorda-se apenas de observar uma borboleta rosa e, em seguida... despertou.

Talvez ela não estivesse mais viva. Talvez a fera a tivesse capturado e agora ela estivesse no céu. O ar estava impregnado com o suave aroma das flores silvestres, e os pequenos animais produziam melodias doces e reconfortantes.

Ela piscou, tentando se situar, e sentou-se lentamente, sentindo uma pontada de dor latejando em sua cabeça e no restante do corpo. Mas nada grave. Seus pensamentos imediatamente voltaram para a perseguição implacável daquela... coisa.

O desenho de Francisco retornou a sua mente. O que caralho foi aquilo?

Enquanto olhava ao redor, não havia sinal do monstro que a atormentara na noite anterior. Ou ainda era a mesma noite? Quanto tempo havia se passado? A floresta estava calma e pacífica, como se fosse um refúgio onde nenhuma criatura maligna pudesse adentrar. Dandara sentiu-se envolta por uma sensação de alívio e segurança que sabia ser falsa.

Ela estava pelada!

Onde está seu vestido?! Suas roupas? Ela sente o frio da noite arrepiando seu corpo exposto aos predadores. Quem iria querer uma presa tão magra?

Ela vasculha o ambiente em busca dos pertences, mas sem sucesso.

Seu corpo dói...

Com dificuldade, Dandara se levanta. Não há nada para se cobrir.

Somente um caminho.

Mais adiante, uma trilha estreita é vista entre as árvores. Nem tudo é esplendoroso. Onde não há luz, há trevas. E ali, a luz se revela em um caminho florido, com flores noturnas em tons de violeta no chão e rosa delicado nas árvores. Vagalumes piscam ao redor.

Durante o dia, havia mil detalhes; durante a noite, devem ser milhões.

Dandara seguiu cautelosamente a trilha brilhante que cortava a densa floresta noturna. Havia borboletas por toda parte, mas nada acalmou o coração que disparava com cada passo, alimentado tanto pelo medo de encontrar um predador feroz quanto pela insegurança de estar completamente nua.

A sensação do solo úmido e fresco sob os pés descalços era estranha e desconfortável. Por que ela despertou assim, em um lugar desconhecido e despojada de suas vestes? E como poderá encontrar uma rota segura para sair dessa situação?

A trilha a conduz a um pequeno morro íngreme, onde algumas gotas de suor lhe são exigidas. O vento fresco provoca arrepios em partes do corpo que antes estavam cobertas.

Ela prossegue 

No ápice do morro, as borboletas desaparecem!

A floresta se esvazia, desprovida de todas as criaturas maiores que um vagalume. Um silêncio absoluto preenche o ambiente. Nem um grilo, nem um sapo, nem sequer os pequenos seres errantes que costumavam vagar por ali... apenas o sopro assobiante do vento permanece.

E um calafrio.

Seria melhor dar meia volta e voltar de onde veio? Os instintos de Dandara dizem que sim, porém, ao se virar... está escuro. A trilha azulada apagou-se e parte das flores brilhantes se esconderam.

Com raízes que infestam toda a terra, talvez a vegetação saiba… Só talvez… Ela não está sozinha.

Como única solução, impregnada de hesitação e medo, Dandara continua a seguir a trilha que se estende cada vez mais, em um caminho que a leva ao coração da floresta.

Ela não chega ao seu destino.

Dandara é incapaz de prosseguir na metade de seu incansável caminho. Não com o que vê logo a frente. Apenas uma força desconhecida a impede de gritar, pois alguém — alguma coisa — pode ouvir.

Ela só fica parada, perplexa e sem reação.

A floresta está tão quieta, como se todos estivessem observando atentamente seus próximos movimentos. Ela finalmente se lembra de respirar.

E de se mover.

Dandara se aproxima... um passo de cada vez... lentamente...

E então ela recua.

Entre as folhagens, no escuro e quase perfeitamente camuflado, há... algo.

Alguém.

As teorias já se formavam quando ela observava a pele branca avermelhada. As costas cheias de espinhas e as pernas abertas. Sangue. Havia sangue ali… escorrendo do… e manchando as… e um… É um homem!

Um homem estuprado?!

Ele está aberto de tal forma que seu orifício se tornou pequeno buraco nojento de esperma e sangue

Quem poderia ser? Alexandre não deu falta de ninguém exceto…

Exceto os primeiros batedores.

Um estava morto e o restante desaparecido.

Dandara olha mais atentamente, sentindo a coceira apenas ao lembrar dos insetos que caíram sobre ela. No entanto, aquilo não parecia estar em decomposição, apesar dos vários ferimentos que marcam suas costas e perna. São garras. Marcas enormes de garras desenham seu corpo.

Dandara sente seu corpo tremer, não apenas pelo frio, mas também pela incerteza.

Ela é uma das vítimas da opressão, daqueles que a espancaram e a violentaram. Dandara pode até ter o útero seco, pois nunca conseguiu engravidar. Mesmo assim, ela se vê procurando por um galho ao redor, mas a floresta parece incrivelmente limpa para um ambiente selvagem. Quase dá a impressão de ser um jardim exótico.

Ela terá que usar as mãos, o que significa tocá-lo... verificar se está vivo.

Um passo de cada vez… arrastando os pés pelo chão, passando pelas raízes... e então recuando imediatamente! O homem se mexeu!

Ele estava vivo!

O quê fazer? O quê fazer? O quê fazer? 

A floresta tão silenciosa… 

Seu coração parecia dançar dentro do peito quando ele se moveu, esforçando-se para se levantar como se tivesse despertado de um sono profundo. Ou talvez de uma surra.

Dandara estava com feridas por todo o corpo devido aos insetos, mas ele... Ele está em carne viva. Seu rosto inchado, os lábios cortados, hematomas no abdômen e arranhões nas costas.

A intensa fadiga que ela sentiu após a corrida que fez não deve se comparar ao que ele está sentindo.

Ele deita-se, incapaz de se sentar corretamente.

Após acomodar-se, ele percebe a presença dela, imóvel, escura e com olhos grandes e brilhantes. Dandara pisca.

— Oi?

Ele piscou.

Ele gritou.

Ele se arrastou urgentemente para longe.

Ela piscou.

Dandara dá um salto assustado em direção à mata escura. Só então, a floresta se ilumina... As flores se abrem e um belíssimo brilho permeia os detalhes do solo. Foi apenas por causa disso que o homem começou a repara-la com mais atenção.

Erguendo ambos os braços como se pudesse mantê-la afastada, ele pergunta:

— V-Você é… é… humana?

Ela franziu o cenho.

— S-Sou?

Os ombros dele caíram em total alívio.

— Você fala minha língua… — ele murmurou. — É humana…

O alívio não era completo. Parte do corpo dele ainda estava tenso, tremendo e claramente sentindo dor. A única certeza é que ele viu algo. O terror quase faz seus olhos tremerem.

E a nudez? Ele não parecia estar com frio, ao contrário dela. Ele nem parecia se importar com o que aconteceu enquanto se levantava. Então, parou e olhou para Dandara com olhos suplicantes. Ela franzia a testa. Ele sorriu e se aproximou.

Ah, não!

Ela se afastou, andando em direção a trilha azulada. O homem apressou os passos e quando Dandara ia fazer o mesmo, ele a pegou. Ele lhe abraçou!

O desconforto foi angustiante. Ambos estavam pelados. Ela sentiu e repulsa, mal contendo a careta. Ele… um branco e ela, uma negra. Dandara esbugalhou os olhos, mas o homem não se importava. Negra ou não, ela é humana… como ele.

A situação já era estranha o suficiente quando ele começou a chorar com tanta intensidade que ameaçava respingar Dandara com seu muco e lágrimas. O estômago dela revirou.

E aquele cheiro...

Às vezes, cheirava a cachorro molhado; outras vezes, a carne em decomposição. E havia mais alguma coisa que ela não conseguia identificar. Era tão intenso que a fazia lembrar de Alexandre naquela noite na tenda, quando... quando...

Dandara fica ainda mais tensa quando percebe que o odor pungente não vem dele. Ele cheira a sangue, esperma e terra.

— Está sentindo esse cheiro? — Ela se força a murmurar.

Como se Dandara não fosse uma mulher magricela e de aparência frágil, ele se colocou atrás dela como se fosse seu escudo indestrutível.

— Eles estão aqui?! Onde? Onde?!

— Q-Quem?

O homem não respondeu.

— Temos que sair daqui… — ele sussurrou ao seu ouvido. — Eles vão voltar para me… me…

Dandara observou a floresta noturna ao seu redor. Apesar das flores e do caminho brilhante, o topo das árvores estava escuro. Apenas as luzes dos vagalumes seguiam seu curso, enquanto o silêncio reinava sobre todas as outras criaturas.

Ela estava com medo.

Eles poderiam estar ali, não é?

A cada piscar de um vagalume nas sombras, havia a possibilidade de serem olhos dourados. Ela ansiava pelo amanhecer, quando o sol dissiparia o manto cruel da noite.

— E para onde vamos? — perguntou baixinho. — Não sei onde estamos…

— Vem! Vamos! — O homem lhe puxou com grosseria. Para quem está tão machucado, ele parecia ter bastante força.

Então, o homem parou repentinamente e Dandara bateu o nariz em seu bíceps. Um grunhido ecoou ao longe. O homem olhou para a trilha azulada e observou a curva que faria logo antes de encontrar o que parecia ser um rio ou, talvez, uma cachoeira.

— Por ali, não!

Ela não teve oportunidade de perguntar o porquê.

Ele não desejava a luz. O homem ansiava pela escuridão e a arrastava com rudeza em direção ao coração sombrio da floresta. A noite se arrastava enquanto testemunhava sua jornada por trilhas desconhecidas e terrenos traiçoeiros. Dandara teve sua resistência testada enquanto tinha a absoluta certeza de um fato:

Eles estavam sendo seguidos.

E apenas um deles tinha absoluta certeza do que é. Por essa razão, ele não se escondeu, pois sabia que seria inútil. Só restava correr, correr e correr com a certeza de que isso também é inútil.

Dandara sabia que o amanhecer estava se aproximando e somente então o homem interrompeu sua marcha implacável.

Os primeiros raios de sol foram um alívio bem-vindo.

Ao contrário da arrogância:

— Seremos rápidos. Não quero perder tempo nesse lugar maldito.

Poucas foram as palavras que ele disse durante o percurso. Ele só queria não se manter parado por muito tempo numa floresta cheia de demônios noturnos.

— Pra onde vamos? — Ela perguntou. — Não conheço esse lugar. Eu… não sei onde…

— Quieta! — Um rosnado poderia facilmente ter substituído o tom. Dandara franziu o cenho e olhou em volta. As árvores se apagavam e outro tipo de inseto tomava o lugar dos vaga-lumes.

A vegetação estava mais espaçosa, porém, não havia sequer resquícios de um muro nebuloso que cercava o litoral.

— Não conheço essas árvores — o homem passou a investigar o ambiente. — Mas sei que elas podem ser diferentes. Uma delas atacou o homem que me acompanhava e o comeu. Então cuidado!

Dandara se afastou até demais da árvore mais próxima. Em resposta, as flores se abriram ganhando uma grande proporção de tamanho e beleza bem onde o sol alcança o solo.

Agora iluminada pela aurora, a vegetação ganha vida com uma variedade de cores vibrantes. O verde exuberante das folhas, as flores delicadas que pontilham o chão e os raios de sol filtrados pelas copas das árvores criam uma atmosfera quase irreal. Não menos perigosa.

— Olhe — ele apontou para a paisagem marcada por uma sucessão de elevações imponentes, que variam entre morros íngremes e quedas traiçoeiras. Uma delicada neblina se forma em alguns poucos pontos, complementado a vista. — Deve haver umas cinco cachoeiras ligadas por rios e riachos aqui, no lado de fora que descem as colinas. Vamos ficar bem se não… se não subirmos. Mas também não podemos descer demais.

Descer, subir. Subir, descer. Ele parecia bem perturbado em deixar o meio termo.

Dandara indagou:

— Por quê?

O homem a olhou como se a considerasse a criatura mais ignorante desse mundo. Seu rosto era um emaranhado de dor, com o olho esquerdo quase fechado devido ao inchaço. No entanto, mesmo diante de tal situação, havia uma determinação em seus olhos. Se algo lhe acontecesse, se ela tivesse que arrastá-lo para algum lugar…

— Não entre em uma caverna — é uma ordem. — Nunca! 

— É… bem… Alexandre está acampado numa gruta lá no litoral.

Até aquele olho incapaz de ser aberto, se abriu em choque. Por um momento, o homem ficou estático.

— A gruta? — Dandara assentiu. — Não, não, não! Eles… Não! Não podem…

A calma desapareceu num instante, substituída pela inquietação do homem que, mesmo com os ferimentos pelo corpo, passou a caminhar de um lado para o outro. Dandara, tomada por apreensão, recuou, observando a cena com cautela.

— P-Por quê?!

— É um covil — ele grunhiu. — E tem dono! Esse lugar… essa península cheia de…

Ele não terminou. Não pode.

As sombras ganharam forma, escamas e dentes afiados, avançando sobre ele e enrolando-se em seu corpo. Um grito interrompeu suas palavras, ecoando pelo ambiente à medida que os ossos passaram a ser esmagados.

Dandara mal conseguiu compreender o que estava acontecendo quando recuou, tropeçando nas flores que pareciam encolher-se novamente.

A maior cobra que ela já havia visto silenciou os gritos do homem com sua boca cheia de saliva e dentes afiados, começando a devorar a cabeça, o pescoço, os ombros... Por um momento, a floresta mergulhou em um silêncio mortal.

Até que o arrastar das folhas se fez presente.

Das sombras emergiram serpentes com escamas cor de ônix e olhos alaranjados. Do pescoço delas, erguiam-se duas grandes cristas avermelhadas, tornando-as ainda maiores e mais intimidadoras. Eram cobras demoníacas!

Não uma.

Não duas.

Três!

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